São Paulo, domingo, 31 de maio de 2009

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Ponto de Fuga

Meu reino por um cavalo



Enfrentar a montagem de "Os Troianos", de Berlioz, é uma proeza, e é um milagre que tenha dado plenamente certo; intensa, ela deixa o público hipnotizado, sem um minuto de tédio


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Que boboca, esse Eneias! Incapaz de tomar nas mãos seu próprio destino, como um herói que se preze. Nunca poderia ser vivido por Vin Diesel no cinema, a menos que o roteiro fosse modificado. Então, teria que furar a barriga do cavalão, matar todos os gregos, raptar sua amada para uma praia paradisíaca, ou virar o chefão de Cartago. Nada disso. Vive fugindo, ao sabor dos incêndios, dos ventos, marés e tempestades.
Com a ideia fixa de fundar Roma e acabar sendo, no fim das contas, o responsável pela existência de Bento 16.
Escapa de Troia incendiada, navega às cegas, tropeça num reino sorridente [Cartago], cheio de mulheres bonitas com uma rainha que é a mais linda de todas.
Conversa vai, conversa vem, Dido, a rainha, se apaixona, quer casar e ter filhos. Eneias coça a cabeça, diz que bom, veja você, acho que não vai dar, eu tenho que ir fundar Roma, os deuses mandaram e pronto.
Dido, furiosa, queima todos os presentes que eles tinham trocado e se mata. Eneias escapa, com a vozinha misteriosa que lhe cochicha na orelha: "Itália! Itália!".
Virgílio, o poeta romano, fez um poema épico a respeito ["Eneida"], e Berlioz uma ópera, não só épica, como destrambelhada na sua megalomania. Centenas de intérpretes; a queda de Troia representada no palco; cinco horas e meia de espetáculo.
Enquanto São Paulo e Rio, em matéria de ópera, passam por uma seca danada, o Festival Amazonas, em Manaus, é saudavelmente maluco para montar essa superprodução.

Grandezas
Enfrentar a montagem de "Os Troianos", de Berlioz, é uma proeza, e é um milagre que tenha dado plenamente certo. Intensa, ela deixa o público hipnotizado, sem um minuto de tédio. Caetano Vilela foi responsável pela montagem cheia de invenções felizes, muito poderosas nos momentos dramáticos. Sem desnaturar nada, sem carnavalizar, infiltrou orixás nesse mundo da Antiguidade clássica carregado de profecias e sortilégios.
Introduziu a capoeira, que tem, por si só, um espírito apolíneo em sua exigência regrada de equilíbrio. O cenarista, Renato Rebouças, inventou um maravilhoso cavalo de Troia. Talvez faltasse apenas um pouco de atenção ao lirismo de certas cenas, como a que se passa nos jardins de Dido. Mas é o de menos, diante do resultado total, levado adiante graças à inteligência cênica fora do comum.

Máscaras
A escrita de Berlioz põe à prova seus cantores. Nessa "Os Troianos" de Manaus todos foram dignos do grande compositor. É injusto nomear apenas alguns, mas vá lá: os brasileiros Luiza Francesconi, frágil Dido, e Sávio Sperandio, imperioso Narbal [ministro de Dido].
Marquita Lister, americana, formidável Cassandra [princesa troiana]. Michael Hendrick, outro americano, de físico ingrato, mas credível no papel de Eneias graças ao espírito da montagem, sustentou, apesar de adoentado, as exigências da partitura.
Com eles, a beleza dessa música soberba, propriamente incomparável, surgia evidente. Arrastava os espectadores para as paixões, prazeres e sofrimentos da humanidade nobre e atormentada que ela faz viver.

Pilares
É uma alegria ouvir a [orquestra] Amazonas Filarmônica, com suas sonoridades calorosas e precisas. Laurent Campellone, o maestro, diretor da ópera de Saint-Étienne, na França, desenrolou a longa tapeçaria musical interessado em cada detalhe e na pulsão do conjunto. Coros esplêndidos -momento maravilhoso em que as troianas suplicam a Cibele que as salvem dos gregos. Grupo de dança entusiasta e vivo. Berlioz reviveu, magnífico, em Manaus.

jorgecoli@uol.com.br


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