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Terra em transe
Tradutor de J.M. Coetzee no Brasil analisa e elogia a adaptação cinematográfica de "Desonra", que será lançada no país em DVD
JOSÉ RUBENS SIQUEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Traduzir de uma língua para
outra é mais que traduzir
palavras. Cada língua determina processos de pensamento, padrões de imagem e metáforas específicos de sua
cultura. Traduzir de uma língua para outra é traduzir esse "jeitão", buscar sonoridades, modos de expressão, particularidades culturais, fazer
o que soa natural em inglês, por
exemplo, soar igualmente natural
em português. Não há horror maior
do que ler inglês traduzido.
A transcrição de uma linguagem
para outra partilha algumas dessas
exigências e outra, mais abrangente
e complexa: passar da literatura para o cinema exige tipos diferentes de
síntese.
Se o narrador literário nos conta
tudo o que acontece com os personagens, até os segredos mais íntimos, no cinema um narrador em voz
"off" que nos informe de tudo é uma
chatice. O fluxo do discurso escrito
tem de se transformar em fluxo de
imagens e sons na adaptação cinematográfica. O cinema é a verdade
24 vezes por segundo, como disse
Jean-Luc Godard.
Boa parte da indústria literária
norte-americana hoje tem um olho
no cinema. Alguns autores, como
Michael Crichton [1942-2008] e
Dan Brown, produzem best-sellers
de papel que antes do lançamento já
têm garantida a adaptação para o cinema.
Nessa transposição de linguagens,
a indústria do cinema muitas vezes
cede à tentação de "melhorar" o original. Mesmo livros menos exigentes, como a série infanto-juvenil
"Desventuras em Série", não escapam desse processo. E o que flui e
prende a atenção na página impressa acaba virando uma mixórdia tediosa, cheia de recursos artificiais e
efeitos especiais para atrair plateias.
Raras são as obras-primas literárias que se mantêm obras-primas na
adaptação para o cinema. "Desonra", o livro de J.M. Coetzee, é uma
delas [DVD Imagem Filmes, chega
às locadoras em setembro].
Nos dez anos desde a publicação,
em 1999, muita gente quis comprar
os direitos para fazer o filme. Coetzee só autorizou a adaptação nas
mãos dos sul-africanos Steve Jacobs
e Anna Maria Monticelli, diretor e
roteirista respectivamente. Acertou
em cheio.
Metáfora discreta
O que mais impressiona na literatura de J.M. Coetzee é a inquietação
que ele produz no leitor com um texto à primeira vista seco e direto e histórias aparentemente banais. É de
situações corriqueiras e de personagens nem sempre simpáticos, num
país em torvelinho como a África do
Sul, que ele extrai intensa sensualidade, poesia e sobretudo uma inquietação que por vezes incomoda.
E que é difícil identificar de onde
vem. Da proximidade conosco? Da
aparente indiferença do mundo cotidiano ao sofrimento humano? Da
situação política? Coetzee trata de
homens contemporâneos imersos
na bobagem sem valores em que se
transformou a vida.
Em "Desonra" ele vai um passo
mais longe nessa óptica especial:
consegue transformar um romance
aparentemente realista numa grande metáfora da situação racial e política da África do Sul. Sem que o leitor
perceba, o que é muito importante
numa época em que a metáfora é um
recurso literário visto com desconfiança.
O maior mérito do filme é justamente manter estrita fidelidade ao
original, sem se tornar literário. O
filme "Desonra" é bom cinema do
primeiro ao último minuto. Todas as
situações, as implicações, as minúcias psicológicas, políticas e históricas da página impressa viram som e
imagem, com excepcionais interpretações de John Malkovich e Jessica
Haines.
A roteirista Monticelli segue a
construção linear do livro, porém,
igualmente sensível à literatura e ao
cinema, sabe compactar situações e
fundir acontecimentos do livro para
que se transformem em ações vividas, não narradas.
Na sequência de abertura, uma
voz feminina e uma voz masculina
travam um diálogo de poucas frases
descosidas em "off", comunicam informações indispensáveis para a
compreensão do que vem a seguir.
Se o espectador fica desconfiado de
que vai ver um filme narrado literariamente, o temor se desfaz nessa
mesma sequência.
Tão insidiosamente como o livro,
o filme nos envolve na crise trágica e
patética de um homem de meia-idade que transgride as normas aceitas
pela sociedade bem pensante, perde
o emprego na universidade e vai se
refugiar na fazenda da filha na África
do Sul.
A utilização dramática da música
faz vibrar a primeira corda emocional do filme. Mas a intensidade emocional que cresce incessantemente a
partir de então nunca transborda em
sentimentalismo. Com a mesma clareza expositiva do livro, avançamos
na complexidade das relações humanas retratadas por Coetzee.
Livro e filme são magistrais ao desenhar com absoluta lucidez a ponte
entre o pessoal e o social num país
que atravessa um momento de profunda transição com o fim do apartheid. Quando menos esperamos,
nos damos conta de que a história
daqueles indivíduos é uma metáfora
da história de uma terra em transe.
Então tudo ganha uma carga simbólica, tudo é mais do que vemos na tela, mais do que meros dramas individuais e, talvez mesmo, mais que meros dramas sociais, mas sim um retrato vasto e extremamente fino e
perceptivo da natureza humana.
O filme não termina onde termina
o livro. Vai um passo adiante e, valendo-se da primazia da imagem,
sintetiza num magnífico take final a
questão sul-africana e a questão de
cada um de nós diante da indiferença do establishment.
Coetzee é um escritor genial, "Desonra", uma de suas obras mais plenas. E o filme do casal Steve Jacobs e
Anna Maria Monticelli transpõe habilmente para a tela todo esse som e
fúria.
JOSÉ RUBENS SIQUEIRA é tradutor, professor de dramaturgia na Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo e autor de "Viver de Teatro" (ed. Nova Alexandria), entre outras obras.
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