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Ponto de fuga
E la nave va
Jorge Coli
especial para a Folha
As comemorações do descobrimento do
Brasil começaram alegremente. Na Bahia,
uma réplica a motor da caravela de Cabral
foi batizada pela mulher do vice-presidente da República. Num louvável espírito familiar, ela usou para isso uma garrafa de
água do rio Capiberibe: simbologia delicada, evocando a terra natal do marido pernambucano. Foi o governo que encomendou a réplica, esforçando-se para elevar
cultura e história brasileiras ao nível de Las
Vegas ou Disneyworld, que têm também
barquinhos divertidos assim. Custou R$
3,5 milhões, uma ninharia para políticos,
gente que sabe onde está o dinheiro.
Apareceu também, outro dia, em "Tendências/Debates" da Folha, um artigo do
ministro do Esporte e Turismo. Ele explicava direitinho que o Brasil tem um povo
todo irmão, sem distinção de raça e cor.
Que o governo construiu um shopping
center em Coroa Vermelha, com restaurante gastronômico. E também um "cruzeiro em aço, cintilante à luz do sol". Esse
cruzeiro cintilante ainda "refulge sobre
pedestal de granito baiano verde, amarelo
e azul, no qual se lê: "O Brasil renasce onde
nasce'". Groucho Marx talvez dissesse: "O
meu nascimento é melhor que o seu renascimento, cadê a bufunfa?".
Porém, na linguagem do ministro, ficou
muito mais bonito, em tom de samba-exaltação como havia tempos não se via.
Parece, no entanto, que o presidente da
República anda com medo de aparecer em
algumas dessas celebrações, por causa de
protestos. Isso é de somenos, porque, enfim, protestos? ora protestos...
Felicidade - Mário de Andrade gostava
da expressão "donos-da-vida", que diz
bem o que quer dizer. São os donos-da-vida que, entre palavrórios e arroubos sentimentais, estão comemorando o descobrimento do Brasil. Têm toda a razão em comemorar: faz 500 anos que aproveitam e
se esbaldam. O governo é parte interessada, interessadíssima, e se empenha nas celebrações, envolvendo-se com mulheres,
filhos, parentes e compadres.
Laços fora - Existe um quadro de Pedro
Américo representando o grito do Ipiranga; ele está no Museu Paulista. Na tela, um
carreiro olha, espantado, para aquele bando garboso e elegante, a cavalo, com gestos
vibrantes. O pintor viu bem: há os grandes
e os carreiros. Os primeiros oferecem uma
representação da própria nobreza, patriotismo e poder, esperando que o resto se
convença. Os outros, quer dizer, nós, os
carreiros, assistimos de fora, perplexos.
Naquele tempo, pelo menos, os sentimentos arrebatados eram levados a sério. Hoje
ninguém acredita mais nisso. É essa descrença que confere às celebrações do Descobrimento, feitas agora, o aspecto de um
simulacro vazio e desprovido de qualquer
pudor.
Previsão - Daqui a cem anos, talvez se
diga: "Eram tempos de uma paradoxal inconsciência: no ano 2000, diante de um
país assolado por uma corrupção devastadora, pela miséria social, pela violência
nas cidades e no campo, celebrava-se, com
ostentação, um mito histórico, a "descoberta do Brasil'". Mas, como certas coisas
nunca mudam muito por aqui, o mais
provável, no entanto, é que se diga algo assim: "Inaugurou-se, em Porto Seguro,
uma grande caravela em cristal sintético
auriverde para celebrar os 600 anos da
descoberta do Brasil".
Alegórico - O pseudoveleiro encomendado pelo governo, pífio arremedo, é um
ótimo símbolo de todas essas cerimônias
absurdas. Talvez o presidente pudesse
fantasiar-se de Pedro Álvares para comandá-lo, talvez o ministro da Cultura pudesse vir de Caminha, desde que, por favor,
não fosse obrigado a escrever nenhuma
carta. Muitos outros poderiam também
incorporar a tripulação. A bordo, eles
completariam essa nau dos insensatos e
dos infames, paródia involuntária de uma
carnavalização que se toma a sério.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail:coli20@hotmail.com
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