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Berlin affair
Ele tornava o mundo do intelecto intensamente vivo, importante, empolgante e divertido
Editor que transformou o acadêmico de Oxford em um ativo intelectual público, Henry Hardy lembra como o conheceu, destaca a capacidade incendiária de sua prosa e fala da importância de suas ideias
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MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!
Se a obra de Isaiah Berlin é hoje uma referência para o pensamento liberal, isso se
deve essencialmente
a um jovem estudante de filosofia que o "descobriu" na Universidade de Oxford, no Reino
Unido, nos anos 1970.
Então aspirante à carreira
universitária, Henry Hardy conheceu Isaiah Berlin ao submeter seu projeto de pesquisa
de pós-graduação a uma banca
de que o filósofo fazia parte.
"A cada dois ou três minutos,
ele se levantava e olhava da janela para ver se chegara o táxi
que pedira", lembra Hardy na
entrevista que deu à Folha.
À época, o autor de "Dois
Conceitos de Liberdade" era
um historiador das ideias respeitado no circuito fechado das
humanidades de Oxcam (Oxford e Cambridge), mas pouco
citado extramuros.
Até conhecer Hardy, que,
fascinado pelas teses e pela
conversa instigante de Berlin,
deu o passo essencial: desovou
as inúmeras obras escritas pelo
mestre, mas ainda guardadas
na gaveta, e o convenceu a publicá-las.
Hardy se tornaria o protótipo do editor: transformou o
respeitado acadêmico de circulação restrita no intelectual público e de dimensão mais midiática.
Conceitos como "pluralismo", "liberdade negativa" e "liberdade positiva" passaram a ser aplicados para explicar a conjuntura política internacional imediata, como os totalitarismos do Leste Europeu -de onde, aliás, provinha
Berlin (ele era letão).
Paradoxalmente, sua defesa
do não cerceamento ao indivíduo seria posteriormente adotada por ideologias conservadoras e interpretada a contrapelo, como uma crítica estrita ao Estado.
Mas, como Hardy explica na
entrevista abaixo, esse era justamente um traço marcante da
prosa e da escrita de Berlin: a
capacidade de "atear fogo" a
qualquer debate.
FOLHA - Seria difícil começar uma
entrevista com o sr. sem perguntar
como se sente em relação ao status
que ajudou a criar para Isaiah Berlin,
desde que o convenceu a publicar as
obras engavetadas. De certo modo,
foi o sr. quem o "descobriu"...
HENRY HARDY - Naturalmente,
fico muito feliz por ter conseguido divulgar a obra de Berlin
para um público maior. Suas
ideias são fundamentais para a
nossa compreensão do que é o
ser humano -além de ser um
grande ensaísta.
Quando o conheci, havia publicado apenas uma pequena
parte de tudo o que escrevera, e
preencher essa brecha era um
desafio instigante -e muito
trabalho árduo!
É claro que a resposta entusiasmada de leitores em todo o
mundo, incluindo o Brasil, vem
sendo motivo de grande satisfação para mim.
FOLHA - Como foi seu primeiro
contato com ele?
HARDY - Eu o conheci quando
cheguei ao Wolfson College,
em Oxford, para a entrevista de
admissão como estudante de
pós-graduação em filosofia, em
1972.
Sobre o meu tema de pesquisa, Berlin queria saber não tanto o que eu esperava demonstrar, mas se se tratava, naquele
momento, de um tópico vivo na
comunidade filosófica.
Ele era, em primeiro lugar,
um historiador das ideias e, em
segundo, um filósofo.
E, a cada dois ou três minutos, ele se levantava e olhava da
janela para ver se chegara o táxi
que ele havia pedido.
Fiquei sabendo mais tarde
que uma das descrições que ele
costumava fazer de sua produção autoral era "eu sou como
um táxi: preciso ser chamado".
Quando comecei minha pós,
me envolvi em conversas com
ele, geralmente na sala comunitária da faculdade, onde costumava conversar durante horas com quem ali chegasse.
Como sou filósofo, naturalmente me interessei pelo que
ele escrevera, embora não soubesse nada anteriormente sobre a obra dele.
Perguntei a pessoas que já estavam no Wolfson e sabiam
mais sobre ele o que eu deveria
ler e me recomendaram "Quatro Ensaios sobre a Liberdade",
que havia sido publicado apenas três anos antes, em 1969.
Li o livro durante minhas férias e o achei absolutamente
fascinante e comovente, de
muitas maneiras.
Daquele momento em diante
me tornei um berlinófilo (embora não inteiramente acrítico), independentemente do fato de já gostar dele como pessoa
e de achar as conversas com ele
profundamente interessantes.
Ele tornava o mundo do intelecto intensamente vivo, importante, empolgante e divertido. Definia o intelectual como
alguém que quer que as ideias
sejam as mais interessantes
possíveis, e essa definição explica em parte por que foi tão
festejado.
Eu desafiaria qualquer um a
citar alguém que exemplificasse melhor o que Madame de
Staël disse a respeito de Rousseau: "Ele não disse nada de novo, mas ateou fogo a tudo".
Só que Berlin dizia, sim, coisas novas, o que o coloca à frente de Rousseau nesse quesito,
se De Staël estiver certa.
FOLHA - Como reagia à influência
crescente de seu pensamento?
HARDY - Com uma espécie de
prazer desapegado. Ele se sentia gratificado por sua fama
crescente, sem dúvida, mas
também um pouco constrangido: não tinha o menor senso de
autoimportância e nenhum desejo de administrar o volume
crescente de comentários sobre sua obra.
Perguntei a ele certa vez se
não se sentia frustrado ao ver
sendo publicadas tantas representações e interpretações
equivocadas de suas ideias.
Nem um pouco, ele respondeu: era perfeitamente normal
que as pessoas publicassem
seus pensamentos e então os
deixassem abrir seu próprio caminho no mundo, para melhor
ou para pior.
FOLHA - Ele é um best-seller?
HARDY - De maneira nenhuma.
Suas obras não são escritas em
estilo suficientemente popular
para isso, embora sejam muito
bem escritas. E sua temática
não é do tipo de que são feitos
os best-sellers.
O livro de Berlin que vendeu
mais até hoje é sua biografia intelectual de Karl Marx: mais de
250 mil exemplares da edição
inglesa foram comprados desde 1939, e há muitas mais em
versões traduzidas.
Depois disso vem "Quatro
Ensaios sobre a Liberdade",
agora superado por "Liberdade", que continua a ser um livro
didático padrão sobre filosofia
política.
FOLHA - Isaiah Berlin morreu em
1997, oito anos depois da queda do
Muro de Berlim. Como ele enxergou
um momento tão simbólico para a
liberdade individual?
HARDY - Ele ficou emocionado
e instigado, é claro, especialmente porque não esperava
testemunhar esse momento.
Mas não era complacente.
Sabia que a nova liberdade talvez não durasse. Ele não acreditava que a história segue um
libreto ou que o progresso é algo inevitável.
Uma pergunta como a sua foi
feita a ele na época, e a resposta
dele foi a seguinte:
"Não tenho nada de novo a
dizer; minhas reações são semelhantes às de virtualmente
todas as pessoas que conheço
ou de quem tenho conhecimento: espanto, satisfação
enorme, felicidade."
"Quando homens e mulheres
há muito tempo encarcerados
por regimes opressivos e brutais conseguem se libertar, pelo
menos de algumas de suas correntes, e depois de muitos anos
conhecem nem que sejam apenas os primeiros passos da liberdade genuína, como pode
qualquer pessoa dotada da menor faísca de sentimento humano deixar de se comover
profundamente?"
FOLHA - Para o sr., que o conheceu
tão bem, como ele reagiria à apropriação de suas ideias por ideologias
conservadoras? Como o sr. mesmo
explica essa apropriação?
HARDY - Reagiria com resignação irônica.
Como se opunha ao extremismo de esquerda, é natural
que setores da direita o vejam
como aliado, por mais inapropriado que isso possa ser.
FOLHA - Há alguma obra dele que
ainda falta ser publicada?
HARDY - Haverá mais dois volumes de cartas, espero. E possivelmente mais um volume de
ensaios. Continuarei a publicar
materiais inéditos de vários tipos, sobretudo esboços e transcrições de palestras, em seu site
[berlin.wolf.ox.ac.uk].
De modo geral, porém, o trabalho já está concluído.
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