São Paulo, domingo, 31 de maio de 2009

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Berlin affair

Ele tornava o mundo do intelecto intensamente vivo, importante, empolgante e divertido


Editor que transformou o acadêmico de Oxford em um ativo intelectual público, Henry Hardy lembra como o conheceu, destaca a capacidade incendiária de sua prosa e fala da importância de suas ideias


MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!

Se a obra de Isaiah Berlin é hoje uma referência para o pensamento liberal, isso se deve essencialmente a um jovem estudante de filosofia que o "descobriu" na Universidade de Oxford, no Reino Unido, nos anos 1970. Então aspirante à carreira universitária, Henry Hardy conheceu Isaiah Berlin ao submeter seu projeto de pesquisa de pós-graduação a uma banca de que o filósofo fazia parte.
"A cada dois ou três minutos, ele se levantava e olhava da janela para ver se chegara o táxi que pedira", lembra Hardy na entrevista que deu à Folha. À época, o autor de "Dois Conceitos de Liberdade" era um historiador das ideias respeitado no circuito fechado das humanidades de Oxcam (Oxford e Cambridge), mas pouco citado extramuros.
Até conhecer Hardy, que, fascinado pelas teses e pela conversa instigante de Berlin, deu o passo essencial: desovou as inúmeras obras escritas pelo mestre, mas ainda guardadas na gaveta, e o convenceu a publicá-las.
Hardy se tornaria o protótipo do editor: transformou o respeitado acadêmico de circulação restrita no intelectual público e de dimensão mais midiática. Conceitos como "pluralismo", "liberdade negativa" e "liberdade positiva" passaram a ser aplicados para explicar a conjuntura política internacional imediata, como os totalitarismos do Leste Europeu -de onde, aliás, provinha Berlin (ele era letão).
Paradoxalmente, sua defesa do não cerceamento ao indivíduo seria posteriormente adotada por ideologias conservadoras e interpretada a contrapelo, como uma crítica estrita ao Estado. Mas, como Hardy explica na entrevista abaixo, esse era justamente um traço marcante da prosa e da escrita de Berlin: a capacidade de "atear fogo" a qualquer debate.
 

FOLHA - Seria difícil começar uma entrevista com o sr. sem perguntar como se sente em relação ao status que ajudou a criar para Isaiah Berlin, desde que o convenceu a publicar as obras engavetadas. De certo modo, foi o sr. quem o "descobriu"...
HENRY HARDY
- Naturalmente, fico muito feliz por ter conseguido divulgar a obra de Berlin para um público maior. Suas ideias são fundamentais para a nossa compreensão do que é o ser humano -além de ser um grande ensaísta. Quando o conheci, havia publicado apenas uma pequena parte de tudo o que escrevera, e preencher essa brecha era um desafio instigante -e muito trabalho árduo! É claro que a resposta entusiasmada de leitores em todo o mundo, incluindo o Brasil, vem sendo motivo de grande satisfação para mim.

FOLHA - Como foi seu primeiro contato com ele?
HARDY
- Eu o conheci quando cheguei ao Wolfson College, em Oxford, para a entrevista de admissão como estudante de pós-graduação em filosofia, em 1972.
Sobre o meu tema de pesquisa, Berlin queria saber não tanto o que eu esperava demonstrar, mas se se tratava, naquele momento, de um tópico vivo na comunidade filosófica. Ele era, em primeiro lugar, um historiador das ideias e, em segundo, um filósofo. E, a cada dois ou três minutos, ele se levantava e olhava da janela para ver se chegara o táxi que ele havia pedido.
Fiquei sabendo mais tarde que uma das descrições que ele costumava fazer de sua produção autoral era "eu sou como um táxi: preciso ser chamado". Quando comecei minha pós, me envolvi em conversas com ele, geralmente na sala comunitária da faculdade, onde costumava conversar durante horas com quem ali chegasse. Como sou filósofo, naturalmente me interessei pelo que ele escrevera, embora não soubesse nada anteriormente sobre a obra dele.
Perguntei a pessoas que já estavam no Wolfson e sabiam mais sobre ele o que eu deveria ler e me recomendaram "Quatro Ensaios sobre a Liberdade", que havia sido publicado apenas três anos antes, em 1969. Li o livro durante minhas férias e o achei absolutamente fascinante e comovente, de muitas maneiras.
Daquele momento em diante me tornei um berlinófilo (embora não inteiramente acrítico), independentemente do fato de já gostar dele como pessoa e de achar as conversas com ele profundamente interessantes. Ele tornava o mundo do intelecto intensamente vivo, importante, empolgante e divertido. Definia o intelectual como alguém que quer que as ideias sejam as mais interessantes possíveis, e essa definição explica em parte por que foi tão festejado.
Eu desafiaria qualquer um a citar alguém que exemplificasse melhor o que Madame de Staël disse a respeito de Rousseau: "Ele não disse nada de novo, mas ateou fogo a tudo". Só que Berlin dizia, sim, coisas novas, o que o coloca à frente de Rousseau nesse quesito, se De Staël estiver certa.

FOLHA - Como reagia à influência crescente de seu pensamento?
HARDY
- Com uma espécie de prazer desapegado. Ele se sentia gratificado por sua fama crescente, sem dúvida, mas também um pouco constrangido: não tinha o menor senso de autoimportância e nenhum desejo de administrar o volume crescente de comentários sobre sua obra. Perguntei a ele certa vez se não se sentia frustrado ao ver sendo publicadas tantas representações e interpretações equivocadas de suas ideias. Nem um pouco, ele respondeu: era perfeitamente normal que as pessoas publicassem seus pensamentos e então os deixassem abrir seu próprio caminho no mundo, para melhor ou para pior.

FOLHA - Ele é um best-seller?
HARDY
- De maneira nenhuma. Suas obras não são escritas em estilo suficientemente popular para isso, embora sejam muito bem escritas. E sua temática não é do tipo de que são feitos os best-sellers.
O livro de Berlin que vendeu mais até hoje é sua biografia intelectual de Karl Marx: mais de 250 mil exemplares da edição inglesa foram comprados desde 1939, e há muitas mais em versões traduzidas. Depois disso vem "Quatro Ensaios sobre a Liberdade", agora superado por "Liberdade", que continua a ser um livro didático padrão sobre filosofia política.

FOLHA - Isaiah Berlin morreu em 1997, oito anos depois da queda do Muro de Berlim. Como ele enxergou um momento tão simbólico para a liberdade individual?
HARDY
- Ele ficou emocionado e instigado, é claro, especialmente porque não esperava testemunhar esse momento. Mas não era complacente. Sabia que a nova liberdade talvez não durasse. Ele não acreditava que a história segue um libreto ou que o progresso é algo inevitável.
Uma pergunta como a sua foi feita a ele na época, e a resposta dele foi a seguinte: "Não tenho nada de novo a dizer; minhas reações são semelhantes às de virtualmente todas as pessoas que conheço ou de quem tenho conhecimento: espanto, satisfação enorme, felicidade."
"Quando homens e mulheres há muito tempo encarcerados por regimes opressivos e brutais conseguem se libertar, pelo menos de algumas de suas correntes, e depois de muitos anos conhecem nem que sejam apenas os primeiros passos da liberdade genuína, como pode qualquer pessoa dotada da menor faísca de sentimento humano deixar de se comover profundamente?"

FOLHA - Para o sr., que o conheceu tão bem, como ele reagiria à apropriação de suas ideias por ideologias conservadoras? Como o sr. mesmo explica essa apropriação?
HARDY
- Reagiria com resignação irônica. Como se opunha ao extremismo de esquerda, é natural que setores da direita o vejam como aliado, por mais inapropriado que isso possa ser.

FOLHA - Há alguma obra dele que ainda falta ser publicada?
HARDY
- Haverá mais dois volumes de cartas, espero. E possivelmente mais um volume de ensaios. Continuarei a publicar materiais inéditos de vários tipos, sobretudo esboços e transcrições de palestras, em seu site [berlin.wolf.ox.ac.uk].
De modo geral, porém, o trabalho já está concluído.


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