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Ondas rebeldes
"Rádio Guerrilha" narra a Guerra da Bósnia a partir das emissões de uma emissora alternativa
ALEXANDRE MATIAS
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Era 1992 e o tempo fechava sobre a ex-Iugoslávia. Com seu comandante eleito, o ex-comunista Slobodan
Milosevic a atiçar velhas rixas
étnicas em nome do renascimento quase sagrado de uma
Sérvia ancestral, um lento e doloroso Vietnã começava a ser
desenhado no mapa do Leste
Europeu, recém-ingresso no
mundo capitalista após a falência do sistema soviético.
Na contramão dos países que
antes formavam a Cortina de
Ferro, o antigo império dos
Balcãs entrava em uma ditadura arcaica, que fingia não interferir no nacionalismo extremo
e no genocídio desenfreado,
quando, na verdade, era seu
principal incentivador.
E sob aquele clima de paranóia, perseguição e proibição
que acompanha qualquer guerra, uma pequena rádio jovem
resistia bravamente à programação de mídia estatal e à
agenda de Milosevic, intercalando relatos e depoimentos da
linha de frente do campo de batalha com doses cavalares de
Clash, Pixies, Public Enemy e
Sonic Youth.
Versão chapa-branca
Até que, um dia, seus ouvintes se deparam com outra rádio, embora atuando sob o
mesmo nome.
Fora o pop barulhento vindo
do exterior e o dedo na ferida de
seu noticiário; em seu lugar,
canções tradicionais e hinos
militaristas se alternavam com
versões chapa-branca para os
acontecimentos no país.
A conclusão dos ouvintes foi
inevitável: censuraram a rádio.
E eles passaram a ligar para a
emissora, quando eram atendidos por uma telefonista igualmente correta, que apenas dizia que a rádio era a mesma,
mas havia mudado um pouco.
Depois de quase um dia inteiro de reclamações, o diretor da
rádio, o jornalista Veran Matic,
baixou a guarda e revelou que
tudo não passava de uma brincadeira baseada nos rumores
de que a rádio seria fechada.
Foco de resistência
Voltou a tocar, no dia seguinte, sua programação normal,
incluindo os telefonemas dos
ouvintes indignados com a mudança editorial de mentira. Só
uma coisa mudou: seu slogan
passou a ser "não confie em
ninguém, nem na gente".
Esse é um dos inúmeros
"causos" reunidos no livro "Rádio Guerrilha - Rock e Resistência em Belgrado", do inglês
Matthew Collin, que conta a
história da emissora B92 -depois, B2-92-, uma brincadeira
de estudantes de comunicação
que se tornou um dos principais focos de resistência política quando o horror da guerra
assolou a velha Iugoslávia.
A rádio foi criada em 1989 como uma espécie de paródia às
comemorações do aniversário
do antigo líder comunista Tito,
morto em 1980, para ter apenas
duas semanas de existência.
Mas a brincadeira deu gosto e
logo a rádio continuaria com
duas frentes que se bicavam: a
do jornalismo independente e a
da rádio rock. A fonte de atrito
vinha do jornalismo da emissora, que achava que a rádio tinha
uma programação musical extrema, que repelia ouvintes em
potencial.
Mas prevaleceu a visão de
Veran Matic, estudante de literatura que abandonou a vida
acadêmica para dedicar-se ao
jornalismo na prática.
Ele acabou como uma das
principais vozes do programa
de rádio dos anos 80 "Ritam
Scra", que, ao lado do núcleo de
jornalismo Index 202, tornou-se a base da B92.
Com pouco mais de 30 anos,
boêmio e afeito ao amadorismo
radiofônico por definição, Matic era um crítico de música
respeitado que aos poucos se
tornou um dos principais líderes de uma geração esmagada
pela guerra -embora rejeitasse
sempre esse papel.
Conglomerado de mídia
Cabeça da emissora, ele foi o
responsável por mantê-la sempre à frente de sua época -tanto de seus detratores quanto de
seus fãs- e por transformá-la
num pequeno conglomerado
de mídia alternativa, com editora, gravadora, emissora de
TV e centro cultural.
Era um dos homens de mídia
mais respeitados dos Bálcãs, a
despeito das tentativas de interromper suas atividades.
Ao acompanhar a saga da rádio, Collin, autor do ótimo "Altered State - The Story of Ecstasy Culture and Acid House"
(Estado Alterado - A História
da Cultura do Ecstasy e da Acid
House), aproveita para contar a
Guerra da Bósnia de uma forma
simples e enxuta, ao mesmo
tempo em que descreve a degradação e queda de Belgrado
como amostra do que a guerra
pode fazer a um país.
Mas tudo isso com um texto
leve e bem-humorado -por vezes cínico- que equilibra tão
bem as melhores qualidades da
rádio: relatos pop disfarçados
de jornalismo e jornalismo disfarçado de relato pop.
RÁDIO GUERRILHA - ROCK E RESISTÊNCIA EM BELGRADO
Autor: Matthew Collin
Tradução: Marcelo Orozco
Editora: Barracuda (tel. 0/xx/11/3237-3269)
Quanto: R$ 44 (336 págs.)
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