São Paulo, domingo, 30 de agosto de 1998

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AUTORES
A forma pura da ficção


Renovador do gênero, "As Cidades Invisíveis" será um das poucos romances do século 20 a sobreviver


HAROLD BLOOM
especial para a Folha

A era da crítica literária contemporânea algum dia vai chegar ao fim; talvez já tenha chegado. Obras de ficção que se ajustam muito facilmente às modalidades atuais da crítica vão acabar passando junto com elas. Nabokov, Borges, Garcia Márquez: esses nomes talvez não sejam uma referência tão imediata para as gerações do futuro quanto para a nossa. Muito de Italo Calvino (1923-1985) também está fadado a minguar, mas não "As Cidades Invisíveis", embora alguns aspectos do livro pareçam escritos sob medida para sensibilidades formadas pela semiótica e a estética da recepção.
Assim como boa parte da obra de Kafka, "As Cidades Invisíveis" há de sobreviver aos costumes literários de seus admiradores, porque nos transporta de volta à forma pura do romance -um gênero do maravilhoso, um domínio da especulação. Juntamente com "A Grande Muralha da China", de Kafka, esse livro renova uma literatura que nos é necessária, mas que não merecemos mais, ou da qual não somos mais capazes.
Nós também, como Kublai Khan, não precisamos necessariamente acreditar em tudo o que Marco Polo descreve; mas sofremos, como ele, da sensação do vazio de uma terra crepuscular e temos esperança de identificar o traçado de algum padrão, que nos compense pela série infinita de erros sobre a vida. Sem dúvida, como notou Nietzsche, erros sobre a vida são necessários à vida; e sem dúvida, também, como dizia Emerson, nós exigimos vitória -uma vitória dos sentidos, tanto quanto da alma. Mas erro e triunfo indistintamente induzem ao vazio, uma vacuidade cosmológica que o gnosticismo chama de "kenoma": a terra devastada, ou espaço deserto que se vê em toda a tradição literária do romance.
O Kublai Khan de Calvino é um demiurgo habitante do "kenoma", essa "ruína eternamente sem forma", em que o que se sabe é que "a gangrena da corrupção já se espalhou longe demais para que nosso cetro possa lhe estender uma cura", e que "o triunfo sobre monarcas inimigos fez de nós os herdeiros de sua prolongada desgraça".
As cidades invisíveis vão compondo um pontilhado sobre o "kenoma", mas não são parte dele, e sim faíscas do abismo original, fonte de tudo o que temos de mais antigo e de melhor. Não é no "kenoma" que "o estrangeiro hesitando entre duas mulheres sempre encontra uma terceira", nem lá que se encontram "pêras imperiais, ovas de esturjão, astrolábios, ametistas". Como fagulhas do pneuma, ou sopro da alma, as cidades invisíveis não são psiquês, nem personalidades, a despeito de seus nomes (Berenice, Maurília, Fedora, Zoé etc.). Não representam mulheres, mas ancestrais, ou modelos de mulheres, porque cada uma é, ao mesmo tempo, um conjunto de memórias, desejos e signos.
Em outros termos: recalques e o retorno do recalcado. Talvez seja essa a marca do gênio de Calvino (que ele compartilha com Kafka): é impossível distinguir, no que escreve, entre o que é recalcado e o que retorna -como se vê, por exemplo, em Anastácia:
"A cidade vos aparece como um todo, onde nenhum desejo se perde e do qual fazeis parte, e uma vez que ela desfruta de tudo o que não sois capaz, não há o que fazer exceto habitar seu desejo e se satisfazer com isso. Este é o poder, descrito às vezes como maligno, às vezes benigno, que Anastácia, a cidade traiçoeira, possui; se trabalhais, oito horas por dia, como lapidador de ágata, ônix, ou crisópraso, este vosso trabalho, que dá forma ao desejo, extrai do desejo sua forma e pensais estar desfrutando plenamente de Anastácia, quando sois apenas escravo dela".
Triunfa aqui, como em Yeats ou Kafka, aquela mesma vontade antitética que para Nietzsche era a vingança da arte contra o tempo. O Grande Khan aprende com Marco Polo que seu império não é nada senão um conjunto de emblemas, um zodíaco de fantasmagorias. Aprender todos os emblemas não dará ao Khan sentido algum de posse, pois no dia do conhecimento integral de Khan terá se tornado, ele mesmo, mais um emblema entre os emblemas, de uma vez só o signo do recalque e do retorno do recalcado. A utilidade de Marco, seja para si mesmo ou para o imperador, é ensinar o que ele aprendeu melhor do que ninguém: o significado de qualquer cidade invisível só pode ser outra cidade invisível, e não ela mesma.
À medida que avança a narrativa de Marco, as cidades vão se tornando cada vez mais fantásticas, mas também, o que é paradoxal, cada vez mais pragmáticas. Calvino lembra, implicitamente, o aforisma sombrio de Nietzsche: só se encontra palavras para descrever aquilo que se despreza, não importa o quanto tenha sido estimado outrora. Kublai Khan estranha o fato de Marco Polo jamais mencionar Veneza, e o viajante revela o segredo de todo homem em busca da cidade perdida:
"Uma vez fixadas nas palavras, as imagens de memória se apagam', disse Polo. "Talvez eu tenha receio de perder Veneza inteira imediatamente, se falar sobre ela. Ou, quem sabe, ao falar de outras cidades, eu já a tenha perdido, pouco a pouco'".
Não causa surpresa que a última cidade invisível seja a mais imaginosa de todas: a extraordinária Berenice, simultaneamente uma cidade injusta e a cidade dos justos. Berenice é um pesadelo de repetições, onde o justo e o injusto estão continuamente se metamorfoseando um no outro:
"... entre as sementes da cidade dos justos, esconde-se também uma semente maligna: a certeza e orgulho de estar certo -e de ser mais justo do que tantos outros que se acreditam mais justos do que os justos. Essa semente fermenta amargura, rivalidade, ressentimento (...). Das minhas palavras, tereis chegado à conclusão de que a verdadeira Berenice é uma sucessão temporal de cidades, alternativamente justas e injustas. Mas aquilo para o que mais gostaria de chamar vossa atenção é ainda outra coisa: todas as Berenices futuras já estão presentes neste momento, umas dentro das outras, apertadas, confinadas, inextricáveis".
Essa passagem não é apenas uma parábola sobre a relatividade da justiça, ou sobre a virtude egocêntrica da confiança moral, mas uma visão da ambivalência de todo Eros - já que a Berenice justa é Eros (o instinto, ou pulsão de vida, em Freud) e a injusta, Thanatos (o instinto de morte). Justa e injusta, Berenice é a cidade do ciúme, do instinto de posse, da semente maligna escondida no coração de Eros. A sombra da nossa mortalidade, projetada da terra aos céus, interrompe-se na esfera de Vênus, como o poeta Shelley gostava de lembrar; mas em Berenice a sombra não se interrompe nunca. Uma sucessão temporal de amor e morte, justiça e injustiça, é real e sombria o bastante. Mas Calvino nos reserva uma palavra ainda mais forte de cautela: cada instante guarda em si todas as Berenices futuras, inextricavelmente tramadas, o instinto de morte e a libido trocando de posição, ou um dentro do outro.
Felizmente para nós, "As Cidades Invisíveis" termina em tom afável, com Marco insistindo que o inferno não precisa ser nossa última estação; basta "aprender a reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é o inferno; e fazer então com que perdurem, dar a espaço a eles". Um poeta como Dante teria desprezado esse comentário, com alguma ironia lúgubre; já nós não podemos nos dar a esse luxo.
Em conclusão, vale a pena voltar a um conto extraordinário de Calvino, "O Motorista Noturno", em "T com Zero". O narrador, no curso de uma discussão ao telefone com sua namorada, Y, diz a ela que quer acabar o caso. Y responde que vai ligar para Z, o rival do narrador. Para salvar a situação, o narrador decide enfrentar uma viagem noturna, pela supervia expressa que liga a cidade onde ele mora à dela. Em alta velocidade, em meio à chuva e à escuridão, o narrador não sabe se Z está indo mais rápido do que ele até Y; ou, por outro lado, se Y não estaria vindo, ela mesma, na direção contrária, com motivos semelhantes aos dele. Numa paródia enlouquecida da semiótica, o narrador, Y e Z se transformam todos em sinais ou signos, ou mensagens, reduções absurdas de um sistema:
"Eis a contradição em que me encontro: se quero receber uma mensagem, preciso deixar, eu mesmo, de ser uma mensagem, mas a mensagem que espero receber de Y -qual seja, a de que Y se transformou numa mensagem- só terá valor se eu, de minha parte, for uma mensagem (...). E quanto a Z? Nem Z pode escapar do nosso destino, ele também deve se transformar numa mensagem de si; seria um desastre se eu corresse até Y com ciúme de Z e Y estivesse correndo para mim, arrependida, evitando Z; enquanto Z, na verdade, nem ao menos tivesse pensado em sair de casa".
Transformar-se em mensagem, ou abandonar a tentativa são igualmente criações catastróficas. O resumo de Calvino, no tom de uma graça sublime, me parece a melhor frase de todas que ele jamais escreveu: "Não posso mais aceitar qualquer outra situação, exceto a transformação de nós mesmos em mensagens de nós mesmos". Mas não estamos de volta, então, a Berenice? Y, Z e o narrador são todos moradores daquela cidade invisível, onde os justos e os injustos se confundem, o amor não se distingue do ciúme, e o recalque é praticamente impossível de separar do retorno do recalcado. Motoristas noturnos viajam entre as cidades invisíveis, transformando memória e desejo em signos homogêneos, confundindo olhos e nomes, contaminando o céu com seus mortos.
A única alternativa para essas viagens noturnas seria mesmo "aprender a reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é o inferno; e fazer então com que perdurem, dar a espaço a eles".


Harold Bloom é professor de literatura nas universidades de Yale e Nova York (EUA); é autor, entre outros, de "A Angústia da Influência" (Imago) e "O Cânone Ocidental" (Objetiva). O Mais! publica mensalmente seus artigos.
Tradução de Arthur Nestrovski.




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