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Machado de Assis por Nicolau Sevcenko
Troca de elite
Machado de Assis
instila em Bento Santiago
("Bentinho"),
protagonista e
narrador do "Dom Casmurro",
o desejo de escrever um livro.
Solitário, sentindo o peso dos
anos, viúvo e morto o filho único, ele resolve escrever algo útil
para as novas gerações. "Pensei
em fazer uma "História dos Subúrbios" [...] relativa à cidade;
era obra modesta, mas exigia
documentos e datas, como preliminares, tudo árido e longo."
O desafio desse estudo rigoroso lhe faz buscar inspiração
para tarefa tão avultada. Absorto em sua sala, ele passa casualmente os olhos pelos bustos
pintados nas paredes e dali salta a centelha criativa. "Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu,
grande César, que me incitas a
fazer os meus comentários,
agradeço-vos o conselho, e vou
deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mão para alguma
obra de maior tomo."
"Dom Casmurro" não passaria portanto de um mero
preâmbulo para a obra principal, um prelúdio para o estudo
histórico da evolução urbana,
incubado pela evocação das circunstâncias afetivas que marcaram a infância, mocidade e
os breves anos da vida marital
de Bentinho.
Tanto que ele fecha o livro
anunciando já a obra: "E bem,
qualquer que seja a solução,
uma coisa fica, e é a suma das
sumas, ou o resto dos restos, a
saber, que a minha primeira
amiga e o meu maior amigo,
tão extremosos ambos e tão
queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se
e enganando-me... A terra lhes
seja leve! Vamos à "História dos
Subúrbios'".
O fato é que todo o processo
de reconfiguração urbana do
Rio de Janeiro já está simbolizado na trama do Casmurro.
Bentinho admite que o título
da obra é arbitrário e, no fundo,
indiferente. "Não achei melhor
título para minha narração (...),
vai este mesmo."
De fato, "Dom Casmurro" e
"História dos Subúrbios" são
intercambiáveis, um livro fala
do outro e o outro do um. A diferença fundamental é de ponto de vista, o primeiro tem como foco Bentinho, o segundo
Capitu e sobretudo Escobar.
Conceito seminal
De origem latina, a palavra
subúrbio chegou a ter alguma
vigência nos círculos cultos do
Renascimento.
Mas foi em especial durante a
reforma urbana de Napoleão 3º
que ela adquiriu a complexidade de sentidos que a torna um
conceito seminal no mundo
contemporâneo. Na Inglaterra
estaria relacionada aos projetos das cidades-jardim e da
ocupação dos bosques ao leste
de Londres.
No contexto das revoluções
Industrial e Francesa, uma nova camada de agentes sociais
passa a dispor do espaço urbano para seus propósitos de
enriquecimento, consumo, ostentação e lazer.
Nossa "Comédia Humana"
Balzac [1799-1850], que se
dedicou a fazer a crônica dessas
novas classes, seu sistema de
valores argentários e seus devaneios de poder, exibição e expansão, denominou o conjunto
de sua obra "A Comédia Humana". Poderia, com propriedade,
tê-la chamado "História dos
Subúrbios".
Com o advento dos veículos
automotores, a intensificação
das atividades, do trânsito e da
população nas áreas centrais, o
mercado figurou oferecer áreas
privilegiadas, dotadas de infra-estrutura moderna, afastadas
do centro.
Elas conjugariam o rápido
acesso ao centro e o desfrute de
uma paisagem ajardinada e livre de poluição, ruídos, agitação e inseguranças das novas
metrópoles.
Esse era o sentido da palavra
subúrbio, no contexto europeu
ou norte-americano. A urbe era
a área da vida rude; o subúrbio,
a do privilégio e da sofisticação.
A cidade era a senzala; o subúrbio, a casa-grande.
Em fins do século 19, chegaram ao Rio empresas estrangeiras oferecendo serviços de melhorias urbanas que redefiniriam os espaços sociais. O advento do regime republicano
impôs um acelerado processo
de substituição de elites.
Desencadeou-se por assim
dizer a nossa "Comédia Humana", com as escandalosas manipulações do mercado e da política por mecanismos espúrios,
como o Encilhamento, a Caixa
de Conversão, a Política dos
Governadores.
A atividade mais rendosa
passou a ser a especulação financeira, mas, acima de tudo, a
especulação imobiliária.
Machado publicou "Dom
Casmurro" em 1899, no governo de Campos Salles, que consolidou as estruturas política,
econômica e financeira da Primeira República. Ele tinha
diante de si a obra acabada da
nova camada arrivista. Não por
acaso Bentinho busca inspiração nas figuras de César, Augusto e Nero, ditadores militares que se beneficiaram do colapso da república romana, estabelecendo o império. Eles
eram, acima de tudo, arrivistas.
Note-se a presença curiosa
de um rei númida, Massinissa,
herói das guerras púnicas, que
lutou com Cartago e depois foi
decisivo na virada, passando
para o lado romano.
As prodigiosas riquezas cartaginesas levaram de roldão as
últimas virtudes e instituições
republicanas.
Coronelismo e arrivismo
Bentinho acompanha a reconfiguração do espaço urbano, já que suas mudanças de residência seguem a rota de expansão dos novos subúrbios refinados. Mas há uma fundamental diferença. Quando de
sua última mudança, para o Engenho Novo, ergue uma réplica
exata da primeira casa, na rua
Matacavalos.
Ou seja, por mais que se mova na área da especulação, ele
mantém o padrão estamental e
o estilo senhorial da sua origem. O personagem-chave aí é
Escobar, de origem subalterna
e tratado ao longo do texto [de
"Dom Casmurro"] como calculista, interesseiro e negocista.
Ele é o protótipo do arrivista.
Escobar faz aplicações sigilosas das verbas que Capitu recebe do marido, atuando como
seu corretor particular. Essa
cumplicidade clandestina
aproxima os dois, tornando-os
sócios. Graças a ela Escobar
prospera e sai do bairro operário de Andaraí, comprando
uma mansão no subúrbio sofisticado do Catete.
Capitu, por sua vez, ganha o
filho desejado que Bentinho
não conseguia lhe dar: o herdeiro do novo arranjo do coronelato arcaico com o arrivismo republicano.
Assim, da perspectiva do
"Dom Casmurro", a traição
nunca ocorreu, foi imaginada
pela suspeita paranóica que senhores têm de seus vassalos.
Mas, do ponto de vista da "História dos Subúrbios", é o ato da
traição mesmo que revela a nova ordem social do país. Nesse
sentido, a "História dos Subúrbios" é um livro ainda mais notável que "Dom Casmurro".
NICOLAU SEVCENKO é professor de história na
USP e autor de "Literatura como Missão" (Companhia das Letras), entre outros livros.
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