São Paulo, domingo, 30 de agosto de 2009

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Terra em transe

Tradutor de J.M. Coetzee no Brasil analisa e elogia a adaptação cinematográfica de "Desonra", que será lançada no país em DVD

JOSÉ RUBENS SIQUEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Traduzir de uma língua para outra é mais que traduzir palavras. Cada língua determina processos de pensamento, padrões de imagem e metáforas específicos de sua cultura. Traduzir de uma língua para outra é traduzir esse "jeitão", buscar sonoridades, modos de expressão, particularidades culturais, fazer o que soa natural em inglês, por exemplo, soar igualmente natural em português. Não há horror maior do que ler inglês traduzido.
A transcrição de uma linguagem para outra partilha algumas dessas exigências e outra, mais abrangente e complexa: passar da literatura para o cinema exige tipos diferentes de síntese.
Se o narrador literário nos conta tudo o que acontece com os personagens, até os segredos mais íntimos, no cinema um narrador em voz "off" que nos informe de tudo é uma chatice. O fluxo do discurso escrito tem de se transformar em fluxo de imagens e sons na adaptação cinematográfica. O cinema é a verdade 24 vezes por segundo, como disse Jean-Luc Godard.
Boa parte da indústria literária norte-americana hoje tem um olho no cinema. Alguns autores, como Michael Crichton [1942-2008] e Dan Brown, produzem best-sellers de papel que antes do lançamento já têm garantida a adaptação para o cinema.
Nessa transposição de linguagens, a indústria do cinema muitas vezes cede à tentação de "melhorar" o original. Mesmo livros menos exigentes, como a série infanto-juvenil "Desventuras em Série", não escapam desse processo. E o que flui e prende a atenção na página impressa acaba virando uma mixórdia tediosa, cheia de recursos artificiais e efeitos especiais para atrair plateias.
Raras são as obras-primas literárias que se mantêm obras-primas na adaptação para o cinema. "Desonra", o livro de J.M. Coetzee, é uma delas [DVD Imagem Filmes, chega às locadoras em setembro].
Nos dez anos desde a publicação, em 1999, muita gente quis comprar os direitos para fazer o filme. Coetzee só autorizou a adaptação nas mãos dos sul-africanos Steve Jacobs e Anna Maria Monticelli, diretor e roteirista respectivamente. Acertou em cheio.

Metáfora discreta
O que mais impressiona na literatura de J.M. Coetzee é a inquietação que ele produz no leitor com um texto à primeira vista seco e direto e histórias aparentemente banais. É de situações corriqueiras e de personagens nem sempre simpáticos, num país em torvelinho como a África do Sul, que ele extrai intensa sensualidade, poesia e sobretudo uma inquietação que por vezes incomoda.
E que é difícil identificar de onde vem. Da proximidade conosco? Da aparente indiferença do mundo cotidiano ao sofrimento humano? Da situação política? Coetzee trata de homens contemporâneos imersos na bobagem sem valores em que se transformou a vida.
Em "Desonra" ele vai um passo mais longe nessa óptica especial: consegue transformar um romance aparentemente realista numa grande metáfora da situação racial e política da África do Sul. Sem que o leitor perceba, o que é muito importante numa época em que a metáfora é um recurso literário visto com desconfiança.
O maior mérito do filme é justamente manter estrita fidelidade ao original, sem se tornar literário. O filme "Desonra" é bom cinema do primeiro ao último minuto. Todas as situações, as implicações, as minúcias psicológicas, políticas e históricas da página impressa viram som e imagem, com excepcionais interpretações de John Malkovich e Jessica Haines.
A roteirista Monticelli segue a construção linear do livro, porém, igualmente sensível à literatura e ao cinema, sabe compactar situações e fundir acontecimentos do livro para que se transformem em ações vividas, não narradas.
Na sequência de abertura, uma voz feminina e uma voz masculina travam um diálogo de poucas frases descosidas em "off", comunicam informações indispensáveis para a compreensão do que vem a seguir.
Se o espectador fica desconfiado de que vai ver um filme narrado literariamente, o temor se desfaz nessa mesma sequência.
Tão insidiosamente como o livro, o filme nos envolve na crise trágica e patética de um homem de meia-idade que transgride as normas aceitas pela sociedade bem pensante, perde o emprego na universidade e vai se refugiar na fazenda da filha na África do Sul.
A utilização dramática da música faz vibrar a primeira corda emocional do filme. Mas a intensidade emocional que cresce incessantemente a partir de então nunca transborda em sentimentalismo. Com a mesma clareza expositiva do livro, avançamos na complexidade das relações humanas retratadas por Coetzee.
Livro e filme são magistrais ao desenhar com absoluta lucidez a ponte entre o pessoal e o social num país que atravessa um momento de profunda transição com o fim do apartheid. Quando menos esperamos, nos damos conta de que a história daqueles indivíduos é uma metáfora da história de uma terra em transe.
Então tudo ganha uma carga simbólica, tudo é mais do que vemos na tela, mais do que meros dramas individuais e, talvez mesmo, mais que meros dramas sociais, mas sim um retrato vasto e extremamente fino e perceptivo da natureza humana.
O filme não termina onde termina o livro. Vai um passo adiante e, valendo-se da primazia da imagem, sintetiza num magnífico take final a questão sul-africana e a questão de cada um de nós diante da indiferença do establishment.
Coetzee é um escritor genial, "Desonra", uma de suas obras mais plenas. E o filme do casal Steve Jacobs e Anna Maria Monticelli transpõe habilmente para a tela todo esse som e fúria.


JOSÉ RUBENS SIQUEIRA é tradutor, professor de dramaturgia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e autor de "Viver de Teatro" (ed. Nova Alexandria), entre outras obras.


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