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Italo Calvino por Ivo Barroso
História sem fim
Insatisfeito com a leitura
das histórias lineares, você, leitor, vai ao restaurante "Le Vrai Gascon",
na rue du Bac, 82, em Paris, e lá encontra um grupo onde estão seus velhos conhecidos Raymond Queneau, Georges Perec e Italo Calvino.
Como você, eles também estão interessados numa hipertextualidade que possa englobar todos os livros.
Queneau já dera um passo
em direção a esse livro inexistente publicando, em 1947,
seus "Exercícios de Estilo" [ed.
Imago], em que apresenta a
mesma história (curta) escrita
de 99 formas diferentes.
O arrepiado cruzadista-enxadrista-palindromista Georges Perec terminou em 1978
seu livro "Vida, Modo de Usar"
[Cia. das Letras], a que deu o
subtítulo de "Romances", no
qual explora uma estrutura intrincada de superposições e, ao
mesmo tempo, se exercita nas
inúmeras formas estilísticas da
narrativa.
Não é bem assim
Estão quase chegando lá.
Calvino publica, no ano seguinte, "Se um Viajante numa Noite
de Inverno", em que essas experiências se sublimam: as narrativas têm início (nem sempre
convencional), mas nunca chegam ao fim: elas se interrompem, se multiplicam, se diversificam, dando a impressão de que você está num labirinto por
cuja entrada não passou e cuja
saída jamais encontrará.
Que tal começar por aí?
Você inicia a leitura e logo
descobre que não é bem esse o
livro que você quer ler, e sim, o
outro, homônimo, que o leitor
do livro (também você) está
lendo e se chama precisamente
"Se um Viajante numa Noite de
Inverno".
Embutido, encartado no livro homônimo de Calvino, é ele
que você se dispõe a resenhar.
Para tanto, é preciso conhecer,
além do estilo e da estrutura,
pelo menos uma parte do assunto (já que é precipitado falar
em enredo).
De início, você estranha que
o título não seja "Se numa Noite de Inverno um Viajante" (ordem das palavras no original
italiano) e fica se perguntando
o porquê da inversão.
Logo percebe que esse livro-dentro-do-livro não difere
muito de seu invólucro; como
se, em sua infiltração, em sua
inseminação, Calvino se valesse de uma técnica matriochka,
de introduções subseqüentes
da mesma coisa, de um jogo de
espelhos que propiciasse uma
reprodução infinita de imagens
ou daquelas composições arbitrárias que surgem na cristalografia dos calidoscópios.
Trem que não vem
A partir de um início claro e
preciso -no estilo antigo, mas
que já se contamina, ao finalizar, das imprecisões do surreal-, você atravessa as cerca
de 30 páginas iniciais em que se
relata a chegada de misterioso
personagem a uma estação ferroviária; ele deve trocar com
outro passageiro (o qual não
aparece) a maleta que arrasta
até o bar da estação, onde um
mafioso delegado o aconselha a
tomar o próximo trem (que -o
viajante sabe- não virá nem
pára ali).
Sem mais, no livro de Calvino, a história é substituída (ou
completada) por dez outras
narrativas, de caráter e estilos
diferentes, num efeito de protelação-Sherazade, prendendo
sua atenção até o fim do volume, que termina com a menção
de que o personagem principal
(você) está acabando de ler o livro (que você está lendo agora).
Mas e o livro inexistente,
aquele que é, de fato, o motivo
de seu interesse, de sua análise,
de sua resenha?
Não estando disponível em
linguagem linear, cursiva, você
só pode alcançá-lo mediante a
virtualidade da telinha, clicando a profusão de links que lhe
permitirá uma visão cosmológica do hipertexto, navegando
por esse espaço cibernético em
que estão disponíveis todas as
coisas existentes e mesmo projetos e prospecções de itens
ainda por vir.
Pois lá está: o viajante volta à
estação puxando sua maleta; é
uma noite de inverno, e, em vez
do trem, surge um cavalo branco que conduz o novo paladino
por um denso bosque até um
castelo que dá refúgio a quantos a noite haja surpreendido
no caminho. No salão, aquecido
por enorme lareira, reina o silêncio e, ao que parece, o anfitrião é mudo.
Luneta invertida
Sobre a mesa oval, um baralho de cartas de tarô irá permitir ao viandante comunicar-se
com seu hospedeiro. Este lhe
ordena ir em busca das cidades
invisíveis. A viagem segue sob a
luz de um lácteo plenilúnio; a
Lua prenhe está amojando, e
seu ventre quase toca a crista
das águas; basta uma simples
escada para chegar a ela e ordenhá-la.
Nosso audaz leva consigo
uma luneta de tão grande alcance que lhe permitiria tocar
os astros em redor.
Mas ele, insatisfeito, volta a
lente ao contrário e se põe a observar as coisas ínfimas da Terra: os grãos de areia, as nervuras das folhas, os microrganismos que se contorcem...
Analisando a precisão do estilo, a adequação vocabular ao
espectro fabulatório das narrativas, você descobre que está
diante de um rebento, ou seja,
desse fruto embrionário que
nasce abortado dentro de outro
fruto. O livro virtual ainda inexistente, que lateja dentro desse livro atual de papel, é na verdade a gêmula, a plântula dos livros de Calvino.
E, para resenhá-lo, seria preciso resenhá-los todos.
IVO BARROSO é poeta, crítico e tradutor, autor
de "A Caça Virtual" (ed. Record).
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