São Paulo, domingo, 31 de janeiro de 1999

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Kenneth Maxwell descreve para leitores estrangeiros os contrastes e confrontos do passado e do presente brasileiro em texto escrito pouco antes desvalorização do real
Resumo do Brasil

Antônio Gaudério/Folha Imagem
O cortador de cana José Damião da Silva, aos 12 anos, em foto realizada em Alagoas, em 1991


KENNETH MAXWELL
especial para "The Wilson Quarterly"

Há um ano apenas, os brasileiros estavam repletos de confiança: acreditavam que seu país estava prestes a ingressar no século 21, que finalmente estava a caminho de se tornar a grande potência mundial que muitos imaginavam há muito tempo que seria. Em 1994, o então ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso, ex-marxista e ex-professor de sociologia que se transformara em reformista neoliberal, arquitetou uma reforma monetária de grande alcance, o Plano Real, que se somou a outras medidas liberalizantes para projetar o Brasil, a oitava maior economia mundial, na vanguarda da tendência mundial, em direção aos mercados abertos e o livre comércio. Não apenas os brasileiros prosperavam, como sua democracia, que completava dez anos de vida, encontrava bases sólidas em que se apoiar. Mais tarde, no mesmo ano, Cardoso foi recompensado com a presidência por seu desempenho à frente do Ministério da Fazenda e se tornou o segundo presidente civil eleito pelo voto direto desde que os militares abriram mão do poder, em 1985.
Depois disso veio a crise econômica global, começando com as quedas das moedas do Sudeste Asiático, em 1997, intensificando-se com as moratórias russas, em agosto do ano passado, e aterrissando brutalmente no Brasil pouco depois. Como este, apesar de seus muitos outros êxitos, não havia conseguido pôr ordem em sua casa fiscal, ainda era perigosamente dependente do capital estrangeiro para financiar seus déficits comercial e governamental, esforçando-se para se manter à tona enquanto os investidores, assustados, fugiam com seus dólares.
Cardoso, que foi reeleito para um segundo mandato em outubro, em meio à crise, foi forçado a adotar medidas drásticas para reduzir os gastos do governo, elevar os impostos e reduzir a dívida nacional. Em troca, o Brasil ganhou um pacote de socorro de US$ 41,5 bilhões orquestrado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) -e a garantia de mais medidas dolorosas ainda por vir, sem falar numa recessão que promete ser prolongada e profunda. O presidente, que em sua fase marxista foi o sumo sacerdote da teoria da dependência -segundo a qual os países capitalistas desenvolvidos conservariam as economias menos desenvolvidas eternamente escravizadas-, deve haver se indagado se, afinal, estivera tão enganado assim naquela época.
No entanto a década de progresso político e econômico que o Brasil viveu transformou o país de maneiras determinadas e irreversíveis. E, paradoxalmente, são essas transformações que vão complicar sua recuperação. A prosperidade, a abertura política e a ampliação das oportunidades de ensino trouxeram em seu bojo um engajamento político mais profundo da população e o surgimento de um movimento sindical, de partidos políticos e de uma grande gama de organizações de base. Os brasileiros encontraram sua voz própria, em um grau inusitado na história do país, e começaram a repensar o que significa ser brasileiro.
As medidas impostas pelo FMI correm o risco de provocar um confronto direto entre o Brasil dos banqueiros e empresários e o novo Brasil do ativismo político e social. Uma coisa é certa: não importa o que o governo brasileiro tenha prometido ao FMI, ele não pode mais governar por decreto ou de cima para baixo.
A história de como esses dois Brasis resolvem seu futuro coletivo será uma das mais dramáticas dos próximos meses, e não apenas para o Brasil. A falência desse gigante sul-americano afetaria profundamente as reformas que se encontram em curso em toda a América Latina, sem falar nas premissas sobre as quais foi fundada a nova ordem econômica internacional. É exatamente por essa razão que o secretário norte-americano do Tesouro, Robert Rubin, declarou que "o Brasil é grande demais para que se possa permitir que desabe".
O Brasil, para muitos estrangeiros, ainda é o país da bossa nova e da "Garota de Ipanema", mas os próprios brasileiros estão começando a se irritar com sua auto-imagem folclórica, a de um país feito de uma gente eternamente jovem, bronzeada e frequentadora contumaz das praias, indiferente ao passado e sempre voltada para um futuro tão efêmero quanto as tórridas telenovelas nacionais. Antonio Carlos Jobim, autor da grande celebração lírica da praia de Ipanema e da beleza passageira de suas frequentadoras, disse certa vez que "o Brasil não é para principiantes". E ele tinha razão.
É claro que os brasileiros continuam querendo se divertir, e ninguém está propondo que se acabe com o Carnaval. Mas, nos últimos dez anos, à medida que o Brasil foi se aprofundando na democracia e trazendo novas vozes às arenas política e social, os brasileiros começaram a reconhecer que para chegar ao futuro é preciso compreender o passado. Essa nova preocupação com a história se reflete na tendência recente de restauração da arquitetura colonial -da qual o Brasil possui alguns dos exemplares mais extraordinários das Américas. Mas essas construções são artefatos da história brasileira tradicional. O passado que o Brasil está redescobrindo é repleto de contradições.
Diferentemente do que se deu com seus vizinhos de colonização espanhola, a transição para a independência nacional do Brasil, em 1822, conservou alto nível de continuidade nas instituições. Afinal, foi liderada pelo filho mais velho do monarca português, que imediatamente se autoproclamou imperador -dom Pedro 1º. O Brasil independente emergiu como monarquia, conservando intacto seu imenso território. Em consequência disso, o Estado que se desenvolveu a partir desse momento era altamente centralizador e a mitologia nacional que gerou retratava o país como produto quase exclusivo dos portugueses, que ocupavam a zona litorânea, e da herança imperial.
Hoje, porém, os brasileiros estão aprendendo uma nova história de seu país. Ela destaca o Brasil revoltoso dos escravos fugidos que resistiram aos portugueses durante décadas, no século 17, no interior do atual Estado do Alagoas; nas revoltas sangrentas que tiveram lugar no início do século 19 no Amazonas, em Pernambuco e na fronteira sul do Rio Grande do Sul, contra o império brasileiro, e nas extraordinárias comunidades messiânicas do interior semi-árido da Bahia, reprimidas brutalmente um século atrás e imortalizadas pelo grande ensaísta brasileiro Euclides da Cunha em seu livro "Os Sertões" e, mais recentemente, por Mario Vargas Llosa em "A Guerra do Fim do Mundo".
A historiadora Laura de Mello e Souza qualifica esse país de "o Brasil dos desclassificados" -ou seja, a maioria da população brasileira, nem branca nem negra, nem escravista nem escrava de origem, nem fazendeira nem posseira ou pequena proprietária, formada não apenas por portugueses, mas também por italianos, alemães, japoneses, árabes e judeus, sem falar em mestiços, mulatos, índios e africanos, e não apenas por banqueiros, mas também por pequenos comerciantes e empresários, não apenas por bispos, mas também por orixás africanos e pastores pentecostalistas.
O reconhecimento dos "desclassificados" foi acompanhado pelo surgimento de movimentos de sem-terra, de povos indígenas, de trabalhadores na indústria, de protestantes e outros. Talvez os brasileiros de origem africana constituam o grupo mais importante que está descobrindo sua voz política. Durante séculos eles conservaram forte presença religiosa e cultural pluralista no núcleo da sociedade brasileira, mas, até muito recentemente, ela mal era reconhecida nos corredores do poder elitista.
São Paulo elegeu seu primeiro prefeito negro, Celso Pitta, em 1996, e o presidente Cardoso integrou Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, a seu gabinete, na condição de ministro dos Esportes. A nova vice-governadora do Rio de Janeiro, Benedita da Silva, é afro-brasileira nascida numa favela carioca. À medida que mais afro-brasileiros passam a integrar a classe média, rostos negros começam a aparecer com mais frequência em comerciais e na imprensa.
O redescobrimento da história do Brasil pelos brasileiros desafia sobretudo o legado peculiar que, desde o século 18, permitiu que os governantes do país enxertassem o imperativo do autoritarismo em sua visão do futuro. Foi essa mentalidade que levou os oficiais militares que derrubaram a monarquia, em 1889, e os generais que assumiram o controle do país, em 1964, a sentirem atração tão forte pelos positivistas franceses. Ela se resume à perfeição no lema impresso na bandeira brasileira: "Ordem e Progresso". Com muita frequência a democracia tem sido vista, no Brasil, como inimiga do progresso, promotora da anarquia, da desunião e do atraso. Parece que está claro que essa idéia está desatualizada.
A transformação do Brasil decorre, em parte, de sua prosperidade recente. Quando estive no Rio pela primeira vez, ainda estudante, em meados dos anos 60, o país ainda era em grande parte rural. A expectativa de vida era curta, as famílias eram grandes, a renda "per capita", baixa, e o índice de analfabetismo, muito alto.
Na década de 90 o Brasil, com uma população de mais de 160 milhões de habitantes, já se tornara uma das maiores economias do mundo, com renda "per capita" superior a US$ 5.000. O número de filhos por família caiu drasticamente, de seis por família nos anos 70 para 2,5 em meados dos anos 90. O país se tornara predominantemente urbano. O número de carros no país, que em 1970 era de 2 milhões, já chegara a 26 milhões; o número de televisores subira de 4 milhões para 31 milhões. A mortalidade infantil caíra de 118 por cada 1.000 nascimentos, em 1970, para 17 por 1.000, e o analfabetismo diminuíra muito.
Hoje os Estados brasileiros de São Paulo e Rio Grande do Sul, se fossem considerados sozinhos, figurariam entre os 45 países mais ricos do mundo. A economia do Rio Grande do Sul foi erguida sobre a base da imigração européia e da criação de gado. O Estado de São Paulo tem PIB maior do que o argentino, e a cidade de São Paulo é uma megalópole com 15 milhões de habitantes e vidas financeira, cultural e empresarial brilhantes; a Universidade de São Paulo, pertencente ao governo, é uma instituição de categoria mundial.
Como várias das grandes cidades brasileiras, São Paulo possui uma imprensa dinâmica; jornais diários como a Folha, o velho e respeitado "Estado de São Paulo" e a "Gazeta Mercantil" são tão bem redigidos, críticos e influentes quanto qualquer jornal de alta qualidade da Europa ou América do Norte. O Brasil também possui uma das redes de televisão mais bem-sucedidas do mundo, a TV Globo, e um dos mais agressivos impérios editoriais, a Editora Abril, proprietária de "Veja", um semanário de grande circulação.
Mas um grande segmento da população, formado possivelmente por 40 milhões de pessoas, ainda vive na pobreza, com renda inferior a US$ 50 mensais. O desnível de renda existente no Brasil figura entre os maiores do mundo. Os 20% mais pobres entre os brasileiros recebem meros 2% da riqueza nacional, enquanto os 20% mais ricos ficam com 60%. Os grandes centros urbanos são cercados por favelas que se espalham como feridas abertas, e as do Rio são especialmente notórias por sua criminalidade e violência. Esse é o Brasil das crianças semimortas de fome que brincam diante de barracos precários nas empoeiradas vilas nordestinas, dos meninos de rua de rosto sujo, zonzos por terem cheirado cola, que se escondem debaixo de bancos nas praças do centro de São Paulo.
Hoje, porém, a miséria extrema se concentra no semi-árido Nordeste brasileiro, onde a seca e as doenças atuam há muito tempo como pragas de dimensões bíblicas. Em 1998, ambas foram agravadas pelos efeitos do El Niño. Os brasileiros se orgulham de se descreverem como democracia racial, além de política, e se irritam quando acadêmicos e ativistas observam que a pobreza se concentra de maneira desproporcional entre a população afro-brasileira.
Na verdade, os brancos ganham em média 2,5 vezes o que ganham os negros. Como observa o veterano brasilianista Ronald Schmeider, de um total de 14 mil padres, 378 bispos e arcebispos e sete cardeais, a Igreja Católica brasileira conta com apenas 200 clérigos que não são brancos. Desproporções semelhantes podem ser constatadas no serviço diplomático brasileiro e nas fileiras de seus oficiais militares.
Apesar de tudo isso a vida dos pobres melhorou ao longo dos últimos dez anos, com grande número de pessoas ascendendo dos últimos degraus da sociedade para a classe média emergente. Essa mudança pode ser atribuída ao Plano Real de Fernando Henrique Cardoso, lançado em 1994 quando ele ainda era ministro da Fazenda no governo de Itamar Franco.
De repente a moeda se estabilizou. Os brasileiros passaram a ter dinheiro para comprar geladeiras, televisores e roupas. Os analistas que acompanharam as tendências de consumo nos últimos seis anos calculam que cerca de 19 milhões de pessoas passaram do nível de subsistência básica para o nível mais baixo da classe média brasileira, que hoje abrange cerca de 58 milhões de pessoas. Os que continuaram pobres também se beneficiaram, passando a dispor de mais dinheiro para comprar farinha, frango, ovos, milho e feijão. Sua renda cresceu 30% só no período de 1995-96.
Em décadas anteriores, a pobreza levou milhões de brasileiros a sair do interior de São Paulo e do Rio de Janeiro em direção à fronteira ocidental da bacia amazônica. Durante os anos 90, a prosperidade levou ao florescimento de muitas das cidades menores do interior brasileiro, que atraíram cerca de 5 milhões de pessoas, em sua maioria de classe média, em busca de uma qualidade de vida melhor.


Quando a política e os conflitos sociais se encontram, o o Brasil pode ser um lugar extremamente violento; para prová-lo, o Brasil tem muitos mártires


A disseminação da prosperidade e da população por todo o Brasil tornou sua sociedade ao mesmo tempo mais homogênea e mais complexa. Durante quatro séculos e meio, a maioria da população brasileira viveu em torno dos portos marítimos-chave, próxima às áreas onde eram cultivados o açúcar, algodão, cacau, café e outros importantes produtos de exportação. Em 1627 o primeiro historiador do Brasil, frei Vicente do Salvador, escreveu que os colonizadores portugueses e seus escravos africanos "arranhavam o litoral, como caranguejos".
Os governantes, tanto civis quanto militares, enxergavam o desenvolvimento do interior como meio para conquistar a grandeza futura do Brasil. No final da década de 50 o presidente Juscelino Kubitschek implementou os extraordinários planos de construção da nova e futurista capital, Brasília, pousada como uma nave espacial no planalto quase desabitado de Goiás, no Centro-Oeste do país. Torres, tigelas e xícaras viradas modernistas abrigavam o Congresso e seus funcionários, pequenas contra o pano de fundo do céu imenso e da terra vermelha. Pouco tempo depois os generais que derrubaram do poder o sucessor de Kubitschek, João Goulart, e implantaram um dos regimes militares mais longos da América Latina (1964-85), lançaram uma série de grandiosos projetos de desenvolvimento da Amazônia.
O regime militar também dedicou muito dinheiro à ampliação do ensino superior, substituindo as velhas disciplinas de influência francesa, que haviam formado Fernando Henrique Cardoso e outros acadêmicos, pelas abordagens norte-americanas, mais pragmáticas. Mas isso acabou por gerar uma nova geração apaixonada não apenas pela democracia, mas também pela tecnologia. A expulsão da Universidade de São Paulo e de outras importantes instituições de Fernando Henrique Cardoso (que era visto como marxista perigoso, apesar de ser filho e neto de generais) e outros professores universitários, e seu posterior exílio, também teve consequências paradoxais. Levou algumas fundações norte-americanas, notadamente a Fundação Ford, a investir pesadamente num sistema paralelo de centros privados de pesquisa no Brasil, que, mais tarde, funcionaria como refúgio e base política da oposição democrática.
Enquanto isso, os exilados eram recebidos de braços abertos nas universidades norte-americanas. Cardoso, que viveu no Chile e mais tarde na França, tornou-se professor visitante da Universidade da Califórnia em Berkeley e da Universidade Stanford e passou dois anos no Instituto de Estudos Avançados de Princeton, Nova Jersey, trabalhando em colaboração estreita com o sagaz e brilhante pragmático Albert O. Hirschman, veterano economista e defensor das reformas "de qualquer jeito". Quando retornou ao Brasil, em 1970, Cardoso, como muitos exilados de sua geração pertencentes à alta classe média, já se tornara profundamente cosmopolita, cético em relação ao marxismo, com boas conexões no mundo mais amplo e ótimo conhecedor do funcionamento dos sistemas político e econômico americanos.
Transformações de grande alcance também estavam tendo lugar no Brasil no nível das bases. Entre o final dos anos 70 e início da década de 80, o movimento sindical, fundado na década de 30, durante a ditadura de Getúlio Vargas, seguindo o modelo do sindicalismo fascista italiano, dependente do Estado, se libertou do controle do governo. O mais forte era o sindicato dos metalúrgicos em São Paulo.
Os sindicatos fomentaram o nascimento do novo Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980, e da Confederação Única dos Trabalhadores, em 1983. Juntos, atuaram como base para o carismático Luiz Inácio da Silva, conhecido popularmente como Lula, que subiu dentro do movimento sindical, começando do chão da fábrica, e despertou esperanças de que se transformaria num Lech Walesa brasileiro. Lula já se candidatou três vezes à presidência, sem sucesso. A mais recente delas foi em outubro de 1998.
Apesar disso, o PT está crescendo, especialmente no sul industrializado do Brasil, e na eleição de 1998 conquistou o importante governo do Rio Grande do Sul, com a vitória do candidato petista Olívio Dutra. Mas a organização dos trabalhadores não se limitou às áreas industrializadas. Ameaçadas pelo avanço das fazendas de gado e das madeireiras, os seringueiros na fronteira amazônica começaram a mobilizar-se, ainda na década de 80, para proteger sua fonte de subsistência. Como os metalúrgicos em São Paulo, esses trabalhadores pobres geraram um líder de grande estatura saído de suas bases, Chico Mendes.
Confrontadas com uma luta de vida ou morte pela sobrevivência, na medida em que o mundo externo começava a exercer pressão sobre seus últimos refúgios remanescentes na bacia amazônica, as comunidades indígenas também encontraram sua voz na década de 80. Com o apoio de organizações internacionais, tais como a Survival International, de Cambridge (Massachusetts, EUA), tribos como os caiapós e xavantes começaram a reivindicar reconhecimento e proteção contra os garimpeiros que invadiam suas florestas e poluíam seus rios com mercúrio.
Enquanto a hierarquia da Igreja Católica estava dividida em relação ao ativismo político, os clérigos de base, sob a influência da Teologia da Libertação, deram apoio organizacional a muitos dos novos movimentos de reforma brasileiros. Fundamentalistas protestantes também emergiram com força na paisagem social e religiosa brasileira.
Hoje a paisagem nacional é pontilhada de pequenas igrejas pentecostais, brancas e impecavelmente limpas. A Igreja Universal do Reino de Deus, fundada em 1977 pelo pastor pentecostalista Edir Macedo, afirma contar com mais de 3,5 milhões de fiéis e recebe mais de US$ 700 milhões em doações anuais. Ela é dona da terceira maior rede brasileira de televisão e de 30 estações de rádio. Como se diz com frequência no Brasil, "os católicos optaram pelos pobres; os pobres optaram pelos evangélicos".
Reagindo ao desafio dos evangélicos, a Igreja Católica no Brasil passou a incentivar o poderoso movimento carismático, que está mobilizando muitos de seus fiéis nas cidades brasileiras. Como os evangélicos, os carismáticos dão forte ênfase aos valores familiares, mas, como a hierarquia católica, também criticam a dureza do sistema capitalista brasileiro.
p ara a elite política brasileira e, em especial, os grandes latifundiários do país, o elemento mais ameaçador tem sido o surgimento de um poderoso movimento rural formado pelos sem-terra. Fundado no Rio Grande do Sul em meados dos anos 80, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) hoje conta com cerca de 500 mil membros, incluindo pessoas de todos os tipos vindas das margens da sociedade brasileira: desempregados, favelados, todas as pessoas que a esquerda tradicional acreditava ser impossível organizar, estimuladas pela secular impossibilidade de romper o poder dos grandes latifúndios e promover qualquer tipo de reforma fundiária significativa.
Menos de 1% das propriedades agrícolas, todas elas com mais de 200 hectares de área, cobre 40% das áreas agrícolas ocupadas no Brasil. O movimento também foi dinamizado pela expulsão de muitos pequenos proprietários de suas terras, especialmente no Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, em função da mecanização do cultivo da soja e do trigo em grande escala na década de 80. Hoje o MST é um dos maiores e mais bem-organizados movimentos sociais na América Latina, contando com cooperativas bem-sucedidas, uma home page e amplos contatos internacionais.
Para concluir, há o movimento ambientalista brasileiro, composto de cerca de 800 organizações que surgiram por força da destruição descontrolada da floresta Amazônica, dos desastres ecológicos resultantes do intensamente poluído complexo químico de Cubatão, no Estado de São Paulo, e do desmatamento constante do que restou da mata Atlântica.
Não chega a surpreender que todos esses movimentos tenham despertado reações contrárias entre os "donos do poder", como tão bem os descreve o brilhante advogado e crítico social brasileiro Raymundo Faoro. Devido ao apoio que o movimento ambientalista recebe no exterior, os militares brasileiros o vêem como pau-mandado de interesses estrangeiros, parte de um esforço mal disfarçado por parte dos EUA de tirar a Amazônia do Brasil.
O grande historiador brasileiro do século 20 Sérgio Buarque de Holanda definiu o brasileiro como indivíduo cordial, e os brasileiros são como seu presidente, pessoas de grande e contagioso encanto. Mas, quando a política e os conflitos sociais se encontram, seu país pode ser um lugar extremamente violento. Para prová-lo, o Brasil tem muitos mártires, entre eles Chico Mendes, morto a tiros em 1988 por fazendeiros ameaçados por seu movimento de seringueiros. Mais de mil sindicalistas e trabalhadores rurais militantes foram assassinados no Brasil desde meados dos anos 80. Em boa parte do país, os assassinos de militantes atuam com impunidade total. Em novembro de 1998 o fotojornalista brasileiro Miguel Pereira de Melo foi morto por pistoleiros. Ele havia registrado o massacre de sem-terra por policiais militares, em 1996, e estava prestes a depor no julgamento dos policiais.
Em alguns casos os obstáculos mais sutis ao pluralismo mostram ser os mais difíceis de superar. Para que possa haver reforma, será preciso mudar um estilo político oligárquico e uma burocracia entrincheirada que, com grande habilidade, vêm fazendo frente aos desafios que lhes são colocados há séculos. De fato, os acordos selados para possibilitar a transição do governo militar ao civil, nos anos 80, garantiram a continuidade no poder de muitos políticos da linha antiga, incluindo, com grande destaque, o poderoso chefão político baiano, ex-governador do Estado e atual presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães.
ACM, como ele é universalmente conhecido, é um político durão, sociável e com objetivos definidos, que professa com orgulho a admiração que nutre pela figura de Napoleão. Hoje, ACM exerce mais influência do que nunca e é uma figura-chave na coalizão que sustenta o presidente Cardoso -uma virada do destino estranha, mas muito brasileira, já que Cardoso era precisamente o tipo de intelectual da alta classe que deve ter despertado a desconfiança de ACM e outros donos do poder nos regimes militares do passado.

o s chefões e os burocratas têm muito a proteger. O sistema previdenciário, por exemplo, não faz praticamente nada pelos trabalhadores pobres, mas beneficia tremendamente os funcionários públicos. Em 1996 o Brasil tinha 29 generais de quatro estrelas na ativa e 5.000 pessoas que recebiam aposentadorias generosas de nível quatro estrelas, incluindo parentes distantes de militares mortos ou na reserva.
A estrutura política formal do Brasil também dificulta as reformas ao extremo. O país tem 27 governadores estaduais e mais de 5.500 prefeitos de municípios, muitos dos quais gastaram a ponto de gerar déficits maciços que, por tradição, se espera que sejam cobertos pelo governo federal. A Constituição de 1988 obriga o governo central a transferir grande parcela de sua receita tributária aos governos estaduais e municipais, sem a transferência proporcional de responsabilidade pelos programas governamentais. A idéia era dar poder aos Estados e encorajar a democracia. O resultado foi o fortalecimento dos interesses locais restritos e dos chefões políticos locais. Esses problemas foram agravados pelo sucesso do Plano Real, já que, durante os anos de inflação alta, os déficits dos governos desapareciam milagrosamente, na medida em que o atraso nos pagamentos apagava as dívidas.
A partir de 1994, entretanto, os esquemas desse tipo deixaram de funcionar, à medida que o dinheiro recuperou seu valor. A abertura da economia e a estabilização da moeda também exerceram alguns efeitos perversos. Muitos trabalhadores industriais perderam seus empregos em função dos produtos importados que invadiram o mercado de consumo. Não apenas o setor de serviços se expandiu, como também muitos trabalhadores industriais foram obrigados a passar para o setor informal. Subsequentemente, o desemprego cresceu de maneira dramática.
Cardoso esperava aprovar meia dúzia de reformas de grande alcance durante seu primeiro mandato -medidas que abrangiam desde a redução das folhas de pagamento públicas até a modificação das leis tributárias-, mas todas caíram vítimas de adiamentos e tergiversações constantes, fato que não chega a surpreender. Sua grande conquista -a modificação da Constituição para permitir sua própria reeleição- foi comprada a um alto custo: permitir a reeleição também dos chefes políticos estaduais e municipais. Estes imediatamente fizeram grandes gastos para garantir sua vitória nas urnas, levando a dívida pública a crescer para mais de US$ 300 bilhões no início de 1998 e deixando o Brasil lamentavelmente vulnerável no momento em que a crise internacional atingiu o país em cheio.
O presidente Cardoso terá dificuldade em cumprir as promessas que fez ao FMI. Contra ele estarão alinhados tantos os velhos interesses corporativistas, ansiosos para proteger o passado e seus próprios privilégios, e os grupos que começaram há pouco a afirmar seus direitos, como o MST, e que discordam do caminho escolhido para se chegar ao futuro.
A popularidade do presidente, embora suficiente para lhe garantir uma maioria inequívoca na eleição de outubro passado, se deve quase inteiramente ao sucesso do Plano Real. Cardoso se vê como político de centro-esquerda, partidário da nova "terceira via" advogada por Bill Clinton e Tony Blair, mas ele é visto pelo público como líder político indubitavelmente de centro-direita, amigo de banqueiros, industriais, funcionários públicos e políticos, e não dos trabalhadores e sem-terra.
À medida que a realidade concreta da austeridade imposta pelo FMI começar a se evidenciar -a economia brasileira já estava se encolhendo no final de 1998-, o presidente poderá perceber sua popularidade caindo. Ele tem evitado conscientemente a retórica envolvente do populismo e da demagogia e dado preferência à persuasão e conciliação em lugar do decreto executivo, mas é bem possível que 1999 teste sua determinação nesse sentido.
Lula perdeu a eleição de 1998 em parte porque optou por criticar o Plano Real. Mas a eleição de 1998 também foi marcada pelo surgimento de líderes petistas de classe média que falam uma linguagem mais próxima à dos novos sociais-democratas europeus, evitando conscientemente a retórica radical do chão de fábrica.
No Congresso, esses deputados do PT deverão fazer uma oposição sólida às medidas inspiradas pelo FMI que Cardoso tentará aprovar ao longo de 1999. O presidente também corre o risco de perder o apoio de seus aliados de centro-esquerda no interior de sua própria família política, em função de sua política econômica ortodoxa, que vai provocar uma recuo profundo dos programas sociais tão urgentemente necessários ao Brasil. E o presidente tampouco vai contar com o apoio de governadores poderosos, em cujas fileiras encontrará menos aliados do que em seu primeiro mandato, sobretudo porque eles serão obrigados a arcar com o peso maior dos cortes no orçamento.
Quem vai causar problemas especiais será o recém-eleito governador do importante Estado de Minas Gerais, o ex-presidente Itamar Franco, sob cuja égide Cardoso, então ministro da Fazenda, implementou o Plano Real. O errático Itamar Franco ainda se ressente profundamente do fato de que o crédito pelo plano foi atribuído inteiramente a Cardoso, e não a ele.
É irônico que, no clima econômico internacional carregado no qual Fernando Henrique Cardoso está iniciando seu segundo mandato presidencial, a proteção do Plano Real, ao mergulhar o Brasil numa recessão, é o que hoje representa a maior ameaça aos benefícios que ele levou a muitos brasileiros. Mas uma das maiores ameaças ao programa imposto pelo FMI para satisfazer os mercados internacionais é aquela representada por grupos e forças no interior do Brasil que mal existiam antes do início da liberalização política e econômica, uma década atrás. Não importa para onde conduzam o país, as agruras da economia brasileira não devem lançar sombra sobre a importante história de sucesso representada pela ascensão dessas novas vozes.


O texto acima é uma versão reduzida de artigo publicado na revista "Wilson Quarterly" (edição inverno/99).
Tradução de Clara Allain.



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