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BRASIL 500 D.C.
Um número cada vez maior de cidadãos decide sobre assuntos privados cada vez
menos importantes
A liberdade dos pós-modernos
JOSÉ MURILO DE CARVALHO
especial para a Folha
Em conferência feita em 1819,
Benjamin Constant -o político e
ensaísta franco-suíço, não o general brasileiro- elaborou uma distinção que se tornou clássica, entre a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos. A liberdade dos antigos teria existido nas cidades-estados da Grécia, sobretudo em Atenas. Era a liberdade que
tinha o cidadão de participar, diretamente e na praça pública, das
deliberações sobre os negócios da
cidade. Era uma liberdade positiva, isto é, o cidadão era livre para
participar da vida pública. Ela não
incluía a liberdade civil, pois o cidadão era submetido ao interesse
da coletividade. Sócrates foi um
dos que pagaram por essa subordinação. Ela também não era incompatível com a existência de
muitos não-cidadãos, como as
mulheres e os escravos. Pode-se
mesmo dizer que a presença dos
escravos era essencial para que os
cidadãos pudessem se dedicar em
tempo integral à causa pública em
exercício direto da democracia.
Esse conceito de liberdade ressurgiu durante o período jacobino
da Revolução Francesa, graças a
sua incorporação à teoria da vontade geral de Rousseau. O fato levou Benjamin Constant, um liberal que não era inimigo da revolução, mas que se preocupava com a
dificuldade de ela se transformar
em sistema de governo, a argumentar que a liberdade dos antigos não era compatível com os
tempos modernos, com a sociedade européia do começo do século
19. O comércio e a indústria tinham se desenvolvido extraordinariamente, as relações sociais tinham se tornado mais complexas,
não havia mais escravos. A grande
maioria dos cidadãos precisava
cuidar da própria vida, enriquecendo ou simplesmente sobrevivendo. Poucos dispunham do lazer necessário para se dedicarem
aos negócios públicos.
O que os cidadãos pediam não
era participação direta no governo, mas que o governo -ou o Estado em geral- os deixasse em
paz, os livrasse das restrições à liberdade civil de trabalhar e ganhar
dinheiro. Pediam uma liberdade
negativa. O cuidado dos negócios
públicos, os modernos o deixavam nas mãos de representantes
que para isto escolhiam em eleições a que cada vez maior número
de cidadãos e cidadãs era admitido. Acoplada à liberdade negativa
dos modernos, nascia, na formulação de Benjamin Constant, a democracia representativa, exercida
indiretamente pelos cidadãos.
Em artigo anterior ("Boliche solitário", publicado no Mais! de
28/03/1999), discuti a onda de apatia social e política que, segundo
alguns analistas, estaria invadindo
os Estados Unidos nos últimos
anos. Tal apatia se manifestaria na
queda dos índices de participação
política, representada pelo voto, e
dos índices de envolvimento em
associações voluntárias de todo tipo. Houve várias contestações a
essa visão pessimista, algumas negando a validade dos dados ou a
dimensão do fenômeno, outras
discordando de sua interpretação.
Comento aqui apenas as últimas.
Alguns de seus porta-vozes admitem a existência da apatia e da
perda de confiança no governo.
Mas contestam que elas sejam necessariamente um mal. Poderiam
ser mesmo interpretadas como
sintoma positivo. Refletiriam o fato de que a ação do Estado na administração da economia é hoje
cada vez menos necessária e cada
vez menos relevante. Ao se omitirem, os cidadãos estariam simplesmente sinalizando a percepção desse fato, estariam indicando
que teriam chegado à conclusão
de que os complexos assuntos econômicos de hoje se governam melhor por si mesmos, isto é, pelo
mercado, sem necessidade de interferência do Estado.
A insistência dos governos nacionais em resolver problemas que
escapam a sua competência e jurisdição é que estaria levando a seu
descrédito e ao consequente aumento da apatia política. A apatia
seria, nessa visão, sinal positivo do
surgimento de uma nova liberdade. Essa nova liberdade seria em
parte uma retomada, em dimensão mais radical, da liberdade dos
modernos que foi por algum tempo reprimida pelo intervencionismo estatal surgido na década de
1930. Estaríamos, assim, assistindo ao nascimento de uma liberdade que poderíamos chamar de
pós-moderna, mais negativa ainda
do que a liberdade dos modernos,
e ao surgimento de uma nova democracia caracterizada pela ausência de participação.
Benjamin Constant preocupava-se com o perigo de que a liberdade dos modernos levasse ao desaparecimento da consciência dos
assuntos públicos e ao excessivo
poder e falta de controle dos representantes eleitos pelos cidadãos. Tal preocupação desaparece
na visão pós-moderna, uma vez
que o Estado se torna irrelevante.
O que importa para o cidadão
pós-moderno é gozar de toda a liberdade individual para fazer as
escolhas cada vez mais variadas
que o mercado lhe oferece. Ele
precisa de liberdade para escolher
o novo carro, o laptop mais em
conta, o melhor financiamento
para a casa própria, o plano de
saúde e de aposentadoria mais
adequado, o mais eficiente servidor da Internet, a companhia telefônica que oferece tarifas mais baratas, o lugar onde vai passar as
próximas férias, a universidade
para onde vai mandar o filho ou
filha. Ele é um cidadão essencialmente privado, se isso é possível,
pois na nova democracia o público
se despolitiza e desvanece.
A liberdade dos antigos representava o poder que tinham poucos cidadãos de decidir sobre os
assuntos públicos que diziam respeito a eles e aos muitos não-cidadãos. A liberdade dos modernos
significava o poder de muitos cidadãos de escolher os poucos representantes que deveriam decidir
em seu nome sobre os assuntos
públicos. A liberdade dos pós-modernos é o poder de um número
cada vez maior de cidadãos de decidir sobre assuntos privados cada
vez menos relevantes. Façam sua
escolha.
José Murilo de Carvalho é professor titular do
departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Seu último livro é "Pontos e Bordados" (Editora da Universidade Federal de Minas Gerais). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.", da Folha.
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