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"A Era Vargas", de José Augusto Ribeiro, discute em três volumes as origens e o apogeu do nacionalismo trabalhista no Brasil
Ideologia ou mistificação
Gilberto Vasconcellos
especial para a Folha
Mais do que oportuno o aparecimento deste magnífico
livro (3 volumes) sobre a
história de Getúlio Vargas é
providencial nos dias que correm, não
apenas por destoar dos reacionários coveiros da nacionalidade (aqueles para
quem a soberania nacional é saudosismo
dos anos 50) mas também por derruir as
mistificações reproduzidas diuturnamente pelas mídias e universidades em
coro uníssono e preguiçoso.
É que as ideologias se tornam forças
materiais e acabam por interferir na opinião pública e no poder, a exemplo do
clichê segundo o qual Getúlio Vargas era
intelectualmente um bronco e alérgico às
letras quando, na verdade, logo ao deixar
a adolescência, lhe marcou a leitura de
Charles Darwin, Augusto Comte e Saint-Simon.
Outro clichê batido por aí é que o PTB,
partido criado em 1945, não foi senão um
simulacro decalcado do inglês Labour
Party, quando na verdade a agremiação
partidária dos trabalhadores do Brasil
nascera planta autóctone que nem jaboticaba: "O trabalhismo brasileiro é brasileiro mesmo". Não é mero trabalhismo
no Brasil "transplantado de qualquer
matriz estrangeira".
Ainda outro clichê alardeado por sociólogos e politicólogos mui sabichões é
que a "Carta de Lavoro" by Mussolini teria sido o espaguete fascista da legislação
trabalhista do Estado Novo, quando efetivamente o lance decisivo na gênese trabalhista aponta para a extremidade sulina, com o ideário de Júlio de Castilhos,
antecedido em São Paulo pelo grande intelectual José Bonifácio de Andrada e Silva, em cujo paradigma minerológico o
velho Gegê se inspirou para fazer a siderurgia de Volta Redonda. De resto, o binômio trabalho e educação evidencia o
vínculo de Vargas, em 1930, com o patriarca paulista da Independência, cem
anos antes. Trata-se, para quem sabe ver
com olhos descolonizados, de um mesmo projeto político que ganhou na história do Brasil o nome de nacionalismo
trabalhista, cujo antípoda político é o entreguismo internacional da terra, da
água, do ar, de tudo.
Outra insídia safada da historiografia
oficial é a de que Getúlio Vargas teria
posição pró-nazismo contra os Estados
Unidos durante a Segunda Guerra
Mundial. O fato é que, pasmem os leitores, o Brasil getuliano entrou na Segunda Guerra Mundial antes dos Estados
Unidos. Nenhuma birra contra o povo
norte-americano; porém Getúlio sabia
distinguir os passos dos Estados Unidos no mundo: antes e depois do convescote de Bretton Woods (que criou o
sistema monetário mundial ao fim da
Segunda Guerra) e os seus dólares
doentes.
José Augusto Ribeiro denuncia com
toda a razão que, nos derradeiros 50
anos, a história antigetuliana se tornou
oficial, áulica, conformista, apologética
e antinacional. A historiografia chapa
branca, que pavoneia de pluralista e democrática, é incapaz de reconhecer que
foi o próprio Vargas que começou a desmontar o esqueleto autocrático do Estado Novo. Essa historiografia prefere dar
corda nos efeitos do pífio Manifesto dos
Mineiros e na anódina entrevista de José
Américo de Almeida ao jornalista Carlos
Lacerda.
Fazendo justiça póstuma ao brilhante
ensaísta político Miguel Bodeia, que foi
um dos fundadores em Lisboa do PDT
de Leonel Brizola, o autor chama a atenção para o fato de que Vargas, antes mesmo da derrota do nazismo, foi o primeiro e único líder político que anteviu o enfrentamento do nacionalismo brasileiro
com o imperialismo norte-americano,
em cujo enfrentamento latente ou manifesto se encontra a essência da história
do Brasil a partir da segunda metade do
século 20, inclusive agora com o arrastão
feagaceano antinacionalista e refratário
ao legado social de Vargas. Dir-se-ia que
o nacionalismo da Revolução de 30 é
uma espécie de, com perdão da palavra,
epistemologia na mentalização do que somos no
mundo, a ponto de o
mestre Darcy Ribeiro ter
dito que o Vietnã à brasileira foi o golpe de 64.
Remontando à época
do Estado Novo, José Augusto Ribeiro merece ser
elogiado por deixar claro
que os adversários de Vargas estavam
menos interessados no exercício político
da democracia como valor universal do
que na oposição ao nacionalismo trabalhista advindo com a Revolução de 30, de
modo que não é de hoje o desiderato de
acabar com os vestígios da era Vargas. O
medíocre governo Dutra, de triste memória, que pariu o decreto antigreve, fazendo na Guerra Fria o jogo pró-Estados
Unidos, teria seguidores na atualidade
com a "farra dos importados".
Somos irremediavelmente tomados
pelo sentimento de angústia ao constatar
que durante a Segunda Guerra Mundial
sobressaíam os estadistas Vargas e Roosevelt, enquanto logo a seguir entraram
em cenas dois ilustres badamecos: Truman e Dutra. Este, aliás, comendo na
mão da Standard Oil, o que revela a deletéria presença das corporações internacionais do petróleo nos rumos da história do Brasil. Com o detalhe imperdoável
de que Getúlio Vargas -pau nele!- teve a ousadia de demolir o tabu da inexistência de petróleo entre nós. Iria pagar
caro por isso, arredado do
poder e saindo da vida para entrar na história, como
escreverá na trágica carta-testamento de 1954, na
qual o destino da Petrobras é explicitamente citado, o que constitui sem
dúvida mais um prova irrefutável de que com a era
Vargas a questão energética se converte
no pivô da história do Brasil.
O fundamento do nacionalismo trabalhista é energético. Petrobras. Eletrobrás. Carvão vegetal. E, quem sabe, a
energia verde da biomassa talvez estivesse no horizonte do Palácio do Catete
como a próxima bola da vez; enfim, todavia a verdade histórica é esta: o imperialismo norte-americano não engoliu
o monopólio estatal da Petrobras e o refino nacional do petróleo, tanto que até
hoje é violento o lobby testa-de-ferro
perseguindo o objetivo de desestatizar a
Petrobras, ou seja: internacionalizá-la.
Indo dialeticamente do presente para
o passado e vice-versa, o autor mostra
como o nacionalismo trabalhista é um
desafio e uma resposta aos problemas
da civilização brasileira.
Depois da criação de Volta Redonda e
da Vale do Rio Doce, Getúlio Vargas ficou obcecado pela utilização nacional
das fontes de energia e a proposta sobre
a remessa de lucros para o exterior. Aí
foi a gota d'água do fatídico 1954, tendo
por cenário a loucura de que Prestes e o
Partidão ficaram contra Vargas e os
seus "instintos sanguinários". Burrice
psicológica total, porque o presidente,
atormentado pelo estigma estadonovista de "ditador", não queria derramar
sangue de nenhum brasileiro, tal qual o
pacífico João Goulart em 1964.
A doideira ideológica da Guerra Fria
no Brasil é a de que o marxismo se colocou como adversário do nacionalismo
trabalhista antiimperialista. O marxismo ficou contra o processo de descolonização que estava em marcha para alcançar aquilo que Vargas chamava de
"autodomínio da nacionalidade". O estranho nisso tudo, quando rolava briga
de foice entre a Eletrobrás e a Light, é a
convergência dos comunistas e as forças capitalistas internacionais no exato
momento em que a UDN ianquizada
acusava Getúlio de trazer o "comunismo ao campo", uma espécie de armação semelhante ao que aconteceria
mais tarde, em 1973, com Salvador
Allende no Chile.
Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor
de ciências sociais da Universidade Federal de
Juiz de Fora (MG) e autor de, entre outros, "Glauber Pátria Rocha Livre" (ed. Senac).
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