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São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2003

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+ teatro

ALUSÕES CIFRADAS E DUPLOS SENTIDOS DA LINGUAGEM ATRIBUEM FORÇA IRÔNICA À "ANTÍGONA", DE SÓFOCLES, E CONFEREM A ELA SUA DIMENSÃO AO MESMO TEMPO DE TRAGÉDIA E SUSPENSE

UM DRAMA CRISTÃO DE MARTÍRIO

Divulgação
Cena da peça "Antígona", em montagem do grupo Os Satyros


Kathrin H. Rosenfield
Lawrence F. Pereira

especial para a Folha

Seria Antígona a heroína piedosa que admiramos pela coragem de afrontar o decreto de Creonte? E ela e seu noivo seriam simples vítimas da sede de poder de um tirano insensível? Eis a leitura mais corrente que torna essa tragédia de Sófocles [cerca de 496 a.C.-406 a.C.] um drama cristão de martírio. Mas, nessa polarização, onde ficaria a trama "trágica", o suspense, o tempo e a tão elogiada "ironia" de Sófocles? Nas entrelinhas, no tom das alusões e nos duplos sentidos. Ouvi-los requer, além de uma interpretação coerente e de comentários que explicam as referências históricas, uma tradução capaz de fazer ouvir as outras vozes assombrosas. É nos diálogos entre Creonte e Hemon que se vislumbram as múltiplas facetas da heroína e o problema de seus respectivos estatutos na genealogia.

Detalhe ínfimo
Nada mais sublime que a admiração reservada por Hemon a Antígona. Impressiona pela sua proximidade ao louvor ritual reservado pelos gregos aos guerreiros vindos das grandes batalhas. O jovem filho de Creonte parece aceitar submeter-se à noiva assim como à estirpe dela. Eis um detalhe ínfimo, não raro esquecido, que a custo se faz notar, mas que indica a intenção de Sófocles de conectar o problema sucessório ao imaginário jurídico-político do século 5º a.C.. Instituição vigente nesse século, o chamado "epiclerado" garantia à filha de um rei morto sem descendência o direito e o dever de parir um descendente para o seu próprio pai. Se Creonte fosse um contemporâneo de Sófocles, seria obrigado a casar Antígona, no regime do epiclerado, com seu mais próximo parente, Hemon. Nesse tipo de casamento, o noivo deve renunciar à descendência própria, cumprindo o dever de engendrar um filho para seu sogro. Eis por que, no rito nupcial, a noiva "epikler", em vez de renunciar à sua estirpe e adotar a casa do marido, permanece no lar de seus ancestrais. Imaginariamente, ela é esse lar, ela é a matriz ou raiz da descendência por vir, o que se reflete no nome Antí-gona (anti = "no lugar da", gone = "descendência").

Aliança nefasta
É evidente que Creonte, preocupado com a poluição religiosa (miasma) da cidade pelo incesto e o fratricídio, vê e sente o casamento entre Hemon e Antígona como mais uma aliança nefasta. Ele buscará distanciar-se da antiga linhagem, portadora da tara de uma maldição terrível. Instaurando no trono sua própria linhagem (não poluída), espera salvar Tebas, mas esbarra na própria resistência de seu filho, Hemon.
Delineou-se, na tradução atual, o dilema de Creonte ao dissuadir Hemon do casamento amaldiçoado. O trecho aqui reproduzido, a partir do verso 683, contém a réplica de Hemon às tentativas paternas de o dissuadir de sua união com Antígona. Procuramos assinalar a profunda ambiguidade do discurso de Hemon. Sua cautela, quase um temor respeitoso para com o pai, nós a exprimimos fazendo sentir que Hemon parece escolher seus termos antes de introduzir seu verdadeiro ponto de vista.
Embora Hemon ouça, ele não acolhe as exortações paternas, pois, além de amar sua noiva, admira nela o espírito heróico dos Labdácidas. Seu amor aprofunda-se e se amplia: ele compartilha da visão genealógica, política e cívica da (linhagem da) sua noiva.
Creonte o acusa de estar cegado pelo desejo. Mas a possessão erótica é apenas um aspecto deste elã juvenil, que faz Hemon desejar restabelecer as relações que uniam, no passado, as duas linhagens. A qualidade ampla e indeterminada do amor de Hemon transcende a figura convencional da noiva. Seu amor abrange toda a existência, levando-o a reconhecer em Antígona uma figura para além da imagem que a época clássica se fez de uma mulher. Esse mesmo elã o torna cego para os tormentos de seu pai. Ignora a argumentação de Creonte, opõe-lhe um discurso repleto de graves sentenças. Justas e belas, estas não levam em conta a poluição de Tebas, a desordem das relações incestuosas que (des)unem as famílias e desarticulam o Estado. Há distância, portanto, entre os problemas concretos de Creonte (a despoluição de Tebas) e o belo discurso, repleto de lugares-comuns da ideologia democrática ateniense.

Leitura e encenação
Como um pedagogo, Hemon instrui seu pai: este deve escutar as assembléias, ceder aos melhores conselhos. No verso 737, Hemon repreende Creonte com uma sentença de Péricles que estabelece o princípio democrático (a participação de todos no exercício do poder). Mas a réplica revela que Creonte tem mais experiência (inclusive retórica). Calmamente, ele escolhe do catálogo de sentenças de Péricles uma outra máxima em situações de excepcional perigo -as decisões devem ser assumidas pelo chefe (verso 738). A atual tradução está voltada tanto para a leitura como para a encenação. Escolhemos o alexandrino como verso base para as partes dialogadas. Nesse cabem, extensiva e claramente, as informações constantes no verso grego. Cabem os artigos, as nuanças sintáticas, as entonações, tão importantes para a encenação. No longo discurso de Hemon é possível detectar hesitação, desejo, coragem, respeito juvenil ao pai, despeito. Sua fala é pura nuança. As entonações do personagem são acompanhadas de variações acentuais e rítmicas nos versos. Receptivo no início, cuidadosamente prudente ou submisso, o discurso de Hemon, do ponto de vista do verso, é tortuosamente recortado ("Quanto a isso que falas, se é verdade ou não/ Pra afirmar, não posso nem quero ter poder"). Se o primeiro verso, na tradução, é um alexandrino acentuado na sexta sílaba (mas sem divisão exata de hemistíquios), o segundo, acentuado atipicamente na quinta, hiatizado em três unidades semânticas independentes, represa a fluidez segura do alexandrino clássico, sugerindo hesitação, prudência.

Corneille e Mallarmé
Mas em seguida Hemon se encoraja, sua fala dispara e a ritmação ganha cadência. Então o ritmo se aproxima do verso dramático de Corneille assim como em outros trechos oportunos se aproximara dos ritmos suaves e coloquiais de Verlaine e Mallarmé. Os acentos da fraqueza preconizam o personagem "psicológico" euripidiano. O tom sentencioso que encobre a hesitação soa no ritmo do seu discurso ("Vê como no cairel da torrente impetuosa/ A árvore que cede salva a sua ramagem,/ Enquanto a que resiste é logo desraigada./ E quem põe muita força em firmar o timão/ Sem folgar a pressão, vê a nave emborcar, E prossegue a viagem com a quilha para o ar!").
Ritmos binários ascendentes e ternários ascendentes se repetem. Dão velocidade, patos, ao discurso de Hemon. Procedimento tradutório que, portanto, tira proveito das virtudes tanto neoclássicas como modernas do alexandrino (alexandrino "romântico", "espanhol" e outros). O verso branco, carente de rima e com acentos variáveis, exige certa constância rítmica, mas também rupturas pontuais para que se chegue à coloquialidade desejada do "falar".


Kathrin H. Rosenfield é professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora de "Antígona - De Sófocles a Hölderlin" (ed. L&PM).
Lawrence F. Pereira é professor de literatura grega na Universidade Federal de Santa Maria (RS).


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