São Paulo, domingo, 31 de julho de 2005

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UM PROFETA EQUÍVOCO

JACQUES RANCIÈRE
COLUNISTA DA FOLHA

O bicentenário do nascimento de Tocqueville assume ares de consagração. O autor de "A Democracia na América" parece ter-se tornado a referência absoluta da opinião dominante. E o lugar que ele ocupa traduz bem as mudanças ocorridas nos últimos 30 ou 40 anos no seio dessa opinião.
Outrora, elogiava-se nele um eminente representante da filosofia política liberal, por ter trazido de sua investigação americana o conceito de uma democracia moderna, em harmonia com as condições da sociedade industrial. O que celebramos hoje não é mais o pensador da democracia liberal; é o sociólogo genial, que profetizou com 150 anos de antecedência as formas de despotismo inerentes à "igualdade de condições" própria da democracia, isto é, da sociedade individualista de massa.
Tocqueville teria descrito antecipadamente todos os males que passaram da América para a França: o consumo em massa, submetendo os indivíduos, pelas próprias vias da satisfação narcisística de seus desejos, a um modelo de vida padronizado; a exacerbação das exigências egoístas que negam o interesse comum; a tirania da opinião democrática; as devastações do "comunitarismo", que exige que todas as diferenças sejam respeitadas e tratadas igualmente; a extensão da igualdade a todos os campos, incluindo os do saber e de sua transmissão, tornando o aluno igual a seu mestre e um usuário que trata a escola como um cliente trata seus fornecedores etc.


O sucesso de Tocqueville é ao mesmo tempo o de um anti-Marx e o de um substituto da crítica marxista


Simbolicamente, um grande colóquio recente que celebrou Tocqueville em sua terra natal, a Normandia, foi aberto por uma conferência de Alain Finkielkraut, representante típico dessa intelligentsia midiática francesa que se desdobra em imprecações contra a igualdade destruidora de condições e opiniões, que leva a civilização humana à ruína.
Tocqueville é realmente esse sociólogo profético da sociedade de consumo? Pode-se duvidar. A igualdade de condições de que ele fala não é a igualdade dos consumidores de Nike e Coca-Cola denunciada pelos ideólogos atuais. É o desaparecimento das rígidas divisões em ordens que estruturavam as sociedades feudais.

Depois da revolução
O que Tocqueville foi estudar nos Estados Unidos era a especificidade do governo democrático em uma nova sociedade, formada por colonos que o exílio havia situado em condições de fortuna iniciais mais ou menos iguais, num país onde a democracia não precisou lutar contra o feudalismo territorial. Ele fez isso para responder a uma preocupação comum a seus contemporâneos, conservadores, liberais ou socialistas: como pensar o governo e a sociedade que deveriam suceder à grande convulsão da Revolução Francesa? Como conceber, além das nostalgias feudais e das impaciências republicanas, a ordem social e estatal adequada a uma sociedade moderna?
A Revolução Americana parecia então fornecer o antídoto para a Revolução Francesa. Esta havia naufragado no terror porque desejou impor pela força do Estado os costumes de uma república em um país feudal. Aquela dava o exemplo de uma transição harmoniosa: uma Constituição para equilibrar os poderes do povo e das elites; instituições alimentadas por um estilo de vida social homogêneo.
Ao contrário da França, onde a violência republicana desejara impor uma sociedade artificial, os Estados Unidos ofereciam esse sábio equilíbrio entre as instituições democráticas e as instituições aristocráticas que era o segredo do bom governo. Mas eles também ofereciam a figura positiva dessa harmonia dos costumes e das leis em que a teoria de Montesquieu aprendera a buscar o segredo dos governos estáveis. Esse era particularmente o caso na década de 1830, quando os Estados Unidos eram essencialmente um país de pequenos proprietários de terra que a política democrática de Andrew Jackson tentava proteger do apetite das companhias financeiras. Compreende-se que Tocqueville tenha visto aí uma sociedade sem classes tendendo para uma crescente igualdade material, e tenha baseado nisso uma previsão que o futuro, diga-se o que se disser de seu profetismo, não confirmou.
Mas sabemos também que a democracia "social" à americana, que trazia solução para os perigos da democracia demasiado política dos republicanos franceses, lhe pareceu rapidamente comportar outro tipo de perigo: esses costumes brandos e tranqüilos da democracia americana, esse casamento natural da liberdade de empreendimento com a liberdade política, podiam ser concebidos de duas maneiras opostas.
Certamente, os indivíduos da sociedade democrática extraíam de seus empreendimentos privados o apreço pela liberdade política. Mas também obtinham aí essa sede de interesses e prazeres privados que provoca o amolecimento do caráter e a perda das grandes virtudes políticas. De um lado, se poderia dizer que a liberdade estava mais garantida pelo acúmulo de pequenas virtudes do que por alguns heroísmos grandiosos. De outro, se poderia temer que essa dispersão das energias favorecesse o surgimento de um despotismo insensível, impondo-se suavemente a homens dos quais confiscaria a liberdade política, deixando-lhes a de cuidar de seus negócios privados e seus prazeres domésticos. Esse dilema não solucionado permeia o segundo livro de "A Democracia na América", publicado cinco anos após o primeiro e que não teve repercussão na época.
Deve-se dizer que, à diferença do primeiro, ele não se baseia na observação do viajante. Que a "boa" democracia seja a democracia dos pequenos proprietários de terra que não têm muito tempo para tratar dos assuntos de Estado; mas que essa sábia democracia favoreça uma forma de tirania que confisca o poder, deixando os cidadãos cuidarem em paz de suas propriedades, essa dialética não necessitava das viagens transatlânticas modernas para ser concebida. Já estava prefigurada nos textos de Aristóteles: em sua análise da boa democracia agrícola, onde os camponeses, presos em seus campos, deixam os homens competentes governarem em paz, e em sua descrição da tirania de Pisístrato, exercida sem violência sobre homens ocupados com seus assuntos privados.
E quanto às grandes virtudes aristocráticas, cuja perda Tocqueville deplorava, não parece que ele tenha encontrado exemplo entre os aristocratas rurais que eram seus colegas na Câmara de Deputados nem entre os cortesãos da monarquia absoluta. É sobretudo de Plutarco e dos grandes feitos das repúblicas ateniense e romana que ele extrai sua nostalgia.
Em suma, é uma "sociologia" estranha que Tocqueville põe a serviço de um liberalismo estranho. Tanto quanto suas notas de viagem, sua doutrina inspira-se na leitura dos filósofos e historiadores da Antigüidade. Ela refuta assim a oposição simplista da liberdade individual dos modernos à liberdade coletiva dos antigos, que é o coração da doutrina liberal. Como compreender então que sua análise pudesse valer alternadamente como exemplo do pensamento liberal e como a antecipação genial das sociologias pós-modernas de uma democracia idêntica ao reinado igualitário e indiferente do consumo?

Marx
Raymond Aron, um dos grandes artesãos do "retorno a Tocqueville", nos dá uma chave para compreendê-lo, intitulando o primeiro capítulo de seu "Ensaio Sobre as Liberdades - Alexis de Tocqueville e Karl Marx". O sucesso de Tocqueville é ao mesmo tempo o de um anti-Marx e o de um substituto da crítica marxista. De um lado, o "profeta" Tocqueville é quem responde à profecia revolucionária marxista. Lá onde Marx via a lei da exploração capitalista e a violência da luta de classes denunciar as ilusões da democracia formal, Tocqueville declarou, ao contrário, o fim das sociedades de classe e a coincidência cada vez mais exata entre a igualdade inscrita nas instituições do Estado e a realidade da aproximação das condições e das fortunas. Esse Tocqueville era adequado a tornar-se o herói da democracia liberal, oposta ao totalitarismo marxista.
O desmoronamento do sistema soviético evidentemente mudou a situação. Não havia mais totalitarismo para se opor à democracia. Mas também não havia mais uma alternativa de envergadura para o capitalismo. A denúncia marxista das relações de produção se reciclou então no Ocidente na denúncia da "sociedade de consumo", identificada com o "individualismo democrático".
Foi aí que o profeta Tocqueville mudou de emprego. Em vez de ser a testemunha da coexistência harmoniosa entre o capitalismo e a democracia, tornou-se o analista sombrio da perversão democrática que conduz ao "totalitarismo brando" da sociedade de consumo. Os dois grossos tomos de "A Democracia na América" foram assim reduzidos às duas ou três páginas do capítulo do segundo que evocam o risco de um poder tutelar exercido sobre homens absortos por seus "prazeres pequenos e vulgares".
Essas páginas tiveram, aliás, um estranho destino. Elas haviam sido valorizadas, na França dos anos 20, por um comentarista católico reacionário, Antoine Rédier, que desejava colocar Tocqueville em contradição com sua própria fé nas virtudes da democracia. Este inspiraria Jacob Paul Mayer, autor em 1939 do livro de referência sobre Tocqueville intitulado "Prophet of the Mass Age" [Profeta da Era de Massas] e prefaciador, 30 anos depois, de "A Sociedade de Consumo", de Jean Baudrillard.
Apesar desse patrocínio, a análise de Baudrillard continuou fortemente ancorada na teoria marxista do fetichismo das mercadorias. Mas em 30 anos pudemos ver a crítica da falsa democracia da mercadoria inverter-se, tornar-se a simples crítica da democracia "como reinado da mercadoria". O segredo dessa crítica é simples: consiste em fazer das novas formas da dominação capitalista mundial a conseqüência funesta da "igualdade de condições", o fato de um indivíduo democrático de massa, ávido de prazeres sempre novos e destruidor do bem comum. Damos glória então a Tocqueville por ter previsto esse reinado totalitário do "indivíduo democrático".
Repetimos à vontade outrora a boutade de Marx dizendo que não era marxista. Também seria justo dizer que Tocqueville não era o que hoje chamamos de tocquevilliano.

Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" e "A Partilha do Sensível" (ambos pela ed. 34).
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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