São Paulo, domingo, 30 de outubro de 2005

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+ sociedade

Nova ordem econômica reconfigura as cidades e põe em risco os fundamentos físicos das democracias

Lutas entre lugares

JOSEP RAMONEDA
OLIVIER MONGIN

É preciso descrever e nomear os tipos urbanos inéditos que nascem diante de nossos olhos, dentro da grande reconfiguração de territórios que acontece em escala planetária. A globalização urbana toma em primeiro lugar a forma da "cidade global", que a socióloga Saskia Sassen descreve como um espaço circunscrito destinado a organizar o sucesso econômico (campus, educação, finanças, Bolsa de Valores, sede de multinacionais).


Não há escolha entre a "museifica-ção" da cidade européia ou as cidades monstruosas da sobrevivência?


Ignorando o ambiente imediato que a cerca e suas periferias, a cidade global se pluga na rede interconectada de cidades semelhantes. Assim, a norma passa a ser uma hierarquia entre os diferentes "níveis" de cidades mais ou menos conectados.
Em contrapartida a essa cidade global que condensa "o mundo" em um espaço limitado, a "cidade gigante", a "megalópole", a "cidade mundo" onde as pessoas se aglomeram remete a espaços urbanos ilimitados. Mais além dessa oposição -cidade ou global ou caótica-, o fenômeno metropolitano hesita entre alternativas cuja dimensão política é manifesta: ou a cidade que se espalha de maneira desmedida, tornando-se "invisível" -e, em razão da desistência da esfera política, ingovernável- ou então a cidade multipolar, a metrópole, que tende a dissociar-se quando seus pólos deixam de ser solidários uns com os outros no interior de uma conurbação.

Lenta dessolidarização
No caso de Los Angeles, por exemplo, os moradores dos subúrbios em desenvolvimento podem optar entre a "incorporação" (criação de uma nova entidade urbana para poder fugir dos encargos relacionados aos serviços públicos e sistemas de ajuda da metrópole) ou pela manutenção "solidária" no seio do grande aglomerado.
Diante desse desenvolvimento multiforme e anárquico, o arquiteto Rem Koolhass zomba das cidades européias, esses tesouros urbanos de uma época passada, essas cidades-museu anacrônicas que se tornaram estranhas ao ser urbano do planeta.
As estatísticas confirmam essa tese: por um lado, 175 cidades que têm mais de 1 milhão de habitantes se dividem hoje entre Ásia, África e América Latina; por outro, as 33 megalópoles anunciadas para o ano 2015 pertencerão a países menos desenvolvidos (sendo que 19 delas estarão na Ásia). Tóquio será a única cidade dita rica que ainda vai fazer parte da lista das maiores cidades.
Mas será que deveríamos nos ater a essa constatação estatística que marginaliza a Europa urbana e não leva em conta outra coisa senão as curvas demográficas? Não temos outra escolha senão entre a "museificação" da cidade européia, tão apreciada pelas hordas de turistas, ou as monstruosas cidades da sobrevivência?
Em escala mundial, quer na França, na Europa, em Buenos Aires, no Cairo ou na Cidade do México, assistimos a um processo análogo -um processo de lenta dessolidarização das unidades metropolitanas.
De fato, os aglomerados se dividem de maneira dilacerante entre as zonas em processo de aburguesamento (próprias dos centros das cidades, onde convivem elites cosmopolitas e populações precárias), zonas periurbanas multipolares e cada vez mais desligadas do centro (os intercâmbios periferia-periferia passaram a ser mais importantes que os entre centro e periferia) e as zonas de relegação (banimento para fora do perímetro da metrópole), onde uma população vista como perigosa e hipermóvel é, na prática, imobilizada.

"Projeto local"
É verdade que não se vive da mesma maneira nas periferias da França ou da América Latina, África ou Nova Orleans, mas a reconfiguração dos territórios, indissociável da globalização, afeta as condições da própria experiência urbana.
Será que não é nem sequer imaginável "contrapor-se" à globalização, resistir a ela de outra maneira senão desde o alto, continuando a sonhar com um governo mundial para amanhã de manhã? Na Itália, por exemplo, país onde uma reflexão urbana antiga é marcada pela tradição comunal, as pessoas procuram contrapor-se à globalização a partir de baixo, e, com o urbanista italiano Alberto Magnaghi, fala-se de um "projeto local" que renova concretamente com o espírito da utopia urbana.
Mas será que devemos nos surpreender com esse convite para reconsiderar a questão do habitat e dos lugares, da construção e do "viver juntos" espacial? Os italianos vulgarizaram uma fórmula que destaca que as questões social e urbana de agora em diante andam de mãos dadas: "Após a luta de classes, a luta dos lugares". Imaginar reaglomerações, conurbações, renovações urbanas capazes de contrapor-se ao peso dos fluxos globalizados -esse é o tema da luta pelos lugares.
A globalização urbana, uma tendência histórica pesada, não se resume nem à cidade-mundo nem à cidade global nem à cidade européia -ela reconfigura os espaços urbanos e afeta os fundamentos físicos da democracia, tanto na Europa quanto fora dela.

Josep Ramoneda é diretor do Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona.
Olivier Mongin é diretor da revista "Esprit". Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain.


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