São Paulo, domingo, 30 de dezembro de 2001

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"A Era Vargas", de José Augusto Ribeiro, discute em três volumes as origens e o apogeu do nacionalismo trabalhista no Brasil

Ideologia ou mistificação

Gilberto Vasconcellos
especial para a Folha

Mais do que oportuno o aparecimento deste magnífico livro (3 volumes) sobre a história de Getúlio Vargas é providencial nos dias que correm, não apenas por destoar dos reacionários coveiros da nacionalidade (aqueles para quem a soberania nacional é saudosismo dos anos 50) mas também por derruir as mistificações reproduzidas diuturnamente pelas mídias e universidades em coro uníssono e preguiçoso.
É que as ideologias se tornam forças materiais e acabam por interferir na opinião pública e no poder, a exemplo do clichê segundo o qual Getúlio Vargas era intelectualmente um bronco e alérgico às letras quando, na verdade, logo ao deixar a adolescência, lhe marcou a leitura de Charles Darwin, Augusto Comte e Saint-Simon.
Outro clichê batido por aí é que o PTB, partido criado em 1945, não foi senão um simulacro decalcado do inglês Labour Party, quando na verdade a agremiação partidária dos trabalhadores do Brasil nascera planta autóctone que nem jaboticaba: "O trabalhismo brasileiro é brasileiro mesmo". Não é mero trabalhismo no Brasil "transplantado de qualquer matriz estrangeira".
Ainda outro clichê alardeado por sociólogos e politicólogos mui sabichões é que a "Carta de Lavoro" by Mussolini teria sido o espaguete fascista da legislação trabalhista do Estado Novo, quando efetivamente o lance decisivo na gênese trabalhista aponta para a extremidade sulina, com o ideário de Júlio de Castilhos, antecedido em São Paulo pelo grande intelectual José Bonifácio de Andrada e Silva, em cujo paradigma minerológico o velho Gegê se inspirou para fazer a siderurgia de Volta Redonda. De resto, o binômio trabalho e educação evidencia o vínculo de Vargas, em 1930, com o patriarca paulista da Independência, cem anos antes. Trata-se, para quem sabe ver com olhos descolonizados, de um mesmo projeto político que ganhou na história do Brasil o nome de nacionalismo trabalhista, cujo antípoda político é o entreguismo internacional da terra, da água, do ar, de tudo.
Outra insídia safada da historiografia oficial é a de que Getúlio Vargas teria posição pró-nazismo contra os Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. O fato é que, pasmem os leitores, o Brasil getuliano entrou na Segunda Guerra Mundial antes dos Estados Unidos. Nenhuma birra contra o povo norte-americano; porém Getúlio sabia distinguir os passos dos Estados Unidos no mundo: antes e depois do convescote de Bretton Woods (que criou o sistema monetário mundial ao fim da Segunda Guerra) e os seus dólares doentes.
José Augusto Ribeiro denuncia com toda a razão que, nos derradeiros 50 anos, a história antigetuliana se tornou oficial, áulica, conformista, apologética e antinacional. A historiografia chapa branca, que pavoneia de pluralista e democrática, é incapaz de reconhecer que foi o próprio Vargas que começou a desmontar o esqueleto autocrático do Estado Novo. Essa historiografia prefere dar corda nos efeitos do pífio Manifesto dos Mineiros e na anódina entrevista de José Américo de Almeida ao jornalista Carlos Lacerda.
Fazendo justiça póstuma ao brilhante ensaísta político Miguel Bodeia, que foi um dos fundadores em Lisboa do PDT de Leonel Brizola, o autor chama a atenção para o fato de que Vargas, antes mesmo da derrota do nazismo, foi o primeiro e único líder político que anteviu o enfrentamento do nacionalismo brasileiro com o imperialismo norte-americano, em cujo enfrentamento latente ou manifesto se encontra a essência da história do Brasil a partir da segunda metade do século 20, inclusive agora com o arrastão feagaceano antinacionalista e refratário ao legado social de Vargas. Dir-se-ia que o nacionalismo da Revolução de 30 é uma espécie de, com perdão da palavra, epistemologia na mentalização do que somos no mundo, a ponto de o mestre Darcy Ribeiro ter dito que o Vietnã à brasileira foi o golpe de 64.
Remontando à época do Estado Novo, José Augusto Ribeiro merece ser elogiado por deixar claro que os adversários de Vargas estavam menos interessados no exercício político da democracia como valor universal do que na oposição ao nacionalismo trabalhista advindo com a Revolução de 30, de modo que não é de hoje o desiderato de acabar com os vestígios da era Vargas. O medíocre governo Dutra, de triste memória, que pariu o decreto antigreve, fazendo na Guerra Fria o jogo pró-Estados Unidos, teria seguidores na atualidade com a "farra dos importados".
Somos irremediavelmente tomados pelo sentimento de angústia ao constatar que durante a Segunda Guerra Mundial sobressaíam os estadistas Vargas e Roosevelt, enquanto logo a seguir entraram em cenas dois ilustres badamecos: Truman e Dutra. Este, aliás, comendo na mão da Standard Oil, o que revela a deletéria presença das corporações internacionais do petróleo nos rumos da história do Brasil. Com o detalhe imperdoável de que Getúlio Vargas -pau nele!- teve a ousadia de demolir o tabu da inexistência de petróleo entre nós. Iria pagar caro por isso, arredado do poder e saindo da vida para entrar na história, como escreverá na trágica carta-testamento de 1954, na qual o destino da Petrobras é explicitamente citado, o que constitui sem dúvida mais um prova irrefutável de que com a era Vargas a questão energética se converte no pivô da história do Brasil.
O fundamento do nacionalismo trabalhista é energético. Petrobras. Eletrobrás. Carvão vegetal. E, quem sabe, a energia verde da biomassa talvez estivesse no horizonte do Palácio do Catete como a próxima bola da vez; enfim, todavia a verdade histórica é esta: o imperialismo norte-americano não engoliu o monopólio estatal da Petrobras e o refino nacional do petróleo, tanto que até hoje é violento o lobby testa-de-ferro perseguindo o objetivo de desestatizar a Petrobras, ou seja: internacionalizá-la.
Indo dialeticamente do presente para o passado e vice-versa, o autor mostra como o nacionalismo trabalhista é um desafio e uma resposta aos problemas da civilização brasileira.
Depois da criação de Volta Redonda e da Vale do Rio Doce, Getúlio Vargas ficou obcecado pela utilização nacional das fontes de energia e a proposta sobre a remessa de lucros para o exterior. Aí foi a gota d'água do fatídico 1954, tendo por cenário a loucura de que Prestes e o Partidão ficaram contra Vargas e os seus "instintos sanguinários". Burrice psicológica total, porque o presidente, atormentado pelo estigma estadonovista de "ditador", não queria derramar sangue de nenhum brasileiro, tal qual o pacífico João Goulart em 1964.
A doideira ideológica da Guerra Fria no Brasil é a de que o marxismo se colocou como adversário do nacionalismo trabalhista antiimperialista. O marxismo ficou contra o processo de descolonização que estava em marcha para alcançar aquilo que Vargas chamava de "autodomínio da nacionalidade". O estranho nisso tudo, quando rolava briga de foice entre a Eletrobrás e a Light, é a convergência dos comunistas e as forças capitalistas internacionais no exato momento em que a UDN ianquizada acusava Getúlio de trazer o "comunismo ao campo", uma espécie de armação semelhante ao que aconteceria mais tarde, em 1973, com Salvador Allende no Chile.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de, entre outros, "Glauber Pátria Rocha Livre" (ed. Senac).


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