São Paulo, domingo, 30 de dezembro de 2001

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Uma história do conto (2)

Mas vim aqui falar do conto. Toda intromissão de outros gêneros deve ser considerada uma digressão. E a digressão nunca deve ser considerada uma agressão. Como diz Laurence Sterne, é o sol que brilha sobre a conversa. Também, diriam vocês, sobre meu monólogo. Outro escritor contemporâneo desses autores artistas foi um jornalista que era um contista nato: o risonho e frágil Ring Lardner, que influenciou todos os mestres do humor americano que o sucederam. Lardner, embarcado numa missão impossível -criar o conto de humor absurdo-, se autodestruiu com o álcool.
Outro escritor agora esquecido, Erskine Caldwell, que já foi considerado o melhor contista do Sul selvagem, sabia mesclar o drama rural com uma sexualidade que, na época, era franca e atrevida, mas divertida. Agora, perto do que se vê no cinema, seus contos parecem se passar num convento de freiras que fumam.
Lardner, contudo, teve colegas de mérito, como James Thurber, Robert Benchley e Dorothy Parker, que apostavam tudo no humor.
Ao mesmo tempo, outros de seus colegas da revista "New Yorker" fiavam, mas não confiavam no esquivo amor -que muitas vezes se escrevia ódio; outras, tédio. Talvez o maior mestre entre eles tenha sido John O'Hara, que fez dos diálogos aprendidos de Hemingway uma espécie de sábia sarabanda em que tudo se fiava à conversa, para revelar, mas muitas vezes ocultar, os conversantes, conversos de uma religião atéia.
Desde então não houve nenhum contista americano tão influente e tão lido -se excluirmos Raymond Carver. Ambos, O'Hara e Carver, são, à sua maneira, epígonos de Hemingway. Há outro grande contista contemporâneo que não vem da tradição americana, que não é americano, mas cria sua própria tradição na América, embora sua arte singular não tenha seguidores. Além de seus grandes romances, escreveu contos perfeitos que, curiosamente, foram quase todos publicados pela primeira vez na revista "New Yorker". Seu nome, claro, é Vladimir Nabokov. Acabaram de sair seus contos completos, e entre eles há pelo menos meia dúzia de obras-primas do gênero -a dúzia de Nabokov.
Se "Os Contos de Canterbury" não tiveram continuadores (a não ser, é claro, no uso do inglês: Chaucer tem na literatura inglesa o mesmo papel crucial que Dante na italiana), é talvez porque os ingleses do século 16 e 17 não sabiam ler, embora soubessem, sim, ouvir e apreciar a música das palavras, que vinha de poetas dramáticos como Marlowe e Shakespeare e Ben Jonson. Todos, sobretudo Jonson e Shakespeare, grandes contistas. Algo parecido ocorreu na Espanha, onde se preferiu o romance picaresco e a comédia ao conto.

O conto espanhol da América Cervantes, ninguém duvida disso, é um grande contista, tanto em suas "Novelas Exemplares" como em seus entremezes e em muitos dos contos que retardam com passos certos os incertos passos do cavaleiro, ginete louco, e seu demasiadamente sensato escudeiro que segue a seu lado num burro. Todos sabemos que os séculos 18 e 19 fizeram da Espanha uma terra baldia literária e que o grande conto espanhol que percorrerá o mundo em palcos e cinemas foi escrito por um francês. Estou falando de "Carmen", cujo autor, Prosper Mérimée, situou a ação na Andaluzia, mas o escreveu em Paris.
Assim como ocorreu nos EUA com o conto escrito em inglês, o conto escrito em espanhol será escrito na América. Um crítico peruano chamou a América (referia-se antes à América hispânica) de "romance sem romancistas". Estava enganado, é claro, mas não teria errado se tivesse chamado as Américas de continente que contém contos. Pelo menos, se o título não é exato, ele poderia ter tirado algum proveito de minha aliteração.
Thomas Colchie, tradutor norte-americano, conseguiu organizar uma antologia intitulada "A Hammock Beneath the Mangoes" ("Uma Rede sob as Mangueiras" ou sob as mangas), o que mais parece a descrição do sutiã de, digamos, Sarita Montiel.
Mas é uma excelente coletânea de contos breves sul-americanos. Não poderia, no entanto, ter feito uma antologia similar de contos espanhóis chamada, digamos, "Os Dotes de Rocío Jurado".
Por quê? Simplesmente porque haveria peitos a conter, mas não contos a contar. Toda regra tem uma exceção lutando por vir à tona, e deve-se dizer que uma recente coletânea de contos de Javier Marías, "Cuando Fui Mortal", que contém contos não imorais, mas sim imortais, poderia continuar a tradição inaugurada por d. Juan Manuel, que foi neto e sobrinho de reis, adiantado do reino de Múrcia quando Múrcia era um reino. Mas não é o escritor da nobreza o que nos interessa, e sim a nobreza do escritor -e sobretudo sua popularidade: em poucos meses, Marías vendeu perto de 50 mil exemplares de seu livro de contos. Mas eu não vim aqui para fazer o elogio de Marías, e sim do conto americano ou hispano-americano, muito embora três dos maiores contistas cubanos (Hernández Catá, Carlos Montenegro e Lino Novás Calvo) tenham nascido na Espanha: em Castela e na Galícia, respectivamente. Lino Novás, outra surpresa, foi o verdadeiro criador dessa coisa curiosa chamada realismo mágico. Aparece pela primeira vez num conto dele, "Aquella Noche Salieron los Muertos", muito antes que Alejo Carpentier formulasse sua teoria estética (tomada emprestada de um surrealista francês) do "real maravilhoso".
Horacio Quiroga é o primeiro contista qua contista (gosto dessa palavra latina, qua, porque lembra água, aqua, e repetida, qua, qua, parece um chamariz para patos, quá, quá, quá) e um louco perseguido pelo infortúnio. Perdeu o pai num acidente de caça (caçava patos na fronteira do Uruguai com a Argentina: os dois países reivindicam sua paternidade) e seu padrasto se suicidou pouco depois. Perder o pai pode ser uma desgraça, mas perder um padrasto me parece um descuido.
Ambos, tomem nota, por favor, morreram de morte violenta. Poucos anos depois, Quiroga matou seu melhor amigo, no que os juízes qualificaram de acidente. Quiroga se casou, e, não muito depois da lua-de-mel (ele obrigou sua jovem mulher a passá-la na mais densa selva brasileira), quase nem preciso dizê-lo, foi a vez de ela se suicidar. Casado mais uma vez, sua nova mulher, como a oitava de Barba Azul, sobreviveu a ele. Doente de câncer da próstata (até nisso ele foi um pioneiro), Quiroga escolheu o suicídio.
Detive-me na vida de Horacio Quiroga porque parece uma violenta telenovela e é mais interessante que sua ficção -que não é menos violenta. Um de seus livros de contos se chama "A Galinha Degolada". No conto que dá título e tom ao volume, dois irmãos gêmeos, ambos idiotas, têm uma linda irmãzinha. Mas os dois irmãos vêem -ou melhor, observam- a madre degolar uma galinha para o jantar. Eles provam que a imitação é a mãe da experiência e cortam o pescoço da irmãzinha.
Li os contos de Quiroga, todos, na adolescência e acreditei em todos. Eu era, como vocês já devem ter deduzido, mentalmente são, mas impressionável. Agora, mesmo que me ameaçassem com a expulsão deste encontro, eu não os leria nem amarrado. Vocês já devem ter deduzido também que Horacio Quiroga era dependente não só de morfina mas da literatura de Poe.
Outro escritor de contos nascido na Argentina, mas com a cabeça bem no lugar, é Adolfo Bioy Casares. Muitas vezes é associado a Jorge Luis Borges só porque eram amigos e colaboravam em empresas narrativas. Alguém os chamou, a ambos, Biorges. Mas Bioy continuou escrevendo depois da morte de Borges e foi cada vez mais individual e distinto, não apenas no porte mas na escritura. Bioy escreveu a mais comovente história de amor da literatura em espanhol do século 20. Chama-se "A Invenção de Morel" e, embora alguns a chamem de romance, é uma novela ou conto longo e, para mim, é perfeita. É a melhor ilustração do conselho francês "cherchez la femme".
Agora uma breve interpolação para falar, brevemente, embora ele mereça ensaios e tratados, desse grande autor: um americano que não escreve em espanhol e que não segue a tradição de sua língua, porque está criando as duas. Refiro-me a Machado de Assis, o único grande romancista sul-americano do século 19, que é também um contista extraordinário: sempre original, sempre na vanguarda de um homem só. Leiam, como aperitivo para o festim de um Trimalcião literário, seu conto "O Alienista".
O uruguaio Felisberto Hernández era o oposto físico do cubano Virgilio Piñera. Não gostava de homens magros, como Virgilio, mas de mulheres, muitas, gordas e caras: casou-se quatro vezes. Ao contrário de Virgilio, que nunca foi musical, Felisberto (podemos chamá-lo Felisberto: ninguém se chama assim) era um músico profissional, que, curiosamente, trabalhava como pianista de teatro, mas não de palco, e sim no fosso, e não para acompanhar sopranos, mas fazendo música de fundo para filmes mudos.
Suas vidas opostas tiveram um final parecido, mas diferente. Virgilio morreu reconhecido como pederasta passivo, com passagens pela prisão, condenado por invertido. Sua morte foi chorada por poetas pederastas, mas seu cadáver desapareceu do velório: as autoridades estavam convencidas de que seu corpo presente recriaria o ausente com fins políticos. Felisberto morreu de leucemia muito mais jovem que Virgilio, mas seu corpo inchou tanto que foi preciso procurar às pressas um caixão adequado, uma coisa tão enorme que não pôde ser tirada pela porta da funerária e saiu para a eternidade por uma janela.
Há um provérbio latino que propõe que se chega ao final da vida conforme se viveu. Os respectivos finais de Virgilio Piñera e Felisberto Hernández foram, se não vidas, mortes paralelas. Acho que não por acaso a editora americana que publicou os "Contos Frios" de Piñera agora publique os contos completos de Hernández. Mas vale notar e anotar uma diferença notável: Felisberto estava meio louco, Virgilio, ao contrário, sempre teve a cabeça bem assentada na guilhotina. Precisava apenas de uma revolução, e a teve.
Juan Rulfo chamou Guimarães Rosa de "o maior autor surgido nas Américas neste século". Não se deve exagerar, mas Guimarães Rosa, que escreveu o melhor romance do chamado "realismo mágico", é um grande escritor. Para deleite de vocês (já que sua obra-prima, "Grande Sertão: Veredas" é longa, complexa e metafísica), ele tem um volume de contos, mais zen do que sensacionais, intitulado "Primeiras Estórias", que em espanhol ganhou o sugestivo título de um de seus textos, "A Terceira Margem do Rio". Há outros compatriotas de Machado de Assis que vale a pena citar, ainda que rapidamente. Murilo Rubião, com seu conto "O Ex-Mágico da Taberna Minhota", que é "sui generis", como são os contos de João Ubaldo Ribeiro, sobretudo seu "Foi um Dia Diferente o da Matança do Porco" e o elusivo e alusivo Rubem Fonseca, que com seu "Corações Solitários" criou um escândalo internacional ao ser proibido pelas autoridades de seu país.
O escândalo chegou aos ouvidos do presidente Carter, mais conhecido como "el manisero", não por causa da saborosa rumba havanesa, mas por ter enriquecido cultivando amendoim. Há outra rumba chamada "Tanta Lipidia por un Medio de Maní" cujo título me leva a explicar aqui meu interesse e até meu afeto pelos cariocas do conto. Não há outro país na América que se pareça tanto com a minúscula Cuba como o gigantesco Brasil: ambos têm sua musicalidade na música e na língua, ambos são uma mistura de brancos ibéricos e negros africanos, ambos criaram uma nova religião, que no Brasil se chama macumba e, em Cuba, "santeria".
Todos acreditamos que o ritmo não está só na música mas na fala, nos movimentos do corpo e nesse balanço que em Havana se chama "el caminao". Este meu ensaio, por exemplo, foi escrito como falam em Havana os "hablaneros".
Penso, ou sinto, não serem muito bons os contos de Rulfo, que me parecem parcos, mas primitivos. Em compensação, acredito que "Pedro Páramo" é um grande romance em poucas palavras e o melhor romance mexicano já escrito -neste e em outros séculos. O contrário acontece com o defunto Julio Cortázar: seus romances são para mim enfadonhos exercícios de uma vanguarda que o tempo mandou para a retaguarda.
Mas seus contos, sobretudo os contos de família, são extraordinários, e um ou dois -por exemplo, "O Perseguidor"; por exemplo, "A Auto-Estrada do Sul"- são admiráveis. O mesmo acontece com Alejo Carpentier, cujos últimos romances são lamentáveis quando comparados aos romances que escreveu na Venezuela: "O Reino deste Mundo", "Os Passos Perdidos", "O Cerco". Mas seu conto "Viagem à Semente" é uma obra-prima do gênero.
Também o é seu conto longo "Concerto Barroco" -se esquecermos seu final, que eu não quero esquecer. Também Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes e Mario Vargas Llosa escreveram e publicaram contos. Mas, apreciados ou desprezados, devem ser considerados romancistas antes de mais nada ou depois de tudo.
Chegamos aqui à grande literatura não apenas regional ou continental mas mundial, universal até. Agora vem, e com tudo, Jorge Luis Borges. Não houve no idioma um escritor maior desde que Calderón de la Barca morreu em Madrid em 1681. Toda pessoa que tenha lido um único conto de Borges (e felizmente Borges só escreveu contos e ensaios à maneira de contos) percebe que está diante de um escritor excepcional. Foi Borges quem disse de Quevedo que não era um escritor, mas uma literatura. Com maior justiça se pode dizer o mesmo de Borges. Ele sozinho, em sua remota Buenos Aires, que depois dele sempre está perto, aqui ao lado, virando a página, Borges sozinho fez do conto toda uma literatura e até mais, uma teoria literária. Não preciso citar nenhum título, pois vocês conhecem todos. Mas são contos não para ler, e sim para reler, recordar, memorizar e sempre nos assombrar. Não só com sua cultura e seu humor, mas também com sua arte narrativa. O oportunismo político o privou do Prêmio Nobel que ele tanto almejou. Pior para o prêmio: não mereceu Borges. Mas todos os seus leitores, todos os dias, lhe oferecemos o prazeroso desagravo da leitura, pois ele é, argentino nobre que era, nosso prêmio.
Não me escapa e, claro, não escapará a vocês, que fui parco em nomes e largo em adjetivos. Não era meu propósito compor aqui um guia de autores, mas oferecer um panorama do conto mais geográfico do que histórico. Depois de passear -como queria Anatole France que fosse a visão, não a missão, do crítico- por entre obras-primas, posso chegar a uma conclusão, se é que chego. Talvez o conto requeira mais arte que verdade. Isto é, uma quantidade maior de ficção.
Anatole France, aliás, deu uma aula sobre memória histórica em seu magistral conto "O Procurador da Judéia". Em Roma, Pôncio Pilatos, que fora procurador da Judéia, vai a uma festa romana, que vocês podem chamar orgia, e seu anfitrião lhe pergunta por "um judeu desordeiro" chamado Jesus. Pilatos, uma taça de vinho na mão, a toga impecável, o penteado à César, pensa por um momento e diz: "Jesus? Não conheci ninguém com esse nome".
Por favor, não me perguntem pelos autores que esqueci.


Guillermo Cabrera Infante é escritor cubano e vive em Londres. É autor, entre outros, de "Havana para um Infante Defunto" e "Mea Cuba" (Companhia das Letras).
Tradução de Sergio Molina.


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