UOL


São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2003

Texto Anterior | Índice

Ponto de fuga

Não há mais para onde ir

Quem tinha 20 anos em 1970 sabe. O mundo era então variado, colorido, pitoresco, embebido de promessas e descobertas. Culturas distantes guardavam segredos que, uma vez encontrados, se transformavam em revelações, aludindo a sentidos profundos, perdidos ou esquecidos, pelos homens do Ocidente. Esperava-se que o outro, o estranho, o estrangeiro, fosse explorado, no sentido primeiro e positivo da palavra, com um fervor alegre e libertário. As longas viagens ficavam mais fáceis: eram fugas que embelezavam o presente.
As coisas mudaram, porém. Os exotismos estão cada vez menos intactos, e os olhares, cada vez mais gastos. Bernardo Carvalho tomou, várias vezes, o tema da viagem em seus livros. No penúltimo, "Nove Noites" [Cia. das Letras], introduziu, sublinhando, o confronto de culturas. Não promovia, ali, um processo à antropologia, mas duvidava das capacidades do olhar. Há um paradoxo nisso, porque o olhar do autor, sua percepção das coisas são agudos, invejáveis. Tão agudo, porém, esse olhar, que termina por desconfiar de si mesmo. O romance mais novo, "Mongólia", que vem agora publicado pela Companhia das Letras, é um diário de viagem transformado em ficção, um pouco à maneira de Hawthorne, no século 19, com seu "Fauno de Mármore". Hawthorne, que era um puritano da Nova Inglaterra, se confrontava, em Roma, com a civilização mediterrânea, clássica e ensolarada, católica e voluptuosa. "Mongólia" se passa no lugar mais longínquo e bizarro possível, mas nele não existe mais confronto entre culturas nem busca do outro. Nem o outro é, de fato, outro.

Mochila - Bernardo Carvalho deve ser o turista mais mal-humorado que existe. Não se entusiasma nem se deslumbra, desconfia. Sublinha os maus cheiros, a abominação das comidas locais, a decadência dos lugares. Talvez exista um prazer em não ter prazer, para não se deixar enganar. A Mongólia de Bernardo Carvalho é vista por filtros muito fortes: um narrador principal e dois diários que se superpõem.
Há a busca primordial, concentrada numa imagem misteriosa. Dá a impressão de conservar motivos e impulsos essenciais. Se parece urgente e intensa, é também distante e inapreensível, como se vista por uma luneta ao contrário. Chega ao leitor por intermediários cansados, descorçoados: a narração não retraça a busca, mas a busca da busca. Como Houellebecq, que desloca seus personagens pelos lugares "turísticos" deste planeta, para melhor sublinhar o absurdo contemporâneo.
Bernardo Carvalho, porém, não projeta essa luz cínica e desabusada sobre as relações humanas, tão forte em Houellebecq, nem reduz seu mundo à frieza indiferente de "Plataforma" [ed. Record] ou de "Lanzarote". "Mongólia" guarda antes uma poesia dolorida, como se pode encontrar em Kafka ou Borges, autores a quem o livro se refere e se filia. O final tem um sabor borgiano; por mais determinados que sejam os desencontros, os seres acabam se unindo pelo destino que se cumpre. É um antigo sentimento romântico que pulsa lá no fundo.

Percursos - A narrativa de "Mongólia" toma aos poucos o leitor e o prende. O tom discreto tem a força de melhor revelar a inanidade das procuras obsessivas e de esmaecer contornos, confundindo rastros. "Nove Noites" é mais nítido que "Mongólia", nele a gênese da escrita não se delineava a partir de uma viagem, mas de uma pesquisa sólida. O novo romance sugere menos um labirinto que um areal movediço.

Prendas - "Mongólia" confirma Bernardo Carvalho como grande escritor. Renova, refinando, a textura poética de sua obra. O livro traz uma pista de que seu autor tenha um outro dom. Houellebecq editou, junto com "Lanzarote", um álbum de fotografias que ele mesmo tirou, duras, implacáveis, espantosas. A capa e a contracapa de "Mongólia" trazem três fotos feitas pelo autor, cujas belezas não parecem ser casuais. Têm uma respiração ampla, algo de cósmico, integrando o céu e as nuvens, exaltando o que é retratado sem recursos fáceis. Elas levam a desejar uma exposição, já que são poucas amostras e, por isso mesmo, dão vontade de ver mais.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


Texto Anterior: + trecho
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.