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São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2003

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SLAVOJ ZIZEK, QUE LANÇA SEU NOVO LIVRO EM SP NO DIA 5, CRITICA A FETICHIZAÇÃ O DA DEMOCRACIA E DIZ QUE O MULTICULTURALISMO ANULOU O POTENCIAL REVOLUCIONÁRIO DA RELIGIÃO CRISTÃ

A PAIXÃO PELO REAL

Andrew Wong - 28.out.2003/Reuters
Guarda chinês diante de outdoor anunciando câmera digital vigia ponte durante visita do secretário de Comércio dos EUA, Don Evans, a Pequim


Vladimir Safatle
especial para a Folha

Dez anos depois de vir ao Brasil, o filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek retorna para lançar seu novo livro, "Bem-Vindo ao Deserto do Real!" [191 págs., preço não definido, trad. de Paulo Cezar Castanheira], primeiro volume da coleção "Estado de Sítio", da ed. Boitempo.
Com uma maneira peculiar de articular história da filosofia, crítica da cultura, psicanálise, política e cinema, Zizek se transformou em figura de proa no debate contemporâneo. Certamente, esse lugar de destaque não é apenas o resultado de seu estilo vertiginoso fundado em cortes sucessivos de planos conceituais. O que realmente marca Zizek é a defesa do resgate do projeto racionalista moderno com suas aspirações de emancipação, assim como sua força de crítica da alienação.
Isso talvez explique porque, andando na contramão do momento filosófico atual, Zizek prefira conservar "velhas palavras" e expressões, como: universalidade fundada sobre um acesso possível ao Real, verdade unívoca, sujeito, história em que acontecimentos ainda são possíveis, crítica da ideologia, do fetichismo, do simulacro (ou semblante) e outros temas da mesma constelação. Uma constelação mobilizada, em "Bem-Vindo ao Deserto do Real!", para analisar o 11 de Setembro e suas implicações. É ela que estará certamente presente na palestra que dará em São Paulo no dia 5, na próxima sexta-feira.
Nesta entrevista exclusiva, concedida por telefone ao Mais!, Zizek fala de seu novo livro, de sua trajetória intelectual e de alguns elementos centrais da crítica que faz à cultura contemporânea.

O conceito central de "Bem-Vindo ao Deserto do Real!" é a noção de uma "paixão pelo real", que teria animado tanto os atos revolucionários no século 20 quanto o terrorismo. Como se pode entender essa paixão pelo real?
Há uma questão importante aqui porque eu uso o mesmo termo em dois sentidos que não devem ser confundidos. De uma maneira meio ingênua, eu diria que há uma boa e uma má paixão pelo real. A má paixão assenta-se na idéia de que a única experiência potente é a experiência de transgressão, seja na figura da violência política, da sexualidade sadomasoquista etc. Essa paixão pelo real, eu a vejo no terrorismo e, por exemplo, na fascinação do revolucionário que, para defender a causa, não teme ir até o fim e fazer o trabalho sujo que vai contra seus princípios morais privados.
Mas essa paixão pelo real é complementada atualmente pelo seu inverso aparente, ou seja, por uma certa paixão pelo semblante, pelo simulacro, pelo espetáculo. Os dois estão interconectados e o terrorismo mostra isso muito bem. Por um lado, ele é o resultado de uma paixão pelo real, paixão daqueles que afirmam: "Vamos agir brutalmente", mas seu efeito final é o de um grande espetáculo explosivo que nos fascina.
Eu diria que o que falta aqui é a noção lacaniana de "real", que nada tem a ver com essa noção meio batailliana [referência ao escritor Georges Bataille (1897-1962)] de transgressão, de experiência extrema e de estetização da violência. Para Lacan, o "real" é apenas uma espécie de ruptura na ordem simbólica, de impossibilidade lógica que marca um antagonismo irredutível.

E como se pode pensar um ato feito em nome dessa segunda paixão pelo "real"?
Seguramente, nós poderíamos utilizar algumas noções desenvolvidas por Alain Badiou e por Jacques Rancière. Se concebermos o "real" a partir dessa estratégia formal, como o nó sintomal que marca o ponto de ruptura do edifício social, então diremos que o verdadeiro ato político indica o ponto de inconsistência do sistema social. Com isso, ao indicar esse ponto de inconsistência, ele pode mudar as próprias coordenadas do sistema. Pode parecer um pouco abstrato, mas tentei demonstrar o que entendo por um verdadeiro ato político ao falar de Lênin.

O sr. apareceu inicialmente no Brasil como o responsável por uma renovação da abordagem psicanalítica da política e da cultura via Lacan. Do seu ponto de vista, qual a contribuição maior que a psicanálise lacaniana pode fornecer para a compreensão da contemporaneidade?
Creio que a teoria lacaniana pode dar conta do paradoxo fundamental de nosso universo simbólico nesta época que chamamos de permissiva, pós-ideológica etc. A maneira lacaniana de definir o supereu funciona perfeitamente para explicar como, nesta época permissiva, temos injunções superegóicas ainda mais fortes. Não estamos mais diante da velha situação psicanalítica descrita por Freud por meio da idéia de supereu. Situação que articulava civilização e repressão ao insistir que não podemos gozar porque internalizamos proibições sociais e uma autoridade paterna que culpabiliza o prazer sexual. Nesse contexto, a idéia era de que o trabalho analítico ensinaria você a suspender tais proibições, permitindo o gozo de uma sexualidade normal.
O que temos hoje é o exato oposto dessa situação. A injunção social diz hoje: "Goze de todas as maneiras!". Goze sua sexualidade, realize seu eu, encontre sua identidade sexual, alcance o sucesso ou, mesmo, goze uma ascese espiritual.
Assim, o que o torna culpado hoje não é o fato de você transgredir alguma proibição sexual, mas, ao contrário, o fato de você não transgredi-la, de você não gozar. Agora, se há uma coisa que a psicanálise pode nos ensinar, não é "como você deve gozar", mas "você não é obrigado a gozar".
Vale a pena insistir nesse ponto. Contrariamente ao que acreditamos hoje, não vivemos em uma sociedade hedonista. Você não é absolutamente livre para gozar, até porque há sempre um complemento contraditório e paradoxal que diz: "Goze de todas as maneiras... mas de maneira segura".
O resultado é que vivemos em um mundo de café sem cafeína, carne sem gordura e de chocolates laxantes que dizem em seus anúncios: "Se você tem constipações, coma mais chocolate". Creio que a psicanálise pode ainda nos auxiliar bastante na compreensão de tais paradoxos.

Um outro ponto importante de suas análises da cultura é a crítica ao multiculturalismo e à política contemporânea de identidades.
Minha crítica ao multiculturalismo ocidental, em sua tentativa de reconhecer diferentes culturas, estilos de vida, identidades sexuais, étnicas e religiosas, procura levar em conta dois aspectos. Primeiro, creio que a lógica do reconhecimento própria ao multiculturalismo tenta simplesmente obliterar a lógica dos conflitos político-econômicos. O fundamento de tais conflitos é deslocado para o terreno da cultura a fim de esvaziá-lo. Isso é empiricamente discernível na maneira como o multiculturalismo afirma: "Reconhecemos a realidade da exploração econômica, do impasse político, mas devemos focar nosso interesse na dimensão do reconhecimento das diferenças culturais".
Por razões filosóficas, não acredito que o reconhecimento das diferenças seja o último horizonte da política. Para reconhecer você como diferente, nós devemos partilhar um campo mínimo de solidariedade. Sem isso, a diferença não é interessante para o pensamento. A diferença não vem primeiro.
Por outro lado, creio que o multiculturalismo, no final das contas, funciona como o seu oposto. O que quero dizer com isso? Para mim, o outro lado desse fenômeno multicultural de pregar o reconhecimento da diferença é a obsessão pelo assédio. Mas eu diria que tudo o que outro ser humano pode fazer contigo pode ser visto como uma forma de assédio.
Essa obsessão pelo assédio só demonstra que, no nosso contexto ocidental, tolerância significa: "Vamos tolerar o outro desde que ele fique a uma distância segura". O que não quer dizer outra coisa além de: "Eu realmente não tolero sua proximidade, não chegue muito perto de mim". Tolerância, no multiculturalismo, é apenas o outro nome da intolerância.

Ao criticar o muticulturalismo, o sr. sempre insiste na necessidade de a política sustentar a categoria do universalismo. Mas como pensar hoje o universalismo?
Primeiramente, precisamos de uma noção muito precisa de universalismo. O universalismo do qual falo nada tem a ver com a noção de uma universalidade neutra e acima de todos os conflitos, como se alguém lhe dissesse: "Você tem o seu lado, eu tenho o meu, mesmo assim vamos procurar um solo mínimo comum não problemático". Meu universalismo é conflituoso no sentido de acreditar que não é uma noção neutra que nos une. O que nos une é a universalidade do conflito. A solidariedade de que falo não é a solidariedade daqueles que procuram se encontrar em um campo para além dos conflitos. Ela é a solidariedade que só aparece no interior do conflito.
Isso pode ficar mais claro se pensarmos em uma idéia presente tanto no cristianismo antigo quanto no marxismo. Ela afirma que, em uma situação concreta de conflito social, a verdade não é neutra, como se precisássemos sair da situação para a percebermos. A verdade é própria a um lado, ela só é acessível por meio de uma posição partidária. Para alcançar a verdade, devemos assumir um lado.

O sr. poderia desenvolver melhor essa idéia do cristianismo como defesa de uma verdade que só pode aparecer no interior de um conflito?
Mesmo sendo radicalmente ateu, eu escrevi vários livros sobre o cristianismo. O que me interessa não é a religião cristã como instituição, mas uma certa lógica sociossimbólica que apareceu primeiro na cristandade e que atualmente está mais viva fora do que dentro das igrejas. O que é essa lógica? Talvez a maneira mais simples de explicá-la seja lembrando que, em todas as éticas pré-cristãs e pré-judaicas, a injunção ética básica sempre foi: "Faça corretamente seu trabalho!". Por exemplo, uma mulher deve ser uma boa mulher, um escravo deve ser um bom escravo, um rei deve ser um bom rei e por aí vai.
Mas, para a tradição judaico-cristã, você deve transcender sua posição particular. Em última análise, a injunção ética aqui é: anule sua identidade particular. A melhor noção, nesse sentido, é a de "renascer na fé", que, para mim, significa um ato que pode obliterar o pacto simbólico, que pode instaurar um novo começo revolucionário. Nós não somos totalmente determinados por nosso passado nem estamos presos na roda eterna da fortuna.
O que me interessa no cristianismo é como uma lógica coletiva preciosa foi formada a partir desse renascimento e faz com que transcendamos nossas particularidades. Veja, por exemplo, o que aconteceu quando Cristo morreu na cruz. Aqui, eu sigo Hegel. Não se trata de acreditar que Cristo, a representação terrena de Deus, retorna novamente ao Pai. Hegel nos lembra que quem morre na cruz é o próprio Deus-Pai, o Outro morre na cruz. Isso significa que nós fomos deixados sozinhos, nada mais pode garantir nossas ações. O Espírito Santo, que ficou entre nós após a morte de Cristo, é apenas a promessa de uma coletividade sem garantias.
Mas essa solidão permite o aparecimento de uma coletividade revolucionária emancipatória visível nas primeiras comunidades cristãs. Uma comunidade dos que não têm identidade, dos que não estão ancorados na certeza do Deus-Pai, mas que lutam em situações concretas de conflito social para afirmar a universalidade.
Isso é o oposto da política contemporânea de identidades ou do neofundamentalismo. Sempre fui sensível ao fato de a política de identidades e o neofundamentalismo conservador partilharem, paradoxalmente, uma característica comum: todos eles acreditam na existência de identidades particulares. Com isso, eles anulam todo o potencial revolucionário legado pelo cristianismo.

Ainda sobre política, o sr. também é conhecido por criticar a idéia de democracia como significante mestre da ação política atualmente. Isso significaria que, do seu ponto de vista, não há verdadeira ação política no interior do sistema parlamentar de representação?
Veja, eu tento evitar essa armadilha, pois, ao mesmo tempo em que critico a democracia parlamentar, não me sinto satisfeito com gente como Negri e Hardt, em "Império" [lançado no Brasil pela ed. Record], defendendo uma política fora da representação, uma política da multiplicidade e assim por diante. Não creio que basta simplesmente sair do sistema de representação. Para explicar de uma maneira simples, diria que, mesmo admitindo que o apelo à democracia pode, em certas situações, mobilizar um grande potencial de emancipação, a questão é: o que efetivamente "democracia" significa hoje? Sobre o que decidimos hoje? Podemos decidir a respeito das questões cruciais? Nesse sentido, eu posso facilmente imaginar situações nas quais as regras democráticas podem ser contraprodutivas, mesmo para a defesa dos interesses da liberdade. Não se trata de pregar um populismo simplista. Trata-se apenas de não fetichizar a democracia e ser capaz de encarar seus limites. Pegue as agências econômicas que tomam as decisões-chave atualmente, como o FMI [Fundo Monetário Internacional] e a OMC [Organização Mundial do Comércio].


Todas as outras lutas -feminismo, anti-racismo, o Terceiro Mundo- são lutas que ainda devem ser mediadas pela dinâmica do capitalismo global


Elas não estão submetidas a nenhuma forma de controle democrático. Mas como faríamos? Uma eleição mundial com 4 bilhões de eleitores? Isso nunca funcionaria. Então devemos admitir que as decisões centrais não têm legitimidade democrática alguma. Nesse sentido, minha última palavra seria um certo retorno à economia política. Não há como negar que a dinâmica do capitalismo global é a dinâmica do mundo atual. Todas as outras lutas -feminismo, anti-racismo, o Terceiro Mundo, reconhecimento- são lutas que ainda devem ser mediadas pela dinâmica do capitalismo global. E é aqui que nosso futuro será decidido.

O sr. começou como um filósofo heideggeriano, mas logo em seguida seus trabalhos foram dedicados a uma aproximação entre Lacan e a tradição dialética hegeliana. Qual foi a razão dessa guinada?
Primeiro, creio que é importante dizer que Heidegger foi, para mim, inicialmente um Heidegger mediado por Derrida. De uma certa maneira, eu comecei como um derridiano. Dito isto, eu afirmaria que algo da situação na antiga Eslovênia condicionou minha passagem de Heidegger a Hegel, já que, na época comunista, a fenomenologia heideggeriana era praticamente a filosofia hegemônica junto de uma grande parcela dos intelectuais dissidentes. Os mesmos intelectuais que depois iriam engrossar as fileiras do nacionalismo esloveno.
Nos círculos dissidentes, a leitura obrigatória era Heidegger, enquanto, nos círculos do partido, por incrível que pareça, a leitura obrigatória era a Escola de Frankfurt. O que pode ser explicado se você lembrar que a ideologia do socialismo iugoslavo de autogestão se fundava sobre uma crítica à burocracia do partido e do Estado em certa medida próxima àquela que podíamos encontrar no marxismo ocidental. A ideologia de partido na Iugoslávia era uma crítica à ideologia de partido.
Mas o fato marcante para minha geração foi o choque do encontro com o pensamento francês, ou seja, aquilo que na época chamávamos de "estruturalismo". Para nós, foi muito sintomático que tanto o pensamento dissidente quanto o pensamento oficial tivessem reagido de maneira tão virulenta ao pensamento francês. Isso nos fez pensar.
Sobre Hegel, diria que ele fazia parte da formação de base de todo intelectual na Eslovênia, um Hegel mediado pela Escola de Frankfurt. Minha geração tomou distância desse Hegel, mas se decepcionou rapidamente com as interpretações heideggerianas. Talvez tenha sido esse duplo distanciamento que me levou a procurar um novo Hegel, agora a partir do pensamento francês, em especial de Lacan.

Vladimir Safatle é professor de filosofia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e organizador de "Um Limite Tenso - Lacan entre a Filosofia e a Psicanálise" (ed. Unesp).


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