São Paulo, domingo, 30 de junho de 2002

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+ brasil 503 d.C.

As alianças e o diabo da política


O político não é apenas uma pessoa mas uma força que se mede com outras forças políticas, todas elas tratando de fazer valer interesses de seus representados e representantes


José Arthur Giannotti

Está aberta a temporada de caça aos aliados políticos. Para ganhar as próximas eleições, os partidos tentam alianças com Deus e com o Diabo e, por isso, desconcertam militantes, simpatizantes e até mesmo o simples eleitor. Como um candidato pode paparicar o antigo inimigo, jurado de morte, de quem já disse cobras e lagartos e com ele sair de braços dados pelos palanques e telas da televisão? Como um liberal mais ferrenho pode filiar-se ao antigo Partido Comunista, reduzido a uma cesta de candidatos sem legenda? Como um líder que fez da ética a sua bandeira pode passar recibo de honestidade a um corrupto notório argumentando que nunca a Justiça conseguiu pegá-lo? Como pode ele, diante dos evangélicos, dizer-se favorável ao ensino da Bíblia nas escolas, quando sempre defendeu a separação da Igreja e do Estado? E assim por diante.
Essas declarações têm provocado as reações mais diversas. Uns se dizem escandalizados e prometem não votar no seu partido ou votar em branco. Outros tentam minimizar as alianças consideradas espúrias e contra-atacam: se meu partido conservar a hegemonia do processo eleitoral, se os corruptos assinarem seu programa, apenas dariam seus votos sem que fosse necessário pagar por eles um preço político. No final das contas, dizem alguns mais afoitos, ganhar as eleições é uma coisa, outra é governar.
Todos colaboram, porém, para que a atividade política seja cada vez menos prezada, o que, em última instância, tende a corroer os próprios fundamentos da democracia. Por isso vale a pena refletir sobre as próprias condições do exercício democrático e dos sentidos que ele pode adquirir numa sociedade capitalista e de massa como a nossa.
Não há dúvida de que nossa democracia não é das melhores, mas quais os objetivos que deve alcançar para que tenhamos uma política eficaz e decente? Em princípio, que se crie um sistema que, por meio de eleições periódicas cada vez mais livres e conscientes, seja capaz de coadunar interesses particulares com interesses gerais, desde que os primeiros continuem a estar presentes e representados pelas minorias vencidas. Mas os interesses coletivos são representados e administrados por quem?
Hegel e muitos outros acreditaram que a bandeira de tais interesses poderia ser carregada por uma burocracia politicamente neutra, mas, depois de Max Weber e mais ainda dos resultados das revoluções feitas em nome do socialismo, torna-se difícil deixar de perceber que qualquer burocracia, inclusive aquelas que passam a gerir os partidos políticos, tende para o particular, passando a defender interesses próprios e a visar o poder pelo simples gosto e interesse do exercício desse poder.
Desde Platão essa dificuldade parece que se resolveria se o político fosse substituído pelo rei-filósofo, aquele que teria uma visão dos interesses gerais e, desse modo, aboliria esse logro de alguns falarem em nome do povo e da nação, embora estejam no fundo defendendo e impondo interesses particulares. Mas o próprio Platão pagou alto preço por ter acreditado que somente pela lábia -isto é, por uma ação comunicativa- seria capaz de convencer tiranos da Sicília a deixar o poder: desapontado, ao voltar para Atenas, foi preso e vendido como escravo. Na Era das Revoluções acreditou-se que a própria história teria a virtude de indicar o partido que traria a política para a luz da razão.
Como isso não aconteceu, é melhor desconfiar de qualquer forma de platonismo e refletir sobre as lições dos sofistas, os únicos, na Antiguidade, a defender a democracia ateniense.
Somente eles tiveram a coragem de afirmar que na política os conflitos se dão no plano das aparências, e, como tudo no fundo é aparência, não há por que deixar de topar esse desafio de tomar as coisas como elas são. Por isso, sem endossar a tese radical de que tudo é aparência ou de que não existe fato, mas apenas interpretação, parece-me mais frutífero deixar de lado a especulação de como seria a Cidade de Deus e tratar de investigar o modo pelo qual a política lida com essa realidade de que a formação de hábitos e instituições guardiãs da racionalidade sempre criam contrapartidas irracionais.
Não é isso, aliás, o que também se verifica no curso das ciências e das artes, muitas vezes chamado de razão objetiva, quando a articulação de uma teoria cria sua própria franja irracional?
O político não é apenas uma pessoa mas uma força que, além de social, se mede com outras forças políticas, todas elas tratando de fazer valer interesses de seus representados e seus representantes, estes sob a aparência de que estão tratando do interesse geral. Mas este último somente se concerta por meio de políticos profissionais, cujo objetivo maior é, por definição, manter sua identidade pública. Além do mais, se o consenso social é uma aparência de totalidade a encobrir o exercício de uma dominação, se na democracia essa dominação deve ser o poder de uma maioria crescente sobre uma minoria minguante, não há como evitar o jogo particularista dos políticos, essa dialética pela qual a vontade geral também se trama graças à atividade de profissionais que, para continuar na vida pública, tratam de defender seus próprios meios de sobrevivência política.
Esse momento de privatização do espaço público é o preço a ser pago para que se possa viver numa democracia representativa, conduzida por políticos profissionais. Somente assim a coisa pública vem a ser de fato a melhor somatória dos interesses particulares, somente assim se evitam os enganos da ditadura, quando a política é negada para que se imponha uma política que se resume na expressão de interesses particulares, dominantes a tal ponto que todo outro objetivo particular é eliminado do espaço público. É nesse jogo entre o interesse privado de profissionais da política e a necessidade de aparecerem como se fossem apenas servidores da pátria que a coisa se torna cada vez mais pública, exprimindo e compondo a vontade de todos, em suma, cada vez menos aparência e mais real. Já que a democracia representativa, com todos os seus defeitos, é a melhor forma de governo a nosso alcance, cabe, pois, conhecer seus limites e cuidar de aprimorá-la, sem perder de vista essas tensões peculiares que ela mesma desenvolve.
Mas, no final das contas, para que serve a política? Não é ela a guardiã do bem comum? A dificuldade aparece quando esse bem deixa de ser o consenso das pessoas de bem que diretamente o reafirmam, mas se conforma por meio de representantes que, para cuidarem desse bem, precisam cuidar de si próprios, inclusive como bons representantes do povo. E nessa tarefa necessitam tecer alianças com antigos adversários, inclusive com adversários corruptos, pois somente assim somam forças capazes de mudar o status quo. Comecemos por esse ponto nevrálgico, o que me permite, além do mais, repisar uma tese que tem sido acusada de sofisma.
Não sou tolo, como alguns de meus críticos pretendem, a ponto de defender a tese de que o político está além do bem e do mal e que tudo lhe é permitido, apenas gostaria de continuar sublinhando que os princípios éticos só podem ser mantidos na atividade política se durante sua aplicação o juízo moral for suspenso até que se manifestem os resultados dessa atividade. Não cabe confundir o que deve ser com aquilo que é. O político que baseia sua prática na corrupção deve ser banido da esfera política e, quando as provas jurídicas forem adequadas, condenado pela Justiça. O problema é como bani-lo, como somar forças necessárias para derrotar outra força que não se resume na expressão de vontade no segredo da urna.
Numa democracia essa exclusão se dá pelo voto, mas, se honestos somente votassem em honestos, nas condições atuais esse partido nunca venceria as eleições e, se as vencesse, não teria condições de governar.
Se, além do mais, o desenvolvimento econômico e social depende do movimento ambíguo e conflituoso de ceder ao capital e tentar controlá-lo, se este é intrinsecamente destrutivo, como então proceder quando a sociedade traz em seu bojo uma semente de corrupção?
Não há dúvida de que moralmente o político corrupto deve ser discriminado e combatido a todo o custo, mas, se no fundo sua atividade está ligada a uma prática social mais ampla, como vencê-lo no plano da política deixando de arregimentar forças sociais e sobretudo forças políticas capazes de detê-lo? Se não se confundem a lógica do social e a lógica da política representativa, é nos dois planos que a batalha deve ser ravada.
Diante disso só há duas estratégias possíveis. A primeira consiste em fazer propaganda da moralidade e esperar que os honestos se tornem maioria e que assim seja viável a república dos fins, aquela que pretende em última instância abolir a política para que a vida em sociedade chegue à plenitude. Era o que os partidos de esquerda pretendiam realizar, mas deixavam de fazer à medida que reconheciam a impossibilidade de abolir o capital e, por conseguinte, a inviabilidade da democracia direta -embora procurando instalar formas subsidiárias dessa relação imediata entre a população e o poder.
Em suma, adotaram a segunda estratégia, convertendo-se em social-democratas ao abandonar a concepção leninista de partido, passando a participar do poder até construir uma força ponderável no sistema político como um todo.
Mas, a partir daí, se não pretendem mergulhar na "Realpolitik" e perder de vista o princípio de que a política deve estar cada vez mais próxima da moralidade pública, cabe-lhes reconhecer que esse princípio somente se efetiva por meio de uma estratégia onde dar ou retirar atestados de boa conduta é arma que soma ou diminui forças políticas. Desse modo, convém abandonar o discurso moralista e saber que o discurso moral se situa na política.
A dificuldade é que esse discurso moralista se converteu no substituto da filosofia da história. Depois que se dissolveu no ar aquele ponto de vista privilegiado a partir do qual toda a pré-história da humanidade poderia ser julgada, que fazia de uma parte a semente do todo, quando em última instância deixaria de ser necessária a representação política, muitos fizeram das leis morais o último parâmetro para julgar as leis políticas. No entanto, como as condições de efetivar essas leis não são explicitadas, como não se explica como o dever ser há de ter contato com o ser, escolhe-se a estratégia de reforçar seu lado utópico: aquilo que se pensa que deveria ser independentemente de se poderia vir a ser. Nesses últimos tempos, a demanda geral por utopias apareceu no mercado, como se essa palavra -"utopia"- tivesse perdido seu sentido original de não-lugar, de forma imaginada de sociabilidade valendo para qualquer lugar, isto é, para nenhum lugar. Nesse ponto se mostra um dos efeitos do esquecimento de Marx, pois assim ficam abertas brechas para todas as formas imaginárias de socialismo, até mesmo aquele de Oscar Wilde, estético mais irado.


A resposta da direita está escrita e em andamento: os problemas relativos ao desenvolvimento da democracia e do liberalismo ficam na sombra à medida que diminuem os graus de liberdade da política em vista das exigências do capital


É de notar que, nesse plano, desaparecem de fato as diferenças entre a direita e a esquerda, ambas as partes manipulando seus ideais sem levar em conta as condições de sua efetivação, por conseguinte ambas tomando um aspecto do real como se fosse a totalidade dele, embora cada uma se aferre ao lado parcial de seu discurso. Se o discurso das esquerdas é muito mais inflamado, a indiferenciação das práticas termina fazendo delas defensores do status quo. Mas no final das contas por que distingui-las quando são diferenciadas apenas no plano da opinião? Antes de tudo, porque a unicidade da moral determinante é aparente. Se condeno o homem-bomba fundamentalista, faço prevalecer meus princípios morais contra os dele; o que considero um mal, ele considera um bem, seu suicídio lhe parece um martírio. Cada um julga corretamente o bem tomando partido, cada juízo é válido no seu âmbito, de sorte que até mesmo a condenação pública de qualquer parte vem a ser política deixando de ser moral. Na praça pública o juízo moral é político. Daí o desafio de encontrar parâmetros do juízo moral no interior desse jogo em que a denúncia da imoralidade se torna política, vale dizer, quando o juízo moral faz parte da reflexão da própria política.

Transparência do jogo
De um ponto de vista estritamente interno, o aperfeiçoamento do sistema político somente diria respeito às suas técnicas de representação, vale dizer, aos procedimentos que permitem melhor transparência do jogo de interesse, mas, desse modo, todo particularismo seria legitimado. Quando, porém, se abandona uma filosofia da história, não é por isso que se há de abandonar qualquer referência à história. Mas tomar partido não é soçobrar no particularismo? Pelo contrário, até mesmo o ideal de justiça social, que só pode ser pensado levando em consideração as condições históricas de sua efetividade, vale dizer, particularizando-se, não impede de se apostar numa forma de gerar o coletivo, aposta ponderada pelo que se conhece de uma situação e que possui em si mesma uma pretensão de universalidade. Em vez de um princípio universal determinante, se tem um princípio universal reflexionante. Por certo outros farão outras apostas, mas valem então os resultados para validar os princípios assumidos. Numa sociedade do conhecimento, apoiada num sistema capitalista que monopoliza a invenção desse mesmo conhecimento, o ideal de justiça social precisa ser conformado em relação às condições de funcionamento do capital no seu confronto com os representantes dos interesses coletivos, notadamente com o Estado nacional, isto é, o quadro mais elementar em que se processa o jogo político. Essa proposta parece abstrusa quando se reconhece que a soberania do Estado nacional está sendo posta em xeque, que minguam seus instrumentos de controle, muitas vezes sendo eles substituídos por mecanismos burocráticos de intervenção supra-estatal. É conveniente, porém, lembrar que os Estados modernos continuam a arrecadar por volta de 30% do PIB, que são eles mesmos que abdicam parte de suas respectivas soberanias para estruturar as novas instituições supra-estatais. Não é nesse jogo entre o internacional e o nacional que a própria noção de soberania precisa ser pensada? Se procuramos recusar as formas mais sutis de platonismo, não é o caso de abandonar o vínculo significativo entre soberania e soberano absoluto, isto é, além de qualquer norma, vindo a conceber como soberana aquela parte política que, por sua própria vontade, graças ao jogo do coletivo nascendo do movimento dos particulares, isto é, à democracia representativa, passa a se integrar num todo universal mais amplo? Não é esse processo que pode lidar com os desmandos do capital, que por sua vez não passa sem negociar com o Estado nacional.

Esquerda e direita
É nesse plano que direita e esquerda se separam. Quais são as práticas estatais e aquelas outras, supra-estatais, necessárias para controlar os mecanismos injustos, criadores de desigualdade social, postos em movimento pelo sistema capitalista de produção? A resposta da direita está escrita e em andamento: os problemas relativos ao desenvolvimento da democracia e do liberalismo ficam na sombra à medida que diminuem os graus de liberdade da política em vista das exigências do capital. Isso vale até mesmo para os Estados Unidos, o berço da democracia moderna, que progressivamente abandonam interna e externamente seus compromissos com os direitos humanos e com a defesa do ambiente e voltam a se aliar a qualquer tipo de regime na aparente luta contra o mal radical. Desse modo, o medo de uma ameaça externa que advém de um inimigo a ser abatido, já que se situa fora da humanidade, vicia o resultado das eleições periódicas, o coletivo se tece excluindo indivíduos com os quais se convive. Não tem sido nessas condições de medo que a via democrática vem a exprimir uma vontade geral antidemocrática, viciada por vir a ser um particular que exclui o outro por meio da força? Não foi assim que Hitler e Ariel Sharon chegaram ao poder? Alguém duvida de que a pressão americana sustenta a popularidade de Fidel Castro e enerva qualquer oposição a ele? Uma política alternativa, que pretenda criar barreiras ao livre movimento do capital, só pode ser eficaz na base do Estado nacional e de alianças que reforcem uma democracia interna e externa a que a população se torne cada vez mais solidária, mas que enfrente, como já escrevi, o medo e a violência de modo institucional, reconhecendo, conhecendo e conformando instituições sociopolíticas capazes de contê-los.

Novo projeto nacional
Importa por fim sublinhar como o desenho de um novo projeto nacional, horizonte em vista do qual começam a se posicionar as forças políticas que agora se aproximam das eleições, não se confunde com o antigo nacionalismo. Este conformou o Estado-nação quando a defesa de valores culturais e de uma forma de vida precisaram recriar uma universalidade, uma "comun-idade", que tanto estabeleceu nova forma de solidariedade intersubjetiva quanto precisou transformar ao menos uma parte dos bens públicos em capital estatal, isto é, riqueza posta a serviço da criação e acumulação de riqueza.
Nasce daí uma forma específica de corrupção: o achaque aos fundos públicos em nome da realização dos ideais coletivos. Essa forma de Estado está sendo substituída por um Estado regulador, que se despoja de suas propriedades coletivas enquanto capital estatal para se construir como rede de instituições capazes de regular o capital sem participar materialmente dele como associado.
Nos últimos anos, aos trancos e barrancos, com acertos e erros, ele está sendo instalado no Brasil. Sua forma específica de corrupção está sendo gerada, mas já se divisa que estará ligada aos próprios processos de regulação, sendo que, provavelmente o Poder Judiciário nisso terá papel relevante. Os progressistas vêm a ser então aqueles que reforçam esse novo Estado, os conservadores, aqueles que colocam empecilhos a seu desenvolvimento e se aliam aos defensores do velho nacionalismo. É em vista desse alvo histórico da política que me posiciono na atual campanha. É em vista dele que julgo as alianças que estão sendo feitas.

José Arthur Giannotti é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, autor de, entre outros, "Certa Herança Marxista" (Companhia das Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil 503 d.C.".


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