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O homem-câmera
O dramaturgo Peter Brook
fala da influência de Shakespeare, Tchekhov e Beckett em sua produção e diz que o fotógrafo Cartier-Bresson foi essencial para definir seu modo de encenar
FABIENNE DARGE
Aos 81 anos, o incansável viajante Peter
Brook prossegue
sua exploração do
teatro como instrumento de descoberta da vida
no que ela tem de mais diverso:
uma estética da pluralidade,
uma ética da curiosidade e da
abertura, que o levam a montar
mais uma vez esse "teatro das
favelas" sul-africano com "Sizwe Banzi Morreu", de Athol
Fugard, John Kani e Winston
Ntshona.
PERGUNTA - Quando criança, o senhor se apaixonou pela fotografia e
o cinema. Mas foi o teatro que o fascinou. Como analisa isso?
PETER BROOK - A partir do momento em que comecei a abrir
os olhos para o mundo ao meu
redor, achei fascinante tudo o
que via. Entrei na vida -e fiquei por muito tempo- com
esse fascínio do viajante, do
aventureiro: tudo o que passava
pelos olhos era para mim o alimento da vida.
Mas, se você vê a vida dessa
maneira, fica numa espécie de
solidão. Como naquela famosa
canção inglesa [de Albert Hammond], "I'm a Camera". Portanto, de certo modo, é isso o
que sou: uma câmera fotográfica. Para mim, fazer cinema era
colocar esse olho da câmera
pessoal atrás do olho da lente, e
com ela penetrar o mundo.
Mas, se sou uma câmera, isso
significa que há uma só pessoa
no centro, a que está atrás da
lente. Quando comecei a trabalhar em cinema, na Inglaterra,
nos anos 1940, eu não era absolutamente anti-social, tinha
muitas relações, mas era um
caminho de vida puramente individualista.
PERGUNTA - Foi essa constatação
que o levou ao teatro?
BROOK - Na Inglaterra extremamente fechada e cinzenta
daquela época, interessei-me
primeiramente pelo teatro por
causa do ambiente que ali reinava: uma certa energia, uma
certa excitação. O teatro em si
era um tédio mortal, mas no interior dessa forma artificial havia uma grande vitalidade.
Assim, me aproximei desse
mundo, comecei a montar peças, e aí, trabalhando com os
atores, na relação entre o grupo
de atores e um grupo maior que
é o público, descobri, mais que
a alegria, a verdade de estar
num trabalho coletivo.
A profunda satisfação de realizar, de compartilhar uma coisa, do primeiro dia até o momento tão importante e delicado das representações.
Costumo comparar o teatro à
cozinha: os ensaios são uma
preparação em vista do momento em que a refeição será
saboreada junto com os espectadores. E esse momento deve,
a cada vez, ser totalmente respeitado. Sempre pensei que todo trabalho teatral que despreza o público não é teatro.
PERGUNTA - O sr. emprega com freqüência metáforas fotográficas para falar de seu trabalho. E refere-se
muitas vezes a Cartier-Bresson...
BROOK - Trabalhando, aprendi
que aquilo de que mais devemos desconfiar é a tentação de
impor uma forma a uma peça.
Para mim, o trabalho teatral
deve permitir que a forma natural da vida, que está sempre
escondida, suba à superfície.
Acho terrível chegar, como
diretor que vai montar "Hamlet" ou qualquer outra grande
peça, com uma idéia muito preparada: "minha" leitura da peça. Não tenho o direito de ter
uma leitura própria dessa peça.
Mas, ao mesmo tempo, ler a peça em voz alta não basta para
que sua verdadeira vida oculta
suba à superfície.
PERGUNTA - É isso que o liga ao trabalho de Cartier-Bresson?
BROOK - O extraordinário em
Cartier-Bresson é que ele desenvolveu algo além da sensibilidade: uma forma de percepção que tornava natural o fato
de que, estando lá, com sua máquina, com milhares de formas
de vida que passavam a cada
instante diante de seus olhos,
ele podia sentir com um milissegundo de antecipação que
haveria um desses momentos
em que todos os elementos
diante dele estariam ligados de
uma determinada maneira.
Um desses momentos em
que todas essas ligações que estão sempre presentes, subterrâneas, seriam subitamente visíveis. E essa intuição lhe dava
tempo de erguer a câmera,
apertar o botão e captar o que
ele chamava de momento preciso, o momento vivo.
PERGUNTA - Como esse tipo de postura pode se traduzir no teatro?
BROOK - Com freqüência, nos
ensaios, usamos fotos para que
os atores possam se aproximar
de uma vida que era distante
deles, deixando-se invadir por
essas imagens. A partir daí, um
pouco como Cartier-Bresson, o
ator deve sentir, encontrar o
que precede esse momento e o
que vem depois.
Partimos da pesquisa de um
momento preciso, para que não
haja apenas um momento preciso, mas vários momentos precisos, para que seja a vida escoando por meio deles.
O que quer dizer, afinal, o trabalho de ator? É pôr em relevo
o que normalmente passa despercebido: os impulsos, as reações, tudo o que está escondido
no ser humano.
PERGUNTA - Para o sr., há três pontos culminantes no teatro: os gregos, Shakespeare e Tchekhov...
BROOK - Beckett também...
PERGUNTA - Mas, se Shakespeare é
uma coluna vertebral em sua trajetória, o senhor afinal montou pouco
os gregos, Tchekhov e Beckett...
BROOK - O motivo pelo qual
gosto tanto de Shakespeare é
que ele não tem um ponto de
vista. Ninguém pode dizer sobre uma de suas frases: "Ah, aí
ouvimos a voz do autor, foi isso
que ele quis dizer...", enquanto
na maioria dos autores ouvimos a cada instante a voz e a autoridade do dramaturgo, que
utiliza essa forma coletiva como instrumento pessoal para
falar ao mundo.
Quando montei "Don Giovanni", de Mozart, não tinha a
impressão de que era um mundo fechado vindo do cérebro,
do espírito, de um certo compositor; não, era um material
vivo, exatamente como o que
está por trás desse momento de
Cartier-Bresson.
A maravilha de Shakespeare
é que esse homem conseguiu
muito rapidamente absorver
todas as impressões da vida ao
seu redor, incluindo o que estava distante dele, vindo de classes sociais que ele nunca havia
freqüentado.
E depois, no momento da escrita, que aparentemente para
ele era de uma rapidez extraordinária, toda a vida era repassada, com os suportes necessários: porque é preciso ter histórias, é preciso ter personagens.
E eram iluminados de uma maneira extraordinária por essa
criatividade absoluta, vinda de
um homem que não queria se
impor para impedir que alguma coisa além dele aparecesse.
Shakespeare é um fenômeno.
PERGUNTA - E Tchekhov?
BROOK - Tchekhov também é
um fenômeno: um grande escritor, cuja profissão não foi
sempre essa. Enquanto médico, todos os dias, o tempo todo,
ele estava na posição de observador. Ele estava lá, absorvia a
vida das pessoas de todos os
meios sociais.
Mas é um observador preocupado, envolvido, profundamente tocado pelo sofrimento
humano: por exemplo, foi a Sakhalina para fazer um grande
livro sobre aquele campo de deportação... Mas era envolvido e
distante ao mesmo tempo, e
nos momentos de distanciamento via o absurdo da vida.
Para ele, a tragédia, a tristeza,
o tédio eram onipresentes; no
entanto há em suas peças, no
interior do pequeno universo
que descreve (muito mais limitado que Shakespeare), o mesmo interesse pelo desconhecido da vida que existe no autor
de "Hamlet". É uma verdadeira
forma de generosidade: abandonar o que queremos dizer para acolher os outros...
PERGUNTA - Como isso acontece
em Beckett?
BROOK - Beckett é totalmente
extraordinário. Em primeiro
lugar, porque teve uma generosidade real, uma maneira de
olhar para a vida e o teatro com
formas que são totalmente
criadas por ele. Imagens, como
em "Dias Felizes" ou como a árvore de "Esperando Godot". E
essas imagens são ao mesmo
tempo inseparáveis de um sentido, da musicalidade que une a
palavra ao silêncio.
Com sua distância e seu humor, com essa recusa em deixar
a personalidade e a emoção do
ator submergirem em seu próprio objetivo, com o combate
doloroso para que cada frase
seja precisa, ele entrou profundamente no que acontece continuamente no interior dessa
caixa desconhecida que é o ser
humano. Se ele via apenas miséria e tragédia, é porque todos
nós somos, a todo instante,
completamente prisioneiros de
nosso passado.
Veja uma peça como "A Última Fita de Krapp": trata-se de
alguém que, por mais que se esforce, não consegue sair do fato
de que toda a sua vida passada
está registrada e não pára de
voltar. E, de repente, ele não
pode nunca mais estar no presente: sempre, sempre, o presente é reencontrar a velha fita.
PERGUNTA - O sr. considera Beckett
um trágico puro?
BROOK - Ao montar "Dias Felizes" -acabo de encená-la em
alemão, em Berlim-, fiquei
profundamente tocado pelo fato de ele ter decidido que o personagem central fosse uma
mulher. No meio de todas essas
peças terríveis, cheias de mendigos, há coisas muito mais femininas, como "Cadeira de Balanço", e depois essa grande peça em que o homem tem um papel muito obscuro e miserável.
Mas a mulher também é trágica: é de tal forma prisioneira
de sua pequena fita que se repete o tempo todo, de tal forma
prisioneira da banalidade...
Ao mesmo tempo -e é o que
torna essa peça tão importante-, essa mulher totalmente
enfiada no mundo, na terra em
que ela se afunda, também deseja ser como o pássaro, voar alto, e não ser absorvida pela terra. Por trás da tagarelice dessa
mulher, abrem-se brechas para
o desconhecido -e nesses momentos sentimos a grandeza da
peça, que nos coloca diante do
intolerável, do impossível.
É o efeito trágico que existe
nas tragédias gregas, em que,
nos piores momentos, o público é subitamente colocado
diante de alguma coisa que supera a miséria humana, supera
a crueldade, a bestialidade.
PERGUNTA - Qual é o papel da África em seu teatro?
BROOK - Na origem da criação
do Centro Internacional [de
Pesquisa Teatral, em Paris, do
qual foi fundador], havia a convicção de que nossa pequena
cultura arrogante e fechada tinha tudo a aprender com as outras. O interesse pela África não
era maior que o interesse pelo
Japão ou a Índia, mas era menos conhecido.
Eu achava -e acho cada vez
mais- as imagens da África extremamente parciais, mesmo
entre muitos dos que dizem
amar a cultura africana. É muito raro considerarmos a África
uma civilização realmente rica
e profunda. E por motivos pessoais e humanos, mas também
sociais, é uma coisa importante
para mim: o racismo tal como o
conhecemos hoje é algo que devemos combater. Pelo exemplo, porque as declarações não servem para nada.
Mas não é só isso. É também
a consciência de uma riqueza
extraordinária: a África é o humano. E, se quiser, em seu teatro, dizer algo sobre a humanidade, não pode fazê-lo sem essa
contribuição. É simples assim.
Foi por isso que fiz "A Tempestade" [de Shakespeare] com o
ator malinês Sotigui Kouyaté
no papel de Próspero.
PERGUNTA - Sua relação com a África negra também tem a ver com a
narrativa, com o conto?
BROOK - Quando se trata de
teatro, a tradição oral, que aliás
está desaparecendo, é sempre
importante. O bom ator africano -nem todo mundo é feito
para ser ator, inclusive na África!- é principalmente orgânico. Não tem necessidade de
aprendizado para isso, de estudar mímica ou commedia dell'arte: ele tem essa capacidade
de transmitir suas imagens internas com o corpo, sem uma
técnica determinada.
Essa técnica, que os grandes
atores ocidentais às vezes trabalham durante anos, dá aos
atores africanos uma grande
naturalidade, que não se perde
no trabalho com a técnica.
PERGUNTA - É verdade que um de
seus lemas é a frase de "Hamlet":
"the readiness is all" -que poderíamos traduzir como "estar preparado
é tudo"?
BROOK - Está vendo, fechamos
o ciclo: voltamos a Cartier-Bresson. Se ninguém faz fotos
como as dele, é porque ele estava a todo instante "ready",
aberto, preparado.
Este texto saiu no "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
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