São Paulo, Domingo, 30 de Maio de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Na leitura de Franz Kafka, pressente-se que tudo é literatura e que a literatura não é tudo
O corpo incompleto

ABEL BARROS BAPTISTA
especial para a Folha

É muito provável que, 75 anos depois da morte de Kafka, a familiaridade com os seus textos nos dispense de ter em mente, a cada passo, que lemos fragmentos de uma "obra" arrancada à morte graças a um gesto por certo compreensível, mas nem por isso indiscutível. E se, por efeito dessa mesma familiaridade, a figura de Max Brod se desvanece em favor de um Kafka só ilusoriamente mais nítido, a possibilidade de que se fez protagonista não se torna em consequência menos perturbadora. Refiro-me, claro, à publicação dos textos que Kafka lhe ordenara que destruísse. Que tal possibilidade estava necessariamente inscrita no próprio ato do testamento, é uma evidência, em que no entanto vale insistir, desde logo a fim de evitar a idéia que faz de Brod o único responsável pela publicação, ou seja, a fim de compreender que o próprio Kafka permanece, como sublinhou Blanchot, "intimamente responsável pela sobrevivência de que Brod foi o instigador obstinado".
Ora, a dificuldade está menos em conciliar essa responsabilidade com a ordem testamentária de destruição do que em conjugá-la com a imagem de não-obra que apesar de tudo ressalta da imensa desordem em que os escritos de Kafka foram sendo publicados. Romances, narrativas, cartas e diários, versões e fragmentos, tudo se publicou, em livros ou papéis avulsos, sem que alguma vez pudesse desaparecer a impressão de que não se publicava tudo: não apenas por força de comprovadas exclusões e amputações, mas sobretudo porque uma porção substancial do publicado se compunha de escritos inacabados e abandonados.
O que chamamos "obra" de Kafka persiste um corpo incompleto composto de corpos incompletos. Nada de mais estranho à idéia clássica de obra -e não há em toda a experiência literária deste século nenhum outro exemplo de tão radical oposição à idéia da obra como monumento perene que o escritor pela via da publicação lega à posteridade. Mas, ao mesmo tempo, também nenhuma outra obra literária iguala a de Kafka na produção de um efeito de rigorosa singularidade: não foi à toa que se popularizou o atributo "kafkiano", símbolo por certo abusivo de homogeneidade, gerado em leituras superficiais de "O Processo", mas não menos certeiro enquanto sintoma da facilidade de reconhecimento de um universo ficcional inconfundível.
Seria ilusório -posto aí seja fácil a ilusão, por isso que decorre da familiaridade- supor que esse efeito de singularidade compensa aquela incompletude, já que se produziria apesar dela: a singularidade kafkiana inclui necessariamente a incompletude, porque no caso de Kafka ela é menos inacabamento acidental, por imposição de circunstâncias adversas, do que marca desse abandono reiterado pelo qual Kafka, de uma forma ou de outra, renunciava a pôr termo aos seus textos. É então que aquela responsabilidade de Kafka se propõe como enigma: quando a própria ordem testamentária de destruição, ao apresentar-se como radicalização suprema do abandono, é também afirmação plena, e não apenas formalmente, da impossibilidade do abandono.
A decisão de Brod apenas revelou esse enigma num protagonismo passageiro. De fato, ao publicar o que Kafka lhe ordenou que destruísse, Brod fez mais do que contrariar a vontade do amigo e certamente algo muito diverso de salvar-lhe a "obra". Entregues aos cuidados do executor testamentário, que substitui Kafka na ausência de Kafka, os escritos, dir-se-á, não ficam ao abandono: é a decisão de Brod que os coloca em estado de abandono -nem destruídos, como outros foram, nem publicados, como outros também foram, em vida do próprio autor-, porém não o faz senão para afirmar, e pelo mesmo gesto, a impossibilidade do abandono.
Brod apropria-se da obra de Kafka a fim de a atribuir a Kafka: por outras palavras, dir-se-ia que recusa substituir Kafka para poder substituí-lo precisamente naquilo em que Kafka é insubstituível. Que essa estrutura paradoxal está inscrita no próprio ato da ordem testamentária, que Brod não produz, antes revela o estado de abandono, é o que facilmente se compreende se pensarmos no caso diverso ou oposto, e também mais óbvio, do executor que destrói a obra que deveria publicar ou que dela se apropria publicando-a em seu nome. E isso é decisivo, não para sugerir (como muitos o fizeram) que Kafka secretamente esperava que o amigo não destruísse os textos que lhe confiou, mas para sublinhar que todo o problema reside nesse singular laço do autor com a própria obra -que dela o torna proprietário na precisa medida em que dela o desapropria- e, em particular, que Kafka viveu a experiência desse laço de uma forma que faz dele, ao mesmo tempo, um exemplo e uma exceção da relação do escritor com a literatura.
Desde logo um exemplo, como se fosse o único escritor capaz de representar a literatura e o que significa pertencer à literatura: e talvez nenhum outro escritor deste século se tenha referido tanto a si mesmo como literato, dando ao termo uma dignidade que hoje nos parece impossível. Principal aspiração, sua única vocação, a literatura era, para Kafka, a própria vida ou, melhor, a possibilidade de resolver a vida em escrita. E as interrupções, a relutância em publicar, mesmo a decisão de destruir a própria obra facilmente se podem incluir num certo paradigma, aliás familiar, da pureza literária. Mas Kafka é também a exceção, quando se revela como o escritor que está na literatura porque justamente não lhe pertence, e que por isso mesmo, nas cartas ou nos diários, reiteradamente exprime severas dúvidas a respeito da literatura: como se nela estivesse ou a ela chegasse para a contaminar com tudo o que lhe que é alheio e até hostil. E não por acaso Kafka foi sendo, para muitos, o santo, o mestre religioso, o místico, o filósofo, ou o que seja, sempre qualquer coisa que não se reduz à condição de escritor e que nesta apenas encontraria um amesquinhamento de que seria urgente salvá-lo.
As histórias de Kafka, aliás, produzem esta bifurcação irremediável na imagem do escritor. Como escreveu Walter Benjamin, num ensaio publicado no décimo aniversário da morte de Kafka, não são parábolas e, ao mesmo tempo, não se podem ler em sentido literal; narram acontecimentos únicos, mas parece que o fazem com o exclusivo propósito de exprimir uma doutrina ou uma verdade geral, a que, no entanto, não acedemos nunca, sem que sequer possamos supô-las inacessíveis. Nessa dificuldade intransponível, que constitui o próprio cerne da experiência de leitura de Kafka, se pressente que tudo é literatura e que a literatura não é tudo.
Se a entrega plena à literatura implica resolver a vida em escrita, também não se separa da mais radical desconfiança da literatura enquanto fuga ou abandono da vida. Em particular, a entrega plena à literatura, sendo submissão à exigência da escrita, é experiência do interminável, do trabalho incessante a que nenhuma verdade ou doutrina logra pôr termo; mas, em contrapartida, não há literatura sem obra que se desprenda, autônoma, desse trabalho interminável.
O exemplo de Kafka mostra-se como exceção quando nos deixa ver o que na literatura é escrita, por isso radicalmente incompatível com a completude ordenada da obra; mas essa exceção é por sua vez exemplar quando mostra que a literatura também é obra, por isso dependente da publicação e do livro. Perante essa aporia, a decisão de Brod apenas torna irrecusável que o exemplo se faz pela exceção e que a exceção vale pelo exemplo: quando contraria Kafka para poder fazer o que apenas Kafka poderia ter feito, Brod só aparentemente supera a aporia do escritor, porque de fato instala-a no coração da "obra".
Dessa aporia do escritor, a ordem de destruição constitui, pois, apenas um dos momentos. O que talvez hoje se perceba melhor, pelo menos a fazer fé numa observação de Benjamin a propósito do colecionador de livros: só quando se extingue pode ser compreendido.


Abel Barros Baptista é professor da Universidade Nova de Lisboa e diretor-adjunto da revista portuguesa "Colóquio-Letras". É autor, entre outros, de "Em Nome do Apelo do Nome" (Litoral Edições, Lisboa) e "Autobibliografias" (Relógio d'Água, Lisboa).



Texto Anterior: Adriano Schwartz: Metamorfoses da metamorfose
Próximo Texto: Nelson Ascher: Oito questões sobre Kafka
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.