São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2008

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Ponto de Fuga

Cortem-lhe os cabelos!


O Teatro Municipal de São Paulo teve a excelente idéia de montar "Sansão e Dalila", ópera de Saint-Saëns, uma obra-prima da volúpia cruel

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

É como a Rainha de Copas, daquela Alice que passeou pelo país das maravilhas. Qualquer coisinha, ela mandava: "Cortem-lhe a cabeça!". Mulheres exóticas, irresistíveis, destruíam e devoravam os machos.
Aranhas voluptuosas. Helena de Tróia, Carmen, Semíramis. Theda Bara, vampe dos primeiros filmes mudos, que nascera em Cincinnati e se fazia passar por uma princesa egípcia: algum marqueteiro daquela época teve a inspiração de inventar que seu nome era o anagrama de "arab death", morte árabe.
A Condessa Vésper, criada por Aluísio Azevedo num ótimo romance que pouca gente lê: ela morre atingida por dois tiros de pistolas carregadas com diamantes. Salomé, que sussurra em francês na peça de Wilde e berra em alemão na ópera de Richard Strauss, pedindo a cabeça de João Batista.
Dalila, que se contentou em raspar o cocoruto de seu Sansão halterofilista porque sabia que, sem a crina, ele pifava. Oscar Pereira da Silva, velho mestre que era grande nos temas apimentados, figurou-a num de seus melhores quadros; Cecil B. de Mille renovou seu mito no cinema.
Fortificou-se, no século 19, uma pavorosa obsessão sexual, que dominou os medos masculinos da "belle époque". Eram as belas damas sem piedade, expressão que Keats cunhou em verso, e serviu de título para um capítulo de "A Carne, a Morte e o Diabo na Literatura Romântica" (editora Unicamp), formidável livro de Mario Praz.
Todo esse intróito sobre a mulher fatal é pelo seguinte: o Teatro Municipal de São Paulo teve a excelente idéia de montar "Sansão e Dalila", ópera de Saint-Saëns, cuja estréia se deu em 1877, uma obra-prima da volúpia cruel.

Brilhantina
"Acadêmico", "parnasiano": os modernos condenaram o mestre, que ganha, hoje, leituras mais inteligentes de sua música e sua personalidade.
O absoluto domínio técnico no compor em nada abafou a inspiração de Saint-Saëns.
"Sansão e Dalila" é perfeita, de beleza soberana. Nela se evidenciam as melodias largas e ondeantes, os ritmos dosados, a expressão dramática, os matizes furta-cor da orquestra.
Os desejos sensuais não dissolvem a música em nenhuma deliqüescência decadente, porque o compositor soube construir com amplidão e grandeza.
Deu ao coro um papel preponderante.
No Municipal, quando a orquestra iniciou suavemente e as vozes brotaram, o público se imobilizou, suspenso naqueles sons. Jamil Maluf dirigiu a obra com mais energia que lirismo, acentuando tensões e obtendo bela resposta de uma Sinfônica Municipal em grande forma.

Pente
Nem todos os fios de cabelo, porém, estavam no lugar, nem a tesoura inteiramente afiada.
A Dalila importada da Argentina, Cecilia Diaz, com voz desigual, desaparecendo nos graves, sacrificando todo fraseado, pronunciava um francês incompreensível; o Sansão inglês, Richard Berkeley-Steele, tinha dificuldade nos agudos. Ainda assim, houve um momento de graça na cena da sedução.
Ao contrário, Leonardo Neiva, brasileiro, foi um portento, como sacerdote de Dagon: ao cantar com Dalila no segundo ato, ouvia-se quase que só sua voz, poderosa, justa, bem timbrada.

Cortes
Feiosos e pobres, os cenários de Hélio Eichbauer, com grandes bolas de Natal penduradas aqui e ali. A direção cênica de André Heller-Lopes tentava salvar essa tristeza visual com idéias nem sempre bem-sucedidas. Mas, defeitos ou não, a última récita é hoje, e quem for terá momentos muito belos.


jorgecoli@uol.com.br


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