São Paulo, domingo, 30 de abril de 2000


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Ponto de fuga

E la nave va

Jorge Coli
especial para a Folha

As comemorações do descobrimento do Brasil começaram alegremente. Na Bahia, uma réplica a motor da caravela de Cabral foi batizada pela mulher do vice-presidente da República. Num louvável espírito familiar, ela usou para isso uma garrafa de água do rio Capiberibe: simbologia delicada, evocando a terra natal do marido pernambucano. Foi o governo que encomendou a réplica, esforçando-se para elevar cultura e história brasileiras ao nível de Las Vegas ou Disneyworld, que têm também barquinhos divertidos assim. Custou R$ 3,5 milhões, uma ninharia para políticos, gente que sabe onde está o dinheiro.
Apareceu também, outro dia, em "Tendências/Debates" da Folha, um artigo do ministro do Esporte e Turismo. Ele explicava direitinho que o Brasil tem um povo todo irmão, sem distinção de raça e cor. Que o governo construiu um shopping center em Coroa Vermelha, com restaurante gastronômico. E também um "cruzeiro em aço, cintilante à luz do sol". Esse cruzeiro cintilante ainda "refulge sobre pedestal de granito baiano verde, amarelo e azul, no qual se lê: "O Brasil renasce onde nasce'". Groucho Marx talvez dissesse: "O meu nascimento é melhor que o seu renascimento, cadê a bufunfa?".
Porém, na linguagem do ministro, ficou muito mais bonito, em tom de samba-exaltação como havia tempos não se via. Parece, no entanto, que o presidente da República anda com medo de aparecer em algumas dessas celebrações, por causa de protestos. Isso é de somenos, porque, enfim, protestos? ora protestos...

Felicidade - Mário de Andrade gostava da expressão "donos-da-vida", que diz bem o que quer dizer. São os donos-da-vida que, entre palavrórios e arroubos sentimentais, estão comemorando o descobrimento do Brasil. Têm toda a razão em comemorar: faz 500 anos que aproveitam e se esbaldam. O governo é parte interessada, interessadíssima, e se empenha nas celebrações, envolvendo-se com mulheres, filhos, parentes e compadres.

Laços fora - Existe um quadro de Pedro Américo representando o grito do Ipiranga; ele está no Museu Paulista. Na tela, um carreiro olha, espantado, para aquele bando garboso e elegante, a cavalo, com gestos vibrantes. O pintor viu bem: há os grandes e os carreiros. Os primeiros oferecem uma representação da própria nobreza, patriotismo e poder, esperando que o resto se convença. Os outros, quer dizer, nós, os carreiros, assistimos de fora, perplexos. Naquele tempo, pelo menos, os sentimentos arrebatados eram levados a sério. Hoje ninguém acredita mais nisso. É essa descrença que confere às celebrações do Descobrimento, feitas agora, o aspecto de um simulacro vazio e desprovido de qualquer pudor.

Previsão - Daqui a cem anos, talvez se diga: "Eram tempos de uma paradoxal inconsciência: no ano 2000, diante de um país assolado por uma corrupção devastadora, pela miséria social, pela violência nas cidades e no campo, celebrava-se, com ostentação, um mito histórico, a "descoberta do Brasil'". Mas, como certas coisas nunca mudam muito por aqui, o mais provável, no entanto, é que se diga algo assim: "Inaugurou-se, em Porto Seguro, uma grande caravela em cristal sintético auriverde para celebrar os 600 anos da descoberta do Brasil".

Alegórico - O pseudoveleiro encomendado pelo governo, pífio arremedo, é um ótimo símbolo de todas essas cerimônias absurdas. Talvez o presidente pudesse fantasiar-se de Pedro Álvares para comandá-lo, talvez o ministro da Cultura pudesse vir de Caminha, desde que, por favor, não fosse obrigado a escrever nenhuma carta. Muitos outros poderiam também incorporar a tripulação. A bordo, eles completariam essa nau dos insensatos e dos infames, paródia involuntária de uma carnavalização que se toma a sério.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail:coli20@hotmail.com


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