São Paulo, Domingo, 30 de Maio de 1999
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PONTO DE FUGA

Além do inferno

JORGE COLI
em Nova York

Em 1938, quatro condenados foram cozidos vivos numa prisão da Filadélfia. Existia lá um lugar de punição, uma central de aquecimento, sem ar, que subia a temperaturas insuportáveis. Bastou um pequeno "erro", e o desastre aconteceu. O jovem Tom Williams, de 27 anos, que tomaria mais tarde o pseudônimo de Tenessee, escreve uma peça a partir desse fato. O título vem de um poema de Keats, "Not About Nightingales". Até hoje, ela nunca fora representada. Vanessa Redgrave a redescobriu e promoveu uma montagem em Londres, agora trazida para a Broadway. São quatro horas de duração, que passam como cinco minutos. Sua arquitetura é impressionante, o drama geral desenrola-se por meio de indivíduos e, a cada momento, o espectador é estimulado pelas configurações novas dos conflitos. O caráter de denúncia coletiva nunca é panfletário: ele vibra em desesperos particulares, em que a tensão sexual é o último horizonte. Na tirania do diretor da prisão -o poderoso ator Corin Redgrave, irmão de Vanessa-, cruzam-se violência social e o arbitrário do opressor. Ele é uma espécie de Scarpia. O autor refere-se à sua peça como melodrama, e os críticos poderiam ter notado como ela se parece com a "Tosca", de Puccini, ópera sobre a crueldade policial e os brutais desejos físicos. Há várias citações, entre elas, no final, o protagonista atirando-se num precipício. Um preso efeminado fala: "Toda minha vida fui perseguido porque sou requintado". É também Blanche Dubois que desponta.

SACARINA - Existem mulheres bonitas, mulheres feias e as peruas. Da mesma maneira, há filmes bons, filmes ruins e os filmes de Franco Zeffirelli. Guerra, comédia e infância: "A Vida é Bela"? Não, "Tea with Mussolini". Impossível resistir ao bando de formidáveis atrizes: Joan Plowright, Judi Dench, Maggie Smith, Lily Tomlin e Cher. Zeffirelli inspira-se em sua infância. Ama Florença, onde nasceu, e as velhas tias. Mas guarda o espírito de um antiquário de luxo, adorando rodear-se de "bom gosto". Seu filme é recheado de tiradas pomposas sobre arte, beleza e sobre a nobre coragem. Logo depois de "Ryan", de "Além da Linha Vermelha" e sob a sombra imensa de seu mentor Visconti, é ainda mais insuportável perceber essa História e essa frouxa guerra cor-de-rosa, em que a barbárie fascista se resume a uma questão de janelas quebradas e de chá interrompido. Tudo é suave e adocicado, ou antes, usando uma expressão italiana: "Vomitevole". Mas há como um gostinho de Oscar no fundo da xícara. Zeffirelli sabe forçar a mão na cabotinagem e seduzir, com pretensa arte e falsa cultura, um público inocente que aplaudiu no final.

PÉS - O esforçado vence poderia ser a moral de "Endurance", filme distribuído pela Disney. Felizmente, ele vai além dessa mensagem curta. Cruza documentário e reconstituição biográfica sobre o corredor etíope Haile Gebrselassie, vitorioso na Olimpíada de Atlanta. Dirigido por Leslie Woodhead, produzido por Terrence Malick, "Endurance" foi fotografado do modo mais inteligente. Sua estupenda trilha sonora é de Hans Zimmer, que escreveu também a de "Além da Linha Vermelha".

AMOR - "Sonho de uma Noite de Verão" é, com certeza, a peça de Shakespeare mais amada pelo século 19, se pensarmos em tudo o que ela inspirou na música e na pintura. Não parece deslocada, assim, a idéia do diretor Michael Hoffman de situá-la numa aldeia italiana, cem anos atrás. Se o filme não atinge a estratosférica poesia da versão de Reinhardt, feita em 1935, ele faz sobressair o texto, o que já é muito, e faz gargalhar de verdade durante o teatrinho dos aldeões.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com




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