São Paulo, domingo, 31 de maio de 2009

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Rara intimidade


"Cartas Baianas" e "Cartas Luso-Brasileiras" são um dos poucos documentos para estudar a vida privada no país


EVALDO CABRAL DE MELLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A publicação das "Cartas Luso-Brasileiras (1807-1821)" e a reedição das "Cartas Baianas (1821-1824)" servem para recordar aos estudiosos do período colonial e imperial no Brasil que a história da vida privada no decurso destes séculos constitui uma empreitada penosa, em decorrência da carência das fontes de que se dispõe.
E, em especial, daquele gênero de fontes que é indispensável para a tarefa: a correspondência privada, os diários, as lembranças particulares, enfim, os papéis de família. Sob esse aspecto, a história do Brasil é reconhecidamente pobre em comparação, por exemplo, à dos EUA.
Georges Gusdorf pretendeu, e provavelmente com boa dose de razão, que as "écritures du moi" [escritas do eu] constituem "um exercício espiritual, que procede diretamente da exigência religiosa".
É inegável que, nos países protestantes, a inexistência da confissão auricular teve o efeito de desviar para o registro escrito as dúvidas, as inquietações, os problemas íntimos do indivíduo.
Outra razão de peso foi certamente o nível educacional mais elevado das populações protestantes, decorrente de outra exigência religiosa -a do acesso direto à palavra de Deus, isto é, aos textos bíblicos, sem a intermediação do clero.
O essencial é ter em vista que a utilização das "Cartas Luso-Brasileiras" e das "Cartas Baianas" requer a maior circunspecção da parte do historiador da vida privada no Brasil, tendo em vista o fato mesmo de que, como assinalou Lilia Moritz Schwarcz, trata-se de "um conjunto documental cuja abrangência, qualidade e coerência são raramente encontradas no Brasil".
As famílias Garcez e Pinto da França viveram em Portugal e na Bahia às vésperas da Independência. E, na sua condição de representantes da última geração de luso-brasileiros e como tal dilacerados, patrimonial e sentimentalmente, entre o reino e o Brasil, elas não são propriamente típicas da sociedade brasileira daqueles anos, seja na sua vertente rural, seja na urbana.
Afinal de contas, dificilmente as senhoras de engenho da época escreveriam aos maridos (quando o fizessem, o que era raro) com a fluência literária da d. Maria Bárbara Pinto da França.

Mulheres controladas
Na grande maioria dos casos, mesmo quando tais senhores tivessem aprendido a ler, não teriam podido expressar-se por escrito, em razão da prática de controle do sexo feminino adotada pelos chefes de família não só em Portugal como na Europa, que consistia em só alfabetizar inteiramente os filhos -mas não as filhas, que poderiam, na melhor das hipóteses, ler, mas não escrever.
No Brasil colonial, quando uma senhora casada pudesse escrever, não seria certamente à maneira informal de d. Maria Bárbara, mas com uma sobriedade e uma secura que eram entre nós de rigor nos contatos entre parentes.
Na realidade, as cartas de d. Maria Bárbara já correspondem a um tratamento conjugal ("Luís da minha alma" ou "meu adorado Luís, minha consolação e vida"), que estava longe de ser o predominante nas famílias brasileiras coevas e que, nas portuguesas da época, talvez só vigesse na esfera da aristocracia de corte.
Uma senhora casada de começos do século 19 provavelmente se dirigiria por escrito ao cônjuge não no estilo de d. Maria Bárbara, mas à maneira formal da carta que a sogra de Luís Paulino Pinto de Oliveira da França endereçou-lhe em 1823, tratando o genro por "Ilustríssimo" ou por "meu filho" com a expressão da "certeza de que Vossa Senhoria esteja inteiramente restabelecido". O fecho é também cerimonioso: após o costumeiro "Deus guarde a Vossa Senhoria muitos anos", à sogra assina-se "mãe afetiva".

Frieza dos filhos
A correspondência dos filhos não tem previsivelmente o calor das cartas da mãe para o marido, tanto mais que se destina a um chefe de família que não hesitou em "ostracizar" por algum tempo o rebento que se consorciara contra a sua vontade, com mulher talvez de classe menos elevada.
Desgosto de que ele só se consolou organizando para a filha um matrimônio principesco para o Brasil da época, que fez questão de descrever em detalhe para informação de um parente.
Na época, o tom predominante de uma carta de filho a pai é a daquela que Gilberto Freyre transcreveu em "Sobrados e Mucambos" ("Meu Pai e Senhor. A benção"), mesmo quando se trata, como neste caso, de comunicar um ato de rebeldia filial, "uma ação que era absolutamente oposta ao preceito sagrado de Vosmecê", o "horrendo crime" de casar sem licença paterna e, ainda por cima, com a filha de um padre.
A verdade é que as relações de família no Brasil de outrora primavam pela reserva e pela distância, particularmente entre pais e filhos do sexo oposto, consoante, aliás, a descrição de Capistrano de Abreu: pai macambúzio, mulher submissa, filhos aterrados.
Sob esse aspecto, as recordações de infância de José Lins do Rego, intituladas "Meus Verdes Anos", ou o "Diário do Barão de Goicana", redigido nos últimos anos do Império e primeiros da República, reflete melhor a atmosfera íntima da casa-grande rural ou do sobrado urbano do que as "Cartas Baianas".
Pois, embora anteriores em mais de século, revelam uma família europeia, já impregnada dos valores da Ilustração. Aos brasileiros de outrora teriam parecido de mau gosto ou simplesmente excessivas as manifestações verbais e gestuais de carinho entre parentes, que atualmente são de bom tom entre nós.

EVALDO CABRAL DE MELLO é historiador, autor de "O Nome e o Sangue" (Cia. das Letras) e "O Negócio do Brasil" (Topbooks), entre outros.


CARTAS LUSO-BRASILEIRAS

Organizadores: Antônio Pinto da França e Antônio Monteiro Cardoso
Editora: Companhia Editora Nacional (tel. 0/xx/11/2799-7799)
Quanto: R$ 34 (272 págs.)

CARTAS BAIANAS

Organizadores: Antônio Pinto da França e Antônio Monteiro Cardoso
Editora: Companhia Editora Nacional
Quanto: R$ 34 (240 págs.)




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