São Paulo, domingo, 31 de janeiro de 2010

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Toca o sinal

Com 1.590 alunos, o Miécimo da Silva é bem cuidado, mas padece dos mesmos males que afetam as demais escolas públicas: burocracia, alto número de faltas e professores insatisfeitos

Rafael Andrade - 3.nov.09/Folha Imagem
Aluna em sala de aula no Centro Interescolar Estadual Miécimo da Silva, na zona oeste do Rio de Janeiro

ANTÔNIO GOIS
DA SUCURSAL DO RIO

Da janela de sua sala, no Centro Interescolar Estadual Miécimo da Silva, a diretora Rosana Faria vê passar diariamente um mar azul. É assim que ela descreve a procissão diária de 1.590 alunos uniformizados, no horário de entrada ou saída.
O colégio fica em Campo Grande, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro a mais de 50 km do centro. De um total de 32 distritos da cidade, Campo Grande tem apenas o 22º maior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), segundo levantamento da prefeitura.
Ao longo dos meses de setembro, outubro e novembro, a Folha acompanhou a rotina da escola, tendo livre acesso a salas de aula, direção, conselhos de classe, reuniões e encontros com pais, alunos e professores.
O Miécimo não é o melhor nem o pior colégio público do país. No Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) de 2008, seus alunos obtiveram exatamente a mesma média dos estudantes do Brasil: 49 pontos.
Diferentemente de muitos colégios públicos, ele é bem cuidado, resultado da atuação da direção e de um grupo de professores que valorizam seu ambiente de trabalho.
Mas isso não o torna imune aos problemas comuns a quase todas as escolas públicas do Brasil: excesso de burocracia, pouca autonomia pedagógica, insuficiência de funcionários, professores insatisfeitos com seus salários e alto número de faltas, deixando alunos frequentemente sem aulas.
O maior desafio, porém, é lidar com uma realidade social complexa, tendo que atender ao mesmo tempo alunos de alto potencial e jovens desinteressados e indisciplinados, de famílias que jogam sobre os ombros da escola toda a responsabilidade de educá-los.
Às 12h30, toca o sinal de entrada dos alunos do turno da tarde no Miécimo da Silva. A campainha é ouvida por todos, mas poucos se movimentam em direção às portas das salas.
Na 3.003, uma das seis turmas de terceiro ano, os namorados Kelly Carvalho e Kelvin Silva são, quase sempre, os primeiros a chegar. Mas sabem que ainda esperarão algum tempo até que professores e alunos estejam dentro de sala.
Considerados os dias em que professores faltaram e o tempo que os mestres perderam para controlar a indisciplina e discutir assuntos diversos, menos da metade da carga horária prevista para a semana em que a Folha acompanhou todas as aulas desta turma foi, efetivamente, de aula.
Trata-se de um problema crônico no Brasil. Pesquisa da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico feita em 23 países concluiu que os professores brasileiros eram os que mais perdiam tempo com tarefas administrativas ou tentando manter a disciplina.
De 13 tempos previstos para a 3.003, com 100 minutos cada, em 4 o professor faltou e, nos 9 restantes, o tempo efetivo de aula foi de 625 minutos, o que significa 48% do total previsto.

TEMPO PERDIDO
Naquele mês, já haviam ficado sem aulas devido a um feriado nacional (12 de outubro), ao dias do professor (15 de outubro) e do funcionário público (28 de outubro) e porque o governador Sérgio Cabral (PMDB) liberou os estudantes para acompanhar, em 2 de outubro, a escolha do Rio como sede da Olimpíada de 2016.
Além das faltas e dos atrasos, perde-se tempo precioso para fazer com que todos os alunos prestem atenção. Nem sempre é possível.
Numa aula de história, a professora percebe que um dos alunos não está copiando os exercícios do quadro.
"Você não vai copiar nada?", indaga.
"Depois eu pego com ela", responde ele, referindo-se à colega que senta ao seu lado.
Na mesma aula, uma aluna dorme ao fundo da sala. Ao perceber, a professora reclama com a turma:
"Tem gente que não dá valor à educação. É triste, mas, recentemente, vi uma ex-aluna daqui entregando panfletos na rua. Com todo respeito a quem faz isso, acho que a gente não estuda para fazer qualquer coisa da vida", diz.
Em outra aula, o mesmo aluno que se recusou a copiar a lição no quadro é repreendido por atender ao celular no meio da classe. Ele pede autorização para sair da sala e falar com a namorada. A professora nega.
"Minha mãe sofreu uma queda e precisará ser internada. Mas meu celular ficou desligado. O que de tão importante você tem para falar com sua namorada agora?", pergunta ela.
O aluno sossega por alguns instantes, mas, poucos minutos depois, seu celular volta a tocar. A professora desiste do confronto e permite que ele saia, para não atrapalhar ainda mais o restante da aula.
Os alunos demonstram mais interesse quando fazem atividades que saiam da rotina, como feiras de ciências, projetos de mídia ou semanas temáticas. Em dias que antecedem esses eventos, trabalham até mesmo no recreio.
Para variar um pouco, alguns professores passam filmes. Na aula de sociologia da 3.003, foi utilizado o longa "Quanto Vale ou É por Quilo?", uma crítica ao terceiro setor no Brasil.
Na de literatura, a professora sugere "Pânico no Lago 2" ou "Aceleração Máxima".
Ela explica que não tinha visto nenhum dos dois e que o objetivo foi relaxar um pouco os alunos, pois já havia adiantado o conteúdo do ano. Apesar de as produções aparentemente não fazerem sentido em uma aula de literatura brasileira, afirma que pode utilizá-las, por exemplo, pedindo uma redação sobre sequestros, tema de um dos filmes.

A BOA ALUNA
A 3.003 conta também com alunos participativos, que prestam atenção a todas as aulas. Em alguns casos, estar ali é uma prova de superação. Marecyla Costa, 18, senta sempre nas primeiras filas da sala e gosta tanto do Miécimo que venceu duas adversidades para continuar estudando lá.
Há dois anos, a família se mudou para Nova Iguaçu (Baixada Fluminense). Mas ela fez questão de não trocar de escola, mesmo tendo que pegar quatro ônibus por dia.
O maior desafio, no entanto, foi não ter abandonado os estudos após engravidar.
Levantamento do Ministério da Educação, feito com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE, mostra que a gravidez adolescente é um dos fatores mais associados à evasão.
Apesar do susto, a família decidiu apoiá-la para que não deixasse de estudar.
A toda hora, entram na sala de Rosana Faria pais, professores e alunos com diferentes pedidos. Às vezes, são demandas inusitadas, como a de um aluno que a procurou para saber se era possível destituir a mãe como sua responsável.
"A gente discutiu ontem e minha mãe disse que ia me mudar de escola", conta o menino.
Rosana tenta acalmá-lo: "Ela deve ter falado isso num momento de raiva. Pede para vir aqui falar comigo."
No início do ano, outro estudante pediu para ser chamado, na escola, por um nome feminino. Ele já chamava a atenção de todos por se vestir com roupas justas e usar maquiagem.
O caso chegou a ser debatido no conselho de classe. Alguns professores demonstraram contrariedade. "Gente, eu sei que nem todos concordam, mas, se for lei, vamos ter que cumprir", diz ela aos colegas.
O direito de usar um "nome social" é um dos pleitos dos movimentos de gays, lésbicas, travestis e transexuais. Não há lei federal sobre o assunto, mas o Ministério da Educação já se posicionou favoravelmente, recomendando às secretarias de educação que respeitem a decisão do estudante.

DARWIN E DEUS
Outro tema delicado é o respeito à diversidade religiosa. No ano passado, por causa do adiamento do calendário devido à gripe suína, foi preciso abrir aos sábados para repor os dias letivos perdidos.
Num desses sábados, seria realizada a feira de ciências. Três dias antes da atividade, Rosana recebe em sua sala um aluno que traz um atestado da União Missionária dos Adventistas do Sétimo Dia.
O documento diz que ele, "de acordo com princípios de fé, não exerce atividade escolar do pôr do sol de sexta-feira ao pôr do sol de sábado".
A questão religiosa apareceu também porque o tema da feira de ciências foi Charles Darwin. Numa aula de biologia do professor Jayme Galvão, um aluno questiona a teoria evolutiva e defende o criacionismo.
Jayme explica que é preciso separar o conteúdo das aulas de religião das de biologia. O professor conta que, apesar do grande número de estudantes evangélicos, teve poucos problemas ao tratar do tema.
Em apenas um caso, uma aluna insistiu e propôs que o pastor de sua igreja fosse debater o tema com ele em sala de aula.
"Eu disse que topava, desde que eu pudesse ir à igreja dele fazer a mesma coisa. Mas acabou não rolando, e isso foi bom para deixar bem claro que, na minha sala de aula, o que se ensina é biologia", diz.
São constantes, quase diários, sustos com alunos que passam mal. Márcia Matos, assistente da diretora, é quem presta o primeiro atendimento. Numa sexta-feira de novembro, uma aluna está com febre alta e vomitando muito. Márcia liga para a mãe imediatamente, mas a responsável parece não se preocupar tanto.
"Dá comida para ela", diz a mãe ao telefone.
"Senhora, nós já tentamos, e ela não quer comer", responde a assistente.
"Vê aí o que vocês podem fazer. Pede para um professor ou colega levá-la em casa."
Márcia ameaça levar o caso ao Conselho Tutelar, por omissão de socorro. A mãe, só então, cede e decide buscar a filha.
Os pedidos que mais preocupam são os de licença médica. Em 2009, o ano letivo já começou com três professores assim.
Outros cinco fariam o mesmo até novembro. Fora o tempo que ela levará para achar um substituto, até que a secretaria autorize o pagamento de um novo profissional, o processo demora, no mínimo, 15 dias.
Tempo em que os alunos ficarão sem aula.
Rosana tenta também impedir que a insatisfação com os baixos salários afete o ambiente de trabalho. Em setembro passado, ela estava tensa por causa de uma visita que Sérgio Cabral faria ao Miécimo. Ele inauguraria um novo sistema de acompanhamento da frequência dos alunos.
Dias antes, professores haviam sido agredidos por PMs em frente à Assembleia Legislativa do Rio ao protestarem contra a política salarial.
Rosana dedicava atenção especial a Marília Braga, professora de matemática. Marília já havia cobrado pessoalmente o governador num evento de entrega de casas populares em Campo Grande.
"Governador, e o nosso aumento, governador?", questionou ela na ocasião.
Cabral prometeu empenho, mas tentou se livrar da pergunta com um elogio ao colégio onde ela dá aula. "Mas, professora, a senhora trabalha numa escola tão boa", disse.
"Governador, quando vou ao supermercado, não pago minhas contas com elogios ao Miécimo."

R$ 1.308,42 AO MÊS
Para alívio de Rosana, a visita ocorreu sem problemas. Marília é professora da rede estadual há 24 anos e tem carga horária de 40 horas semanais, todas elas dedicadas ao Miécimo da Silva. Seu salário é de R$°2.050,37. Com os descontos, sobram R$°1.308,42.
Seus vencimentos não diferem muito da média brasileira.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE, um professor do ensino médio tem média mensal de R$°1.872. O valor representa um quarto do que ganha um médico, metade do verificado entre administradores e 77% comparado com enfermeiros de nível superior.
"Eu reclamo de salário, mas, quando boto os pés em sala, esqueço tudo", diz Marília.
Salário não é o único motivo para desmotivação. José Carlos de Araújo, 53, buscou na pintura a realização que não encontrava mais no magistério.
"Pode ser egocentrismo, mas sempre gostei da sensação de ser admirado por ser professor de matemática. Hoje, não sinto mais isso. Foi daí que, mesmo sem ganhar dinheiro, comecei a pintar quadros."
Carlos Alexandrino Vieira, professor de geografia, chegou visivelmente alterado à sala de professores após ter discutido com um aluno.
"O garoto ficou o tempo todo brincando com o celular. Chamei a atenção várias vezes, mas ele não parava. Estourei quando começou a falar ao telefone no meio da aula. Perguntei: "Meu camarada, onde você pensa que está? Se não guardar agora esse celular, só vou devolvê-lo na mão dos seus pais"."
"É óbvio que eu não iria fazer aquilo. Foi uma última tentativa para que ele segurasse a onda. Mas o fato é que ele já estava testando meus limites há um bom tempo, medindo forças. Quando ameacei confiscar, ele me peitou, dizendo "quem vai tirar de mim? Você?"."
Carlos Alexandrino tem 30 anos e é um dos professores mais novos do Miécimo. Começou a lecionar no ano passado.
"Na faculdade, até chegamos a debater como agir em caso de indisciplina. Mas a verdade é que não somos preparados para lidar com esse tipo de aluno, inserido nessa realidade social em que vivemos. Não temos embasamento psicopedagógico para isso. A realidade é muito mais difícil do que a teoria."
Uma queixa comum, feita por quase todos os professores, é que o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), em vigor desde 1990, tirou deles instrumentos para disciplinar.
"O ECA é claro nos direitos das crianças e dos adolescentes, mas o professor tem medo de que qualquer coisa mais dura que disser em sala seja usada contra ele", diz Heloísa Motta, orientadora educacional.
Alexsandra Gomes, membro do Conselho Tutelar de Campo Grande, confirma que é grande a queixa de professores. Mas discorda dessa interpretação.
"Se a escola se organizar em torno de um projeto político-pedagógico bem estruturado, ela tem meios para deixar claros os direitos e deveres de todos." Heloísa espera, ainda neste ano, discutir e aprovar um novo regimento interno, justamente para que fique claro como agir em caso de indisciplina.

PRECONCEITO
Na realidade de um colégio público, expulsar um jovem, mesmo que sua atitude esteja prejudicando todos os demais colegas, é quase impossível.
Rosana lembra de três casos em que a situação chegou a um limite. Em dois, convenceu os pais a mudarem o filho de escola. No outro, não houve jeito.
Era um aluno que brigava com os colegas, foi preconceituoso com um estudante negro e, certa vez, arrotou na frente de uma professora, dizendo, em seguida, que ela era a mais feia da escola.
A diretora chamou o pai para uma conversa, mas ele argumentou que não era papel dela disciplinar seu filho. "Nossa missão também é formar cidadãos", disse Rosana. O pai retrucou: "A senhora acha mesmo que vai dar conta disso?".
O caso mais grave vivenciado no Miécimo, no entanto, ocorreu há três anos. Dois alunos brigaram do lado de fora, e um deles, bastante machucado, procurou abrigo no colégio.
A orientadora educacional, Heloísa Motta, marcou uma reunião com os responsáveis. Mas o padrasto e o avô de um dos alunos, ao verem o outro jovem na antessala da direção, começaram a agredi-lo com socos. Foram parar na delegacia.
Desde então, Heloísa desistiu de resolver, pelo diálogo, casos graves. "É uma sensação de fracasso e impotência. Mas, quando se chega a esse nível, não temos mais como dar conta."
O Conselho Tutelar, criado para zelar pelos direitos da criança e ao qual a escola tantas vezes recorre, carece de estrutura em Campo Grande.
Os cinco conselheiros -eleitos pela população e com vencimentos de R$ 1.401 pela função- se espremem com o restante da equipe numa casa de dois quartos, sala e anexo. Supostamente, deveriam dar conta de uma população superior a 1 milhão de habitantes.
O computador, doado pelo Ministério Público, é obsoleto, e pilhas de papéis se amontoam. Nem mesmo verba suficiente para selos há. Eles recebem da prefeitura uma cota de 50, além de 12 aerogramas. "Não dá nem para o volume de um dia de trabalho", diz a conselheira Alexsandra Gomes.
Para tentar conscientizar escolas da importância do trabalho preventivo, os conselheiros de Campo Grande visitam vários colégios da região.
"Deveríamos agir preventivamente, mas enxugamos gelo, pois o que mais nos chega são situações de emergência. As escolas deixam quase tudo em nossas mãos", reclama a conselheira Elaine Frâncio.
Neste ano, ao detectar que o nível de indisciplina de uma turma estava fugindo do controle, a direção chamou todos os responsáveis dos 45 alunos para uma conversa. Quatorze compareceram.
O professor José Luiz Mêda pediu ajuda. "A gente precisa do apoio de vocês. Tem que cobrar que façam o dever de casa. Tem que demonstrar interesse, perguntar o que ele aprendeu naquele dia, incentivar."
Pais de todas as turmas são chamados bimestralmente para uma reunião. São poucos os que comparecem. Não por acaso, costumam ser os mais participativos. É o caso da dona de casa Maria Josilda Teixeira, 40, mãe de Dênis Teixeira, 16.
Naquele dia, logo após a reunião, a escola afixaria no quadro as notas dos alunos. Ela cobra o filho pelas notas baixas em algumas disciplinas. "Sei que você gosta de umas matérias mais que de outras, mas, na vida, a gente não faz sempre só o que gosta."
Maria se define como uma mãe "generala". "Ele consegue atingir as médias, mas, se quisesse, poderia ter ótimas notas. Os jovens hoje não levam tão a sério os estudos como antigamente. Querem pegar tudo pronto da internet."
Dênis admite que poderia se esforçar mais: "Às vezes, a gente fica mesmo na bagunça, vai pelo entusiasmo do pessoal."
Tem dias em que é difícil achar um espaço vazio na mesa de Rosana Faria. São formulários, pastas, recados, notas fiscais e comunicados que chegam toda hora em sua sala.
Logo numa segunda-feira de manhã, ela abre o e-mail e descobre que terá que preencher, em dois dias, um extenso formulário de diagnóstico dos cursos técnicos que estão integrados ao ensino médio (antigo segundo grau). "Já perdi a conta de quantos desses documentos já preenchi. Mas acho positivo que eles estejam interessados em conhecer melhor cada escola."

BUROCRACIA
O problema é que, a cada nova equipe que chega à Secretaria de Educação, surgem novos pedidos de diagnóstico, às vezes sobre temas já pesquisados em outras gestões.
E, desde 1993, foram 15 mudanças de comando na Secretaria de Educação do Rio, o que dá uma média de pouco mais de um ano de permanência no cargo para cada secretário.
Surgem também, com frequência, projetos de empresas ou ONGs. Quase sempre, chegam já prontos, sem discussão prévia com a direção.
Rosana tenta não sucumbir diante de tantas tarefas.
Mas isso tem um preço: para dar conta de todas essas demandas sem abrir mão de acompanhar de perto o dia a dia do colégio, ela trabalha das 7h às 18h, esticando às vezes até as 21h. Seu salário bruto, já com os R$ 800 de gratificação por ser diretora, é de R$ 2.120.
São 31 anos de magistério, sendo sete em cargos na direção do Miécimo.
Mesmo com uma jornada de trabalho extensa, sobra pouco tempo para cuidar de tarefas pedagógicas, como conversar com os professores sobre melhores formas de ensinar o conteúdo previsto para as turmas.
Rosana não é exceção. Uma pesquisa realizada pela Fundação Victor Civita e pelo Ibope, com 400 diretores de todo o país, mostrou que 90% dos entrevistados gastam mais tempo cuidando de tarefas administrativas, como gerenciar a merenda, limpeza e entrega de materiais, do que com questões relacionadas ao ensino.
"O pedagógico acaba ficando em segundo plano porque a escola não pode parar e, amanhã, precisa ter merenda para os alunos", lamenta o diretor-adjunto Ilton Araújo.
Apesar de os professores se sentirem desprestigiados, o magistério representou para muitos uma ascensão social. Carlos Alexandrino Vieira começou a trabalhar aos seis anos com o pai, que vendia pipoca em porta de escolas.
Concluiu o ensino médio com 25 anos.
"Acho que eu olhava para meus pais e pensava que, se educação não foi importante para eles, também não seria para mim. Só mudei de ideia quando comecei a procurar emprego", diz.
José Carlos de Araújo, 53, teve histórico semelhante. Filho de empregada doméstica, migrou da Paraíba para o Rio com a mãe, mas foi criado pelos tios.

O MESTRE
"Eles cuidaram de mim com a condição de que ficariam responsáveis por minha educação. Foi minha sorte", diz.
Outro que superou dificuldades para chegar à profissão foi Ilton Araújo, 40.
Filho de um operário paraibano semialfabetizado, morou boa parte da infância na Rocinha, maior favela da zona sul carioca. Começou a trabalhar aos nove anos, vendendo bebida num botequim. Depois foi ambulante na praia.
Foi o único dos seis irmãos que completou universidade. Formou-se em história e lecionou também nas disciplinas de filosofia e ensino religioso até se tornar diretor-adjunto no Miécimo da Silva.
Além da religião -é protestante congregacional-, conta que um fator decisivo em sua trajetória foi um professor. Anos mais tarde, resolveu procurá-lo. "Fiz questão de agradecê-lo e mostrar como foi importante para mim."
Para atrair bons profissionais, Rosana tenta criar um ambiente de trabalho agradável. É um modo de compensar a pouca autonomia que tem, como diretora, para formar sua equipe. Na rede estadual fluminense, é o professor quem escolhe onde dará aula, com base na nota do concurso.
Não é um problema apenas dela. Pesquisa feita no ano passado pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico em 23 países mostrou que, no Brasil, somente 27% dos diretores tinham autonomia para contratar professores, e apenas 26% podiam demiti-los.
Na média de todos os países pesquisados (a maioria, nações europeias), esses percentuais eram, respectivamente, de 68% e 61%.
Uma vez na equipe, no entanto, é muito difícil afastar um professor que não esteja se dedicando. Rosana diz que são raros os casos, mas, quando acontecem, não há muito o que fazer, além de conversar.
A presidente do grêmio, Lidiane Oliveira, 19, elogia a maioria dos docentes, mas conta que, há dois anos, precisou levar à direção a queixa em relação a um professor.
"A reclamação era a mesma em todas as turmas. Ele não tinha nenhuma paciência para tirar nossas dúvidas."
"Nos responderam que não havia muito o que fazer porque professor não é funcionário do colégio, mas do Estado", conta Lidiane.
A página pessoal da professora Marília Braga no Orkut é repleta de recados, fotos e vídeos de seus alunos.
"Eles têm meu e-mail, celular, endereço. Já até emprestei minha casa para um churrasco. A relação é ótima, mas, na hora de falar sério, também falo. Prova disso é que, infelizmente, a cada ano reprovo mais alunos. Amigos, amigos, professor à parte", conta.
A amizade com os mestres é um dos pontos mais valorizados pelos alunos.
"Rola muita amizade. Eu adiciono no meu Orkut, converso via MSN. Acho que a melhor maneira de conquistar o respeito é se entrosando", diz Lidiane Oliveira.
Jayme Galvão, professor de biologia, é um dos mais populares. Ele faz piadas, mímicas, solta alguns palavrões e se movimenta por toda a sala.
Apesar do clima descontraído, os alunos prestam atenção e fazem várias perguntas. Às vezes, elas mudam por completo o planejamento. Mas ele prefere que seja assim, pois sente os jovens mais participativos.
Já a queixa com relação a professores que dão aulas tradicionais é quase unânime.
"A gente não gosta é daquela aula em que o professor entra em sala com uma postura de "agora eu vou falar e vocês só escutam'", diz Marecyla Costa, aluna do terceiro ano.
Da parte dos professores, além da cobrança de maior interesse e participação, é também generalizada a crítica de que, a cada ano, os alunos entram mais despreparados.
Marília é quem melhor resume a opinião de todos os seus colegas: "A exigência caiu muito. A prova que eu dava há dez anos para o primeiro ano, se eu der agora para o terceiro, vou reprovar em massa. E olha que estou falando do Miécimo", diz.
Antes de ser professor, Carlos Frederico Kruger, 34, pensou em ser militar, jornalista ou advogado. Chegou também a ter uma única experiência como corretor de seguros. Foi um desastre, como ele lembra.
"Tive duas tentativas de vender uma apólice. Tudo já estava praticamente certo. Mas consegui fazer com que as duas pessoas desistissem. Era óbvio que eu não levava o menor jeito para a coisa."
Acabou tornando-se professor de geografia, e mostra muita disposição para o trabalho.
Para conseguir um rendimento próximo de R$ 5.000, dá aulas em seis estabelecimentos. São 48 tempos por semana em 19 turmas, para 725 alunos.
Sua jornada mais cansativa é às segundas. Pela manhã, dá aulas para turmas de ensino médio num colégio particular.

TURMA DIFÍCIL
À tarde, é professor de alunos de uma escola municipal de ensino fundamental. À noite, o expediente é numa faculdade.
A primeira aula, num colégio particular de Campo Grande, é tranquila.
A turma seguinte, no entanto, é sempre um teste para sua paciência.
Do fundo da sala, é quase impossível entender o que fala, pois os alunos não param de conversar. Ele chama a atenção várias vezes, sem sucesso.
Dois alunos dormem. Outros estão agitados. Atiram bolinhas de papel, conversam alto entre si. Uma menina se levanta e, sem nenhum constrangimento, vai até o outro canto da sala para conversar com uma amiga, enquanto o professor escreve no quadro.
"Já fiz várias reclamações sobre a turma, a direção chamou os pais, mas não adiantou. Tenho que respirar fundo porque, como professor, não posso começar a perseguir aquela turma. É difícil."
À tarde, Fred -como é conhecido por todos- volta a enfrentar uma turma difícil, desta vez numa escola municipal dentro de uma favela de Campo Grande. "Eu poderia fingir que dou a matéria e passar um exercício. Mas cobro que aprendam. Não faço prova mais fácil só para eles passarem."
Essa escola foi construída há 18 anos como solução provisória, mas acabou virando permanente. Um anexo feito para abrigar mais turmas parece um presídio: grades, paredes cinza e pichadas, janelas pequenas.
A sala de informática é a única a destoar das demais do anexo, mas tem uma explicação: nunca foi utilizada. Os computadores chegaram há dois anos, mas o diretor ainda espera pela instalação da banda larga no laboratório para liberar o acesso.
"É por isso que tantos professores da região procuram se transferir para o Miécimo. Lá, pelo menos, a direção nos dá boas condições de trabalho."
A média na rede estadual do Rio para passar de ano é cinco. Ela serve para todos os alunos, mas não para Jairo Tavares Júnior, 16. "Minha média pessoal é oito", diz.
Sua dedicação aos estudos faz com que ele se sinta discriminado por alguns colegas. Para não desanimar, se inspira no dono da Microsoft, Bill Gates.
"Me chamam de nerd, de CDF, e não me convidam para a balada. Mas acho até bom, pois fico com mais tempo para estudar. Lembro sempre de uma frase do Bill Gates, que disse:
"Seja gentil com os nerds, pois um deles será seu chefe"."
Jairo é um dos nove filhos de uma professora e de um funcionário público. Sempre estudou no ensino público e quer ser engenheiro. Senta-se sempre na frente da sala, para que a bagunça não o atrapalhe.
"De 44 alunos da turma, tem apenas uns 10 que estão realmente interessados em aprender. A gente senta na frente e, quando o professor não consegue dar aula para todos, dá só para a gente", diz.
Já no caso de Aimeé Mello, 15, a relação com os colegas é menos conflituosa. "No início, alguns até achavam que eu era puxa-saco dos professores. Mas eles perceberam depois que era meu jeito."
Para o diretor-adjunto Ilton Araújo, o desafio é não deixar que os melhores alunos sejam prejudicados pela média. "O sistema, em vez de fazer com que os bons alunos puxem os outros para seu nível, acaba trazendo os melhores para a média dos demais."
Desde que assumiu o cargo de adjunto, Ilton se preocupa em valorizar também esses alunos participativos. Num dia, ao ver o pai de Aimeé, pede para conversar com ele.
"Chamei o senhor aqui porque, geralmente, a escola só se preocupa em chamar os pais quando há algum problema. Mas eu só queria dizer que sua filha é uma aluna exemplar, e quero parabenizá-lo pessoalmente por isso", disse Ilton.
O pai não segurou o choro.


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