Fernando Donasci/Folha Imagem
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A cantora e coreógrafa Meredith Monk e o artista plástico Frans Krajcberg durante encontro na Oca, onde o brasileiro expõe esculturas e fotografias
ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO
Isto parece um casamento!", graceja a multiartista
Meredith Monk, ao ser
puxada pelo braço, mais
uma vez, por Frans Krajcberg. Enlaçados, fizeram sua
caminhada pelo bosque artificial montado na Oca, que abriga "Frans Krajcberg - Natura",
parte das comemorações dos
60 anos do Museu de Arte Moderna de São Paulo, no parque
Ibirapuera.
Aparentemente, para a criadora de "Impermanência", casamento não é uma idealização
envolvendo almas gêmeas, mas
confronto entre seres muito
distintos. E foi esse encontro
improvável, entre a mística
Monk e o ecologista Krajcberg,
que a Folha testemunhou com
exclusividade no último dia 20,
na própria Oca.
Também a convite do jornal,
participou do encontro ainda
Teixeira Coelho, crítico e curador do Museu de Arte de São
Paulo.
O "casal" evoca as cenas do
espetáculo de Monk, apresentado nos dias 14 e 15 em São
Paulo, em que membros do seu
Vocal Ensemble proferem, em
meio a uma coreografia, idiossincrasias como "Ela chama o
tofu de "travesseiros'" ou "Ele
sempre toca a parede antes de
sair de casa".
Kracjberg -que se notabilizou pelas esculturas feitas de
troncos retirados de áreas de
queimada- bate na mesa para
clamar "precisamos salvar a
Amazônia".
Já Monk, em voz clara e suave, faz questão de dissociar seu
trabalho de qualquer ativismo,
definindo-o como "amplo".
Mas ambos coincidem em alguns pontos: tanto Krajcberg,
87, quanto a cantora-coreógrafa, que fez 66 anos naquele dia,
rejeitam traduzir suas obras
em conceitos.
Um e outro são pioneiros no
que fazem -e, em ambos os casos, há décadas. E, se há uma
aliança entre eles, ela está na
apologia da natureza.
O polonês naturalizado brasileiro -"nunca fui polonês",
interrompe Krajcberg, radicado no Brasil desde o final dos
anos 1940- denuncia a destruição das florestas com fotografias explícitas; a norte-americana busca em suas canções
desarticuladas, nas coreografias ritualísticas o atemporal, o
equilíbrio -darma, a lei natural do budismo.
Quem identificou esse nó ligando ramos tão diferentes da
arte foram os responsáveis pela
vinda de Monk ao Brasil, da
Dharma/Arte. Essa produtora
tem o nome do livro que planeja lançar em 2009, escrito pelo
mestre budista Chögyam
Trungpa, morto em 1987, com
introdução à edição brasileira
escrita por Monk.
A instituição, representada
por seu coordenador, Carlos
Inada, pela cantora Madalena
Bernardes e pela atriz Leticia
Spiller, engrossava o séquito de
Meredith Monk durante o encontro e interveio no bate-papo organizado pela Folha na
Oca. Leia a seguir os principais
trechos do encontro.
FOLHA - A sra. escreve, na introdução a "Dharma/Arte", de Trungpa:
"Lembro-me também de uma questão com a qual me identifiquei fortemente, morando em Nova York.
Um homem disse: "Vivo em Nova
York, e é muito barulhento. Como
devo fazer minha prática de meditação?". Trungpa respondeu: "Apenas
pense que os táxis são macacos". E
acrescentou: "A paisagem de Nova
York é feita dos rostos das pessoas".
Quando olho de verdade para o rosto das pessoas, esses rostos são nossas montanhas, nossas árvores e
nosso céu em Nova York". Que natureza podemos ver em São Paulo?
MEREDITH MONK - Vejo rostos humanos.
FRANS KRAJCBERG - Natureza não
existe em São Paulo. Afora algum pequeno parque abandonado, não há respeito pelas culturas, não há regras. Não há algo como [o parque de] Bagatelle, em Paris... interesse por
ecologia, pela saúde do planeta.
São Paulo está dormindo.
A exposição que fiz em Bagatelle... nunca vi tanta gente sair
chorando. A instalação foi muito forte. Essa fumaça, o barulho
do fogo vêm de Paris, mas lá dava para sentir [o ambiente de
queimada na instalação].
E, no filme do Waltinho Salles ["Krajcberg - O Poeta dos
Vestígios"], eu estava no meio
do fogo quando ele me filmou.
"Estou de novo na guerra." Precisamos acordar. O mundo está
na UTI, tudo pode acontecer.
FOLHA - Como atingir as pessoas
MONK - A arte atinge mais profundamente que as palavras.
"Impermanência" fala dos processos de vida e morte.
É preciso saber que podemos
morrer a qualquer momento, e
saber que precisamos mudar o
jeito de viver. A poesia do que
se vê em sua arte, e talvez do
que se ouve e sente na minha, é
mais profunda do que palavras.
Temos a emoção, que pode fazer as pessoas mudarem. Elas
são tocadas.
FOLHA - A mudança é um tema
central nos dias de hoje?
MONK - Sim.
KRAJCBERG - Querendo se esconder, a gente não vê a realidade. A temperatura do planeta
não pode aumentar mais. A natureza é vingativa e está muito
machucada.
TEIXEIRA COELHO - Há cientistas que
dizem que o desastre já aconteceu,
não há mais nada a fazer.
KRAJCBERG - Há chance, se a
gente conseguir esfriar um
pouco [a Terra].
LETICIA SPILLER - É possível, a natureza tem um poder tão grande de regeneração... Vi isso no
Acre: terra infértil, morta, ser
transformada em vida. Se os artistas se engajarem, a gente
consegue.
KRAJCBERG - Ninguém fala nisto: não são só as árvores, tem
um povo que vive lá, sendo destruído. Em Porto Velho [RO],
chorei ao ver tantos índios na
rua, jogados fora de suas terras.
Por que vender soja transgênica para engordar porcos da
China, enquanto tantos morrem de fome?
MONK - E destruir árvores na
Amazônia é destruir Nova York
e todo o resto. É tudo interconectado. Outra coisa que a arte
pode fazer é manifestar nossas
interconexões, nossa interdependência no mundo.
Fisicamente, isso quer dizer
que as árvores que caem na
Amazônia afetam Nova York,
Chicago, a Austrália... tudo.
Seu trabalho é sobre uma situação específica, mas o processo dessa situação se torna
um protótipo de outros processos de destruição. Sinto-me
próxima disso porque não é somente sobre destruição, mas
sobre como a vida retorna. Em
suas fotos, da destruição sai
uma flor, a vida encontra seu
caminho. São os ciclos.
KRAJCBERG - Você vê milhares
de pássaros fugindo de queimadas, riquezas enormes queimadas. Como somos tão passivos?
MONK - Você acha que, quando
as pessoas vêem suas obras,
elas saem mudadas?
KRAJCBERG - Não sei. Perguntam: você é artista? Que significa sua arte? Uma sra. hindu
perguntou-me em Davos [Suíça, onde participou do Fórum
Econômico Mundial de 2004]:
"Por que você faz essa arte"?
TEIXEIRA COELHO - E qual foi sua resposta?
KRAJCBERG - "Minha senhora,
fui oficial do Exército russo e,
quando entrei na Polônia, liberei um campo de concentração
com húngaros. Vi três montanhas de lixo: homens jogados
como lixo."
"Quando estava no rio Juruena [MT], vi uma nuvem de urubus. "Lá deve ter alguma coisa",
pensei. Fui de barco até lá;
quando entrei na floresta, fechei os olhos e fiz a foto. Não
dava para olhar: seis índios
pendurados, centenas de urubus em volta."
Que arte devo fazer? Defender a vida. A vida não é só homem. Gostaria que meu trabalho gritasse cada vez mais alto.
FOLHA - A sra. vê outros gritos como o de Krajcberg ou os artistas embarcam no tema só porque...
MONK - ... é moda? Seu trabalho é muito autêntico. É difícil
pensar em que podemos fazer
como artistas nesse mundo. Ao
mesmo tempo, é preciso ser
muito verdadeiro em relação a
sua expressão, e sobre que tipo
de verdade pode ser extraída
daquela expressão.
Eu, por exemplo, não sei se
posso fazer um tipo específico
de trabalho político. Meu trabalho sempre foi de coisas
atemporais, de modo que minha expressão não é tanto um
grito, mas uma canção de ninar,
assim como o tempo é circular.
E, sim, sempre há elementos
que respondem ao mundo. Seu
trabalho é mais direto, o meu é
mais "redondo".
FOLHA - Parece que seu trabalho
anterior era mais duro, tinha mais...
MONK - Vigor.
FOLHA - Vigor, uma tensão que
agora se tornou equilíbrio. Está em
busca de equilíbrio?
MONK - Trata-se de uma pesquisa do equilíbrio. Sinto que,
conforme fico mais velha, desejo que cada obra em que trabalho seja também um processo
contemplativo. É arte, mas é
também um processo de contemplação -de perguntas que
não têm resposta.
FOLHA - Monk fala em contemplação. O sr. se embrenha pelo mato e
contempla? Busca uma imagem?
KRAJCBERG - Não há um dia em
que não faça fotos. Mas, quanto
mais me aproximo da floresta,
da natureza, mais descubro coisas que os artistas não vêem.
Às vezes os artistas pensam
que descobriram uma forma,
mas a natureza é muito mais
bela e viva.
Há coisas impressionantes,
como os manguezais. Quando
fui ver os manguezais, havia um
grande movimento de tachismo [corrente das artes plásticas, popular nos anos 1950, que
privilegiava os movimentos espontâneos na pintura, com
manchas].
O único tachista que tivemos
[no Brasil] foi Antonio Bandeira [1922-67]
Quando vi os manguezais,
disse: "Não é possível. No tachismo já é complicado de ver o
movimento; mas as formas dos
manguezais, nunca vi igual".
Como captar isso? Aí está.
TEIXEIRA COELHO - Mas vejo que
suas fotografias têm uma determinada força, pertencem a um tipo de
trabalho, e suas árvores são outro tipo de trabalho. Essas obras se aproximam do que ela fala, do atemporal, são uma construção poética;
suas fotografias são uma abordagem direta do mundo. De certa forma, suas fotos denunciam muito
mais a situação do que essas obras,
que trazem um segundo momento,
a recuperação da natureza.
KRAJCBERG - Não tem importância. Tenho milhares de fotos. Não sou fotógrafo, nunca
vendi uma foto. Capto para descobrir, a cada vez, a riqueza que
a natureza tem. Do homem
aprendi muito: homem bárbaro que destruiu outros homens.
Mas a natureza -quanto mais
fico perto dela, mais descubro.
Minha escultura é feita com
objetos que eu trouxe do fogo.
TEIXEIRA COELHO - E que você transforma radicalmente. Suas fotos não
provocam nas pessoas muito mais
reações do que as esculturas?
KRAJCBERG - Não tenho só essas
fotos. Perto do meu trabalho,
tem de haver essas fotos: de onde vem o material, como destroem a natureza. [A escultura]
é feita com o material que ficou
-que você vê na foto. Gostaria
de fazer um trabalho muito
mais violento.
TEIXEIRA COELHO - Os trabalhos se
juntam nesse momento: Kracjberg
escapa do mundo real para fazer
uma construção poética. É o mesmo
tipo de trabalho, mas com meios inteiramente diferentes. Muita gente
que estuda a arte chegou à conclusão de que a única coisa que a arte
mostra são as relações entre os homens, não o mundo. Por mais que
olhemos sua escultura ou vejamos
sua dança e seu canto, não vamos
ver o mundo. E então não vamos
acordar em relação à Amazônia. Em
outras palavras: a arte, em vez de revelar o mundo que está aqui, o esconde ainda mais. Talvez por isso
você sinta a necessidade de colocar
sua foto junto. Sua foto cava um buraco nessa camada de arte que você
coloca por cima. E abre espaço para
o mundo, pois só a arte não vai mostrar o mundo.
MONK - Só a arte vai mostrar o
mundo, não? Mas você diz que,
só com esculturas, não teremos
informação sobre o mundo.
TEIXEIRA COELHO- Nada saberemos
do mundo. Só veremos um trabalho
belo, a idéia do belo.
MONK - Que também é uma
idéia forte. Não sei se conseguiríamos uma ação política real a
partir da visão de uma escultura. Sinto que, em nossa cultura,
especialmente hoje -com velocidade e informação demais-,
podemos, com nossas apresentações, quebrar certos hábitos
de percepção, literalmente parar padrões habituais desse
nosso sono.
É assim que se podem acordar as pessoas.
Se podemos torná-las cientes
de seus próprios hábitos de
percepção -não necessariamente estamos falando de algo
tão específico quanto a Amazônia, e os artistas são especialistas em percepção-, eliminamos o blablablá, de modo a fazer pensar no agora.
É isso que podemos fazer como artistas. Não sei se conseguimos chegar a pôr as pessoas
em ação.
MADALENA BERNARDES - E o blablablá a respeito de arte atrapalha a percepção das pessoas.
Impede que as pessoas entrem
desarmadas para a obra.
É pior no Brasil, onde os artistas não são respeitados.
MONK - Sabe o quê? É pior ainda nos EUA. Lá, tudo é commodity, incluindo arte. Uma pessoa meditando, uma imagem
zen, e a pergunta: que carro devo comprar? É assim a propaganda. Tudo é uma questão de
comprar.
E minha atitude política como artista norte-americana é
recusar-me a fazer isso. Tomar
uma posição anticommodity,
fazer obras que não possam ser
commodities. O Brasil vive um
tipo de confusão, os EUA vivem
outro; mas é, basicamente, confusão. No budismo, um dos "venenos" é a confusão.
KRAJCBERG - Você percebeu que
[meu trabalho] não tem imagem do homem. Depois da
guerra, meu grande desejo era
fugir do homem. Que arte eu
poderia fazer? Defender a vida.
E lutar contra esse barbarismo
praticado. Como ser passivo,
esquecer?
Até o fim de minha vida ela
[essa arte] vai estar presente.
Se eu pudesse trazer as três
montanhas de lixo [de homens
mortos, em campo de concentração na Segunda Guerra], é
isso que gostaria de fazer.
MONK - O que ele faz, suas experiências de vida -essa é a autenticidade de sua existência. É
como se ele tivesse de trilhar
esse caminho, como se não
houvesse outra possibilidade.
Sua arte tem de seguir sua verdade. Cada artista tem de procurar sua verdade, o que dar ao
mundo, e seguir esse caminho.
FOLHA - E para onde a sra. vai?
MONK - Sigo minha experiência. Espero ter sabedoria, que
minha visão se abra, aspiro a fazer algo que seja benéfico.
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