|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Ponto de Fuga
Meu reino por um cavalo
Enfrentar a montagem de "Os Troianos",
de Berlioz, é uma proeza, e é um milagre que tenha dado plenamente certo; intensa, ela deixa o público hipnotizado, sem um minuto de tédio
|
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Que boboca, esse Eneias!
Incapaz de tomar nas
mãos seu próprio destino, como um herói que se preze. Nunca poderia ser vivido
por Vin Diesel no cinema, a
menos que o roteiro fosse modificado. Então, teria que furar
a barriga do cavalão, matar todos os gregos, raptar sua amada
para uma praia paradisíaca, ou
virar o chefão de Cartago.
Nada disso. Vive fugindo, ao
sabor dos incêndios, dos ventos, marés e tempestades.
Com
a ideia fixa de fundar Roma e
acabar sendo, no fim das contas, o responsável pela existência de Bento 16.
Escapa de Troia incendiada,
navega às cegas, tropeça num
reino sorridente [Cartago],
cheio de mulheres bonitas com
uma rainha que é a mais linda
de todas.
Conversa vai, conversa vem,
Dido, a rainha, se apaixona,
quer casar e ter filhos. Eneias
coça a cabeça, diz que bom, veja
você, acho que não vai dar, eu
tenho que ir fundar Roma, os
deuses mandaram e pronto.
Dido, furiosa, queima todos
os presentes que eles tinham
trocado e se mata. Eneias escapa, com a vozinha misteriosa
que lhe cochicha na orelha:
"Itália! Itália!".
Virgílio, o poeta romano, fez
um poema épico a respeito
["Eneida"], e Berlioz uma ópera, não só épica, como destrambelhada na sua megalomania.
Centenas de intérpretes; a queda de Troia representada no
palco; cinco horas e meia de espetáculo.
Enquanto São Paulo e Rio,
em matéria de ópera, passam
por uma seca danada, o Festival Amazonas, em Manaus, é
saudavelmente maluco para
montar essa superprodução.
Grandezas
Enfrentar a montagem de
"Os Troianos", de Berlioz, é
uma proeza, e é um milagre que
tenha dado plenamente certo.
Intensa, ela deixa o público hipnotizado, sem um minuto de
tédio. Caetano Vilela foi responsável pela montagem cheia
de invenções felizes, muito poderosas nos momentos dramáticos. Sem desnaturar nada,
sem carnavalizar, infiltrou orixás nesse mundo da Antiguidade clássica carregado de profecias e sortilégios.
Introduziu a capoeira, que
tem, por si só, um espírito apolíneo em sua exigência regrada
de equilíbrio. O cenarista, Renato Rebouças, inventou um
maravilhoso cavalo de Troia.
Talvez faltasse apenas um
pouco de atenção ao lirismo de
certas cenas, como a que se passa nos jardins de Dido.
Mas é o de menos, diante do
resultado total, levado adiante
graças à inteligência cênica fora
do comum.
Máscaras
A escrita de Berlioz põe à
prova seus cantores.
Nessa "Os Troianos" de Manaus todos foram dignos do
grande compositor.
É injusto nomear apenas alguns, mas vá lá: os brasileiros
Luiza Francesconi, frágil Dido,
e Sávio Sperandio, imperioso
Narbal [ministro de Dido].
Marquita Lister, americana,
formidável Cassandra [princesa troiana]. Michael Hendrick,
outro americano, de físico ingrato, mas credível no papel de
Eneias graças ao espírito da
montagem, sustentou, apesar
de adoentado, as exigências da
partitura.
Com eles, a beleza dessa música soberba, propriamente incomparável, surgia evidente.
Arrastava os espectadores para
as paixões, prazeres e sofrimentos da humanidade nobre e
atormentada que ela faz viver.
Pilares
É uma alegria ouvir a [orquestra] Amazonas Filarmônica, com suas sonoridades calorosas e precisas.
Laurent Campellone, o
maestro, diretor da ópera de
Saint-Étienne, na França, desenrolou a longa tapeçaria musical interessado em cada detalhe e na pulsão do conjunto.
Coros esplêndidos -momento
maravilhoso em que as troianas
suplicam a Cibele que as salvem dos gregos. Grupo de dança entusiasta e vivo. Berlioz reviveu, magnífico, em Manaus.
jorgecoli@uol.com.br
Texto Anterior: Os Dez+ Próximo Texto: Filmoteca Básica: Cria Cuervos Índice
|