São Paulo, domingo, 30 de julho de 2006

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Dialética do jeca

"Moda Inviolada" estuda a transformação da música caipira em sertaneja

Evelson de Freitas - 2.nov.1999/Folha Imagem
A dupla Chitãozinho e Xororó, uma das primeiras a fazer a transição da música caipira para a sertaneja, em apresentação em SP


DANIEL BUARQUE
DA REDAÇÃO

A aparência atual do gênero está mais para caubói hollywoodiano, o som sai de guitarras, teclados e apresenta batidas eletrônicas, as letras são melosas e românticas. Mas, na origem de toda música sertaneja, estão as duplas de música caipira do início do século.
A trajetória do estilo -do surgimento da miscigenação de culturas populares no interior do Brasil à apropriação pela indústria cultural- é analisada em "Moda Inviolada", estudo recém-lançado pelo pesquisador Walter de Sousa.
Em entrevista à Folha, o doutorando em ciência da comunicação na Escola de Comunicações e Artes da USP explica o processo de canibalização das tradições pelo mercado de massa e defende a resistência cultural do que ainda resta das origens folclóricas -como a música caipira, estilo híbrido, oscilando eternamente entre o urbano e o rural.
 

FOLHA - Como a indústria cultural absorve a música caipira para transformá-la em sertaneja?
WALTER DE SOUSA -
É um processo que se iniciou em 1929, quando a música caipira foi gravada pela primeira vez. Cornélio Pires pegou então a música folclórica cantada por duplas no interior e a formatou nos moldes da indústria cultural, limitando o tempo de gravação. Ao perceber que se tratava de um estilo comercialmente atraente, as gravadoras da época passaram a investir na música caipira, mantendo as bases de música folclórica adaptada.

FOLHA - Mas essa adaptação ainda não distorcia o estilo?
SOUSA -
Não, a distorção se inicia no final da década de 40, com incorporação de estilos como o rasqueado, do Paraguai. A partir de então, a música caipira passou a incorporar uma série de influências de gêneros latinos e em seguida, nos anos 60, do rock, especialmente a presença da guitarra, que faria a grande transformação no final dos anos 70 rumo ao sertanejo. A partir do momento em que a indústria cultural começou a perceber que se tratava de um estilo vendável e que, quanto mais incorporasse influências externas, mais se tornaria pop e atraente, esse processo de distorção de acelerou.

FOLHA - O processo se deu naturalmente, vindo dos próprios artistas, ou foi algo imposto pelo mercado?
SOUSA -
No início foi natural, mas a partir da década de 80 ficou bem clara a intenção de ser vendável. A indústria fonográfica, as rádios, percebendo que a introdução especialmente de guitarras e teclados tornavam o estilo muito popular, passaram então a explorá-lo. Isso coincide historicamente com a ascensão da classe média, que se tornaria consumidora do estilo já completamente transformado. A dupla que fez essa transição de forma mais marcante foi Chitãozinho e Xororó, que inaugurou a virada para o sertanejo.

FOLHA - O que fica da origem caipira nesse estilo transformado?
SOUSA -
Praticamente apenas o canto em duas vozes. A indústria cultural transformou o discurso, o ritmo e tudo o mais, criando um estilo romântico cantado num formato de duas vozes, assim como o caipira.

FOLHA - E a mudança para um público mais urbano, como se dá?
SOUSA -
Desde o surgimento, a música caipira é representativa de uma diáspora do campo rumo à cidade, à periferia. A partir dos anos 80, ele assume um público classe média completamente urbanizado.

FOLHA - Essa modernização se contrapõe à idéia do Jeca Tatu, aquele não se adapta ao progresso?
SOUSA -
O jeca original, o caipira, assume um discurso até hoje em busca da simplicidade na vida, mesmo sem o atraso pejorativo que se atribui a ele. A música sertaneja, por outro lado, tenta contradizer esse jeca dizendo que ele evoluiu: hoje anda de picape, participa de rodeio, usa chapéu de caubói...

FOLHA - Qual o lugar social do caipira hoje?
SOUSA -
Até hoje ainda há muitas pessoas envolvidas com o que a indústria chama de música de raiz -termo de que discordo, uma vez que, como diz Antonio Candido [leia texto acima], o caipira é transitório, sem ter terra, sempre fronteiriço, híbrido, entre o urbano e o rural. As pessoas que optam pelo caipira hoje buscam manter a tradição, o discurso original, da simplicidade voluntária. Criticam a opção declaradamente comercial do sertanejo.

FOLHA - A defesa da tradição é também nacionalista, em oposição ao "americanismo" do sertanejo?
SOUSA -
Sem dúvida. Eles defendem a própria cultura reclamando da incorporação do que vem de fora. O sertanejo se diluiu tanto nessas influências que muitos artistas acabaram por voltar a essas origens, a fim de resgatar suas referências, por mais que voltem a desfocá-las logo em seguida.

FOLHA - O músico sertanejo, então, não rejeita o caipira como o caipira o rejeita?
SOUSA -
É uma relação de respeito e ancestralidade.

FOLHA - E o caipira permite a evolução do seu estilo ou fica preso à pureza de origem?
SOUSA -
Permite, sim, de forma bem mais lenta, mantendo o discurso original e sem desvirtuar essa origem.


MODA INVIOLADA - UMA HISTÓRIA DA MÚSICA CAIPIRA
Autor:
Walter de Sousa
Editora: Quiron (tel. 0/xx/11/6953-4211)
Quanto: R$ 80 (250 págs.)


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