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+Cultura
O urbanismo está morto
É o que afirma o polêmico arquiteto Frank Gehry, que recusa o rótulo de "starchitect" e diz que sempre fez projetos ecologicamente corretos
MIGUEL MORA
Ele chega trajando preto rigoroso e, com um
sorriso irônico, se
submete por 40 minutos à tortura de uma
entrevista com vários jornalistas. Em um dado momento,
uma entrevistadora corajosa
solta a palavra proibida, "starchitect" (arquiteto estrela), e
Frank O. Gehry, do alto de seus
80 anos (nasceu em Toronto
em 1929), se irrita.
"Não sou um "starchitect'!
Sou apenas um arquiteto. E sabem quem inventou essa m...
de palavra? Um jornalista."
Seu processo de experimentação é uma viagem que mistura arte e artesanato, tecnologia
de ponta e tradição, adaptação
metafísica ao meio, imaginação, solidez e elegância.
Nos últimos meses, a crise
prejudicou alguns de seus projetos, como o do aeroporto de
Veneza -"isso significa que
nunca vou fazer nada na Itália"- ou seu plano de urbanismo para o Brooklyn [em Nova
York, nos EUA], e Gehry foi
obrigado a despedir metade
dos 220 profissionais que tinha
em seu estúdio.
Ele revela o fato com voz
triste, amargurada. Como se
esta nova época de austeridade
forçada não combinasse com
sua grandeza sinuosa -às vezes grandiloquente- e sua ambição de deixar em cada obra
algo definitivo, um ícone.
O talento do arquiteto/inventor/artista/construtor é assombroso. Sua maneira de sonhar a obra a partir do nada,
como um pintor diante da tela
vazia, é emocionante, com suas
homenagens ao cubismo, à "arte povera" [arte pobre, movimento italiano dos anos 1970]
ou ao construtivismo.
Mas alguns já disseram que
esse novo estilo nascido em
Bilbao (embora o Disney Hall
de Los Angeles seja anterior)
retorna em todo lugar, infiltrando-se quase sem querer, e
talvez o leve a admitir alguma
imitação aparente ou a copiar a
si mesmo diretamente -como
ele próprio assinala.
Outro pensamento capcioso:
a obra recente do Prêmio Pritzker de 1989, ao ser vista em
conjunto, define em um só
olhar uma era: a dos disparates
financeiros, o tempo do excesso, do novo-rico e do edifício-marca.
Talvez esteja faltando um segundo olhar. O "efeito Bilbao"
seria só um lance de efeito? Um
álibi para favorecer a especulação? A estratégia de marketing
de um "starchitect"?
O tempo já deu sua resposta:
não. E Gehry a sublinha com
dados, e sem cair em falsa modéstia: "Doze anos depois, o
museu Guggenheim de Bilbao
recebe 1 milhão de visitantes
por ano e é uma máquina de ganhar dinheiro. Custou US$ 97
milhões e ainda não caiu".
O que talvez seja mais importante é que o colosso do
[rio] Nervión continua a sugerir todo tipo de leitura e emoção a seus visitantes.
Alguém já o comparou com
Dom Quixote galopando em direção a um horizonte incerto.
As placas voadoras, os tetos
curvos, os espaços imensos...
Os edifícios de Gehry, contrariamente ao que se poderia
imaginar, não nascem de fora,
mas por dentro e se projetam
para fora, com a ambição de
criar não apenas arquitetura,
mas urbanismo.
Talvez a poética do excesso
de Gehry seja, no fundo, uma
crítica desse excesso?
"Os tempos do excesso acabaram", responde Gehry, sem
ocultar sua tristeza. "Acabou-se o desperdício, e é preciso enfrentar esse desafio. Não sei se
isso é bom ou ruim, mas é o que
há. É preciso poupar energia e
dinheiro. Fazer arquitetura
verde. Agora tudo precisa ser
verde. E isso é real, porque senão estaremos mortos."
E prossegue, embalado e se
gabando: "Enfim, eu já passei
por isso: nos anos 1960, fiz arquitetura verde, ecológica.
Meus clientes não tinham recursos e eu fazia casas e escritórios baratos, para a classe
média. Adaptei minha arquitetura aos seus recursos. Para
mim, toda mudança é instigante; gosto de desafios".
"Haverá colegas que pensarão diferente, é claro. Será interessante ver o que fazem. O
verde se converteu no álibi de
muitas pessoas sem talento."
"Mas não serão os arquitetos
sem talento que vão resolver o
problema. Eu já falava em poupar energia nos anos 1960,
quando usava cachecol e cabelos compridos. Agora dizem
que a arquitetura é menos importante do que o verde. Mas o
mundo é para as pessoas. E as
pessoas precisam de arte, precisam de música."
PERGUNTA - O perigo é que a ecologia se converta em assunto político?
FRANK GEHRY - Talvez a solução
seja legislar melhor para poupar energia. Mas cada indivíduo pode fazê-lo por si só, com
precisão. Ed Begley Jr., o ator,
vive de maneira totalmente
verde. Recicla urina e fezes, come legumes da horta, anda
sempre de bicicleta, não tem
carro... É um modelo a seguir.
Todos deveriam imitá-lo.
E o governo do Brasil deveria
deixar de derrubar a Amazônia,
e alguém deveria inventar um
sistema barato para converter a
água do mar em água potável, e
todos nós deveríamos aprender
a viver mais modestamente,
gastando menos e deixando de
ter dois carros.
Mas apenas se as sociedades
se engajarem mais é que vamos
obrigar os governos a promover
políticas mais sustentáveis.
PERGUNTA - Diria que seus museus
e salas de concertos são verdes?
GEHRY - Isso depende do cliente e do lugar. A Louis Vuitton,
por exemplo, queria que o edifício fosse obrigatoriamente de
cristal. E a cidade não aceitava
o edifício a não ser que fosse
verde. É difícil fazer um museu
verde de cristal. Isso só é possível em Paris.
Em Bilbao, por exemplo, tínhamos o rio próximo a uma cidade do século 19, uma ponte
gigantesca e uma capital deprimida devido à crise da indústria
do aço e dos estaleiros.
Por isso, usamos aço para
ajudar a economia local e buscamos uma liga de titânio, porque em Bilbao chove muito e o
titânio, em contato com a água,
fica com a cor dourada, é um
milagre.
Mas nem tudo depende do
arquiteto.
As galerias de exposição em
Bilbao foram feitas sob a supervisão de Tom Krens [então diretor da Fundação Guggenheim], e a sala de baixo sempre me pareceu grande demais.
Queria dividi-la e tinha um sistema pensado para fazê-lo, mas
ele insistiu e eu fiquei muito
aborrecido.
PERGUNTA - Por que o sr. acha que
o museu funcionou?
GEHRY - [A curadora] Carmen
Giménez, que é extraordinária,
fez exposições maravilhosas,
como a de Cy Twombly. Num
primeiro momento, disseram
que não funcionaria. Mas os artistas que expõem ali adoram.
Em Toronto foi muito diferente. Fizemos salas brancas, minimalistas, mas com coração.
PERGUNTA - E o Guggenheim de
Abu Dhabi, será verde?
GEHRY - Bem, eles [os Emirados Árabes Unidos] estão tentando criar uma cultura nova,
entrar no mundo.
Eram um povo isolado e nômade, mas mandaram seus jovens para as melhores universidades do mundo, e agora querem estar no mesmo circuito
que Paris e Nova York. Eles têm
os recursos necessários, dizem
que Deus os deu a eles.
Tom Krens está trabalhando
nisso e vai fazer uma coleção
muito internacional. Curadores de todo o mundo já foram
para lá, alguns judeus e outros
antissemitas declarados, e não
houve problemas.
Haverá artistas maravilhosos, alguns africanos, por
exemplo. Eles não vivem apenas no deserto. Têm acesso à
Europa, à Ásia, ao Ocidente. É
um projeto um pouco volátil,
mas talvez funcione bem.
PERGUNTA - O sr. gosta da globalização?
GEHRY - Ela é inevitável e interessante. O mais interessante
que está acontecendo agora é o
casamento inter-racial. É muito instigante ver como as culturas se misturam em novas famílias. Nós, arquitetos, também chegaremos a isso.
Quando você tenta parar algo
que já está em andamento, é
impossível. Uma amiga minha
está muito preocupada porque
uma empresa médica usa camundongos. Ela deveria é ir viver em outro planeta.
PERGUNTA - O sr. acha que será
lembrado como um radical?
GEHRY - Por acaso [o arquiteto
britânico Norman] Foster é um
radical? [O arquiteto holandês
Rem] Koolhaas, sim, mas não
sei se isso é importante.
Alguns possuem a capacidade de fazer experimentos, e outros, não, e também não os podemos culpar por isso.
PERGUNTA - O sr. se considera um
"starchitect"?
GEHRY - Sempre haverá arquitetos caros e técnica e financeiramente ruins. Mas, para construir o Guggenheim de Bilbao,
fiz um orçamento de US$ 100
milhões e terminei a obra com
US$ 97 milhões [R$ 181 milhões]. Doze anos depois, ela
continua ali, e a manutenção
não é difícil.
No Disney Hall (sala de concertos em Los Angeles), gastamos US$ 215 milhões, e o orçamento inicial era de US$ 207
milhões. E tampouco está caindo. Cinco anos depois, continua
funcionando. Muitas pessoas
identificam Bilbao e Los Angeles com esses edifícios.
PERGUNTA - Não acha que os arquitetos pensam demais em suas construções e se esquecem das cidades?
GEHRY - O urbanismo está nas
mãos das corporações de construtores, nas grandes empresas
de tijolos... Nós somos arquitetos e servimos aos clientes. Eles
nos convidam; não podemos
chegar e nos impor. As grandes
firmas não chamam arquitetos
-elas têm seus arquitetos próprios. Tentei fazer isso no
Brooklyn, mas fracassei.
Seria preciso continuar tentando. Eu queria fazer um plano de cidade escolar, e não saiu.
O urbanismo está morto nos
EUA. E nós, arquitetos, não
contamos para nada. É preciso
mexer demais com política. E,
às vezes, isso não dá certo.
Foster vai fazer urbanismo
em Abu Dhabi. Quando tiver
terminado, estaremos em cadeiras de rodas. Ele está tendo
problemas. Seu sonho era dez
vezes melhor do que aquilo que
está nas plantas.
PERGUNTA - É possível ser arquiteto e artista ao mesmo tempo?
GEHRY - Adoro Cervantes e Lewis Carroll; meus melhores
amigos são os artistas. Rauschenberg, por exemplo [o arquiteto italiano Renzo Piano,
um dos autores do projeto do
Centro Georges Pompidou, em
Paris, entra na sala].
E Renzo Piano é o melhor arquiteto do mundo. Rarará.
Os edifícios públicos também são uma forma de urbanismo. As cidades precisam ter
ícones. Bibliotecas, hospitais,
museus. Daqui a cem anos, as
pessoas os verão e dirão: "O que
é isso?" E pensarão: "É arte".
A íntegra deste texto saiu no "El País".
Tradução de Clara Allain.
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