São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2008

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VANGUARDA DE RAIZ


Ativista ambiental, Frans Krajcberg diz que deseja "gritar" com seu trabalho, que utiliza troncos de árvores calcinados; influenciada pelo budismo, a cantora e coreógrafa Meredith Monk compara sua obra a uma "canção de ninar"


Às vezes os artistas pensam que descobriram uma forma, mas a natureza é muito mais bela e viva
(Frans Krajcberg)

Minha atitude política como artista é fazer obras que não possam ser commodities
(Meredith Monk)

Fernando Donasci/Folha Imagem
A cantora e coreógrafa Meredith Monk e o artista plástico Frans Krajcberg durante encontro na Oca, onde o brasileiro expõe esculturas e fotografias

ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO

Isto parece um casamento!", graceja a multiartista Meredith Monk, ao ser puxada pelo braço, mais uma vez, por Frans Krajcberg. Enlaçados, fizeram sua caminhada pelo bosque artificial montado na Oca, que abriga "Frans Krajcberg - Natura", parte das comemorações dos 60 anos do Museu de Arte Moderna de São Paulo, no parque Ibirapuera.
Aparentemente, para a criadora de "Impermanência", casamento não é uma idealização envolvendo almas gêmeas, mas confronto entre seres muito distintos. E foi esse encontro improvável, entre a mística Monk e o ecologista Krajcberg, que a Folha testemunhou com exclusividade no último dia 20, na própria Oca.
Também a convite do jornal, participou do encontro ainda Teixeira Coelho, crítico e curador do Museu de Arte de São Paulo.
O "casal" evoca as cenas do espetáculo de Monk, apresentado nos dias 14 e 15 em São Paulo, em que membros do seu Vocal Ensemble proferem, em meio a uma coreografia, idiossincrasias como "Ela chama o tofu de "travesseiros'" ou "Ele sempre toca a parede antes de sair de casa".
Kracjberg -que se notabilizou pelas esculturas feitas de troncos retirados de áreas de queimada- bate na mesa para clamar "precisamos salvar a Amazônia".
Já Monk, em voz clara e suave, faz questão de dissociar seu trabalho de qualquer ativismo, definindo-o como "amplo".
Mas ambos coincidem em alguns pontos: tanto Krajcberg, 87, quanto a cantora-coreógrafa, que fez 66 anos naquele dia, rejeitam traduzir suas obras em conceitos.
Um e outro são pioneiros no que fazem -e, em ambos os casos, há décadas. E, se há uma aliança entre eles, ela está na apologia da natureza.
O polonês naturalizado brasileiro -"nunca fui polonês", interrompe Krajcberg, radicado no Brasil desde o final dos anos 1940- denuncia a destruição das florestas com fotografias explícitas; a norte-americana busca em suas canções desarticuladas, nas coreografias ritualísticas o atemporal, o equilíbrio -darma, a lei natural do budismo.
Quem identificou esse nó ligando ramos tão diferentes da arte foram os responsáveis pela vinda de Monk ao Brasil, da Dharma/Arte. Essa produtora tem o nome do livro que planeja lançar em 2009, escrito pelo mestre budista Chögyam Trungpa, morto em 1987, com introdução à edição brasileira escrita por Monk.
A instituição, representada por seu coordenador, Carlos Inada, pela cantora Madalena Bernardes e pela atriz Leticia Spiller, engrossava o séquito de Meredith Monk durante o encontro e interveio no bate-papo organizado pela Folha na Oca. Leia a seguir os principais trechos do encontro.
 

FOLHA - A sra. escreve, na introdução a "Dharma/Arte", de Trungpa: "Lembro-me também de uma questão com a qual me identifiquei fortemente, morando em Nova York.
Um homem disse: "Vivo em Nova York, e é muito barulhento. Como devo fazer minha prática de meditação?". Trungpa respondeu: "Apenas pense que os táxis são macacos". E acrescentou: "A paisagem de Nova York é feita dos rostos das pessoas".
Quando olho de verdade para o rosto das pessoas, esses rostos são nossas montanhas, nossas árvores e nosso céu em Nova York". Que natureza podemos ver em São Paulo?
MEREDITH MONK
- Vejo rostos humanos.
FRANS KRAJCBERG - Natureza não existe em São Paulo. Afora algum pequeno parque abandonado, não há respeito pelas culturas, não há regras. Não há algo como [o parque de] Bagatelle, em Paris... interesse por ecologia, pela saúde do planeta.
São Paulo está dormindo.
A exposição que fiz em Bagatelle... nunca vi tanta gente sair chorando. A instalação foi muito forte. Essa fumaça, o barulho do fogo vêm de Paris, mas lá dava para sentir [o ambiente de queimada na instalação].
E, no filme do Waltinho Salles ["Krajcberg - O Poeta dos Vestígios"], eu estava no meio do fogo quando ele me filmou.
"Estou de novo na guerra." Precisamos acordar. O mundo está na UTI, tudo pode acontecer.

FOLHA - Como atingir as pessoas
MONK
- A arte atinge mais profundamente que as palavras.
"Impermanência" fala dos processos de vida e morte.
É preciso saber que podemos morrer a qualquer momento, e saber que precisamos mudar o jeito de viver. A poesia do que se vê em sua arte, e talvez do que se ouve e sente na minha, é mais profunda do que palavras.
Temos a emoção, que pode fazer as pessoas mudarem. Elas são tocadas.

FOLHA - A mudança é um tema central nos dias de hoje?
MONK
- Sim.
KRAJCBERG - Querendo se esconder, a gente não vê a realidade. A temperatura do planeta não pode aumentar mais. A natureza é vingativa e está muito machucada.

TEIXEIRA COELHO - Há cientistas que dizem que o desastre já aconteceu, não há mais nada a fazer.
KRAJCBERG - Há chance, se a gente conseguir esfriar um pouco [a Terra].
LETICIA SPILLER - É possível, a natureza tem um poder tão grande de regeneração... Vi isso no Acre: terra infértil, morta, ser transformada em vida. Se os artistas se engajarem, a gente consegue.
KRAJCBERG - Ninguém fala nisto: não são só as árvores, tem um povo que vive lá, sendo destruído. Em Porto Velho [RO], chorei ao ver tantos índios na rua, jogados fora de suas terras.
Por que vender soja transgênica para engordar porcos da China, enquanto tantos morrem de fome?
MONK - E destruir árvores na Amazônia é destruir Nova York e todo o resto. É tudo interconectado. Outra coisa que a arte pode fazer é manifestar nossas interconexões, nossa interdependência no mundo.
Fisicamente, isso quer dizer que as árvores que caem na Amazônia afetam Nova York, Chicago, a Austrália... tudo.
Seu trabalho é sobre uma situação específica, mas o processo dessa situação se torna um protótipo de outros processos de destruição. Sinto-me próxima disso porque não é somente sobre destruição, mas sobre como a vida retorna. Em suas fotos, da destruição sai uma flor, a vida encontra seu caminho. São os ciclos.
KRAJCBERG - Você vê milhares de pássaros fugindo de queimadas, riquezas enormes queimadas. Como somos tão passivos?

MONK - Você acha que, quando as pessoas vêem suas obras, elas saem mudadas?
KRAJCBERG - Não sei. Perguntam: você é artista? Que significa sua arte? Uma sra. hindu perguntou-me em Davos [Suíça, onde participou do Fórum Econômico Mundial de 2004]: "Por que você faz essa arte"?

TEIXEIRA COELHO - E qual foi sua resposta?
KRAJCBERG
- "Minha senhora, fui oficial do Exército russo e, quando entrei na Polônia, liberei um campo de concentração com húngaros. Vi três montanhas de lixo: homens jogados como lixo."
"Quando estava no rio Juruena [MT], vi uma nuvem de urubus. "Lá deve ter alguma coisa", pensei. Fui de barco até lá; quando entrei na floresta, fechei os olhos e fiz a foto. Não dava para olhar: seis índios pendurados, centenas de urubus em volta."
Que arte devo fazer? Defender a vida. A vida não é só homem. Gostaria que meu trabalho gritasse cada vez mais alto.

FOLHA - A sra. vê outros gritos como o de Krajcberg ou os artistas embarcam no tema só porque...
MONK
- ... é moda? Seu trabalho é muito autêntico. É difícil pensar em que podemos fazer como artistas nesse mundo. Ao mesmo tempo, é preciso ser muito verdadeiro em relação a sua expressão, e sobre que tipo de verdade pode ser extraída daquela expressão.
Eu, por exemplo, não sei se posso fazer um tipo específico de trabalho político. Meu trabalho sempre foi de coisas atemporais, de modo que minha expressão não é tanto um grito, mas uma canção de ninar, assim como o tempo é circular.
E, sim, sempre há elementos que respondem ao mundo. Seu trabalho é mais direto, o meu é mais "redondo".

FOLHA - Parece que seu trabalho anterior era mais duro, tinha mais...
MONK
- Vigor.

FOLHA - Vigor, uma tensão que agora se tornou equilíbrio. Está em busca de equilíbrio?
MONK
- Trata-se de uma pesquisa do equilíbrio. Sinto que, conforme fico mais velha, desejo que cada obra em que trabalho seja também um processo contemplativo. É arte, mas é também um processo de contemplação -de perguntas que não têm resposta.

FOLHA - Monk fala em contemplação. O sr. se embrenha pelo mato e contempla? Busca uma imagem?
KRAJCBERG
- Não há um dia em que não faça fotos. Mas, quanto mais me aproximo da floresta, da natureza, mais descubro coisas que os artistas não vêem.
Às vezes os artistas pensam que descobriram uma forma, mas a natureza é muito mais bela e viva.
Há coisas impressionantes, como os manguezais. Quando fui ver os manguezais, havia um grande movimento de tachismo [corrente das artes plásticas, popular nos anos 1950, que privilegiava os movimentos espontâneos na pintura, com manchas].
O único tachista que tivemos [no Brasil] foi Antonio Bandeira [1922-67]
Quando vi os manguezais, disse: "Não é possível. No tachismo já é complicado de ver o movimento; mas as formas dos manguezais, nunca vi igual".
Como captar isso? Aí está.

TEIXEIRA COELHO - Mas vejo que suas fotografias têm uma determinada força, pertencem a um tipo de trabalho, e suas árvores são outro tipo de trabalho. Essas obras se aproximam do que ela fala, do atemporal, são uma construção poética; suas fotografias são uma abordagem direta do mundo. De certa forma, suas fotos denunciam muito mais a situação do que essas obras, que trazem um segundo momento, a recuperação da natureza.
KRAJCBERG - Não tem importância. Tenho milhares de fotos. Não sou fotógrafo, nunca vendi uma foto. Capto para descobrir, a cada vez, a riqueza que a natureza tem. Do homem aprendi muito: homem bárbaro que destruiu outros homens.
Mas a natureza -quanto mais fico perto dela, mais descubro.
Minha escultura é feita com objetos que eu trouxe do fogo.

TEIXEIRA COELHO - E que você transforma radicalmente. Suas fotos não provocam nas pessoas muito mais reações do que as esculturas?
KRAJCBERG - Não tenho só essas fotos. Perto do meu trabalho, tem de haver essas fotos: de onde vem o material, como destroem a natureza. [A escultura] é feita com o material que ficou -que você vê na foto. Gostaria de fazer um trabalho muito mais violento.

TEIXEIRA COELHO - Os trabalhos se juntam nesse momento: Kracjberg escapa do mundo real para fazer uma construção poética. É o mesmo tipo de trabalho, mas com meios inteiramente diferentes. Muita gente que estuda a arte chegou à conclusão de que a única coisa que a arte mostra são as relações entre os homens, não o mundo. Por mais que olhemos sua escultura ou vejamos sua dança e seu canto, não vamos ver o mundo. E então não vamos acordar em relação à Amazônia. Em outras palavras: a arte, em vez de revelar o mundo que está aqui, o esconde ainda mais. Talvez por isso você sinta a necessidade de colocar sua foto junto. Sua foto cava um buraco nessa camada de arte que você coloca por cima. E abre espaço para o mundo, pois só a arte não vai mostrar o mundo.
MONK - Só a arte vai mostrar o mundo, não? Mas você diz que, só com esculturas, não teremos informação sobre o mundo.

TEIXEIRA COELHO- Nada saberemos do mundo. Só veremos um trabalho belo, a idéia do belo.
MONK - Que também é uma idéia forte. Não sei se conseguiríamos uma ação política real a partir da visão de uma escultura. Sinto que, em nossa cultura, especialmente hoje -com velocidade e informação demais-, podemos, com nossas apresentações, quebrar certos hábitos de percepção, literalmente parar padrões habituais desse nosso sono.
É assim que se podem acordar as pessoas.
Se podemos torná-las cientes de seus próprios hábitos de percepção -não necessariamente estamos falando de algo tão específico quanto a Amazônia, e os artistas são especialistas em percepção-, eliminamos o blablablá, de modo a fazer pensar no agora.
É isso que podemos fazer como artistas. Não sei se conseguimos chegar a pôr as pessoas em ação.
MADALENA BERNARDES - E o blablablá a respeito de arte atrapalha a percepção das pessoas. Impede que as pessoas entrem desarmadas para a obra.
É pior no Brasil, onde os artistas não são respeitados.
MONK - Sabe o quê? É pior ainda nos EUA. Lá, tudo é commodity, incluindo arte. Uma pessoa meditando, uma imagem zen, e a pergunta: que carro devo comprar? É assim a propaganda. Tudo é uma questão de comprar.
E minha atitude política como artista norte-americana é recusar-me a fazer isso. Tomar uma posição anticommodity, fazer obras que não possam ser commodities. O Brasil vive um tipo de confusão, os EUA vivem outro; mas é, basicamente, confusão. No budismo, um dos "venenos" é a confusão.
KRAJCBERG - Você percebeu que [meu trabalho] não tem imagem do homem. Depois da guerra, meu grande desejo era fugir do homem. Que arte eu poderia fazer? Defender a vida.
E lutar contra esse barbarismo praticado. Como ser passivo, esquecer?
Até o fim de minha vida ela [essa arte] vai estar presente.
Se eu pudesse trazer as três montanhas de lixo [de homens mortos, em campo de concentração na Segunda Guerra], é isso que gostaria de fazer.
MONK - O que ele faz, suas experiências de vida -essa é a autenticidade de sua existência. É como se ele tivesse de trilhar esse caminho, como se não houvesse outra possibilidade.
Sua arte tem de seguir sua verdade. Cada artista tem de procurar sua verdade, o que dar ao mundo, e seguir esse caminho.

FOLHA - E para onde a sra. vai?
MONK - Sigo minha experiência. Espero ter sabedoria, que minha visão se abra, aspiro a fazer algo que seja benéfico.


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