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TERRA DA LIBERDADE
Autor de livro recém-lançado na França sobre a atualidade do pensamento de Tocqueville, o sociólogo
Raymond Boudon diz que a democracia ainda é um sistema mais forte nos Estados Unidos que na Europa
DANIEL BUARQUE
DA REDAÇÃO
A democracia na América se
tornou uma religião compartilhada por todos os cidadãos do país. Um dos
principais defensores do pensamento de Tocqueville atualmente, o professor da Sorbonne Raymond Boudon (1934) diz que os EUA continuam sendo uma nação mais democrática que os países da Europa,
atualmente -como na época da
viagem do filósofo francês que completaria 200 anos anteontem-, por
mais que tenha havido um aparente
retrocesso depois do 11 de Setembro.
Ele diz que os EUA têm instituições civis mais desenvolvidas, uma
maior igualdade de direitos, grande
circulação de idéias e forte crença no
funcionamento do sistema democrático, questionado na Europa.
Em entrevista à Folha, da Normandia, onde viveu Tocqueville, o
autor do recém-lançado na França
"Tocqueville Aujourd'hui" (Tocqueville Hoje, Odile Jacob, 300 págs.,
23 - R$ 68) diz que o autor de "A
Democracia na América" sempre foi
subvalorizado na França, enquanto
nos EUA sua obra central é considerada "o livro que compreende melhor os princípios que regem a vida
política do país". Ele aponta a previsão de tendências atuais na obra de
Tocqueville e defende que, em vez de
ser um pensador da direita, sua obra
é progressista e favorece uma igualdade antropológica -mais justa
que a de Marx- entre as pessoas.
Folha - Qual é a atualidade do pensamento de Tocqueville?
Raymond Boudon - Ele identificou,
acredito, vários tipos de fortes tendências que continuam sendo observadas na sociedade contemporânea, como as conseqüências do desenvolvimento da demanda por
igualdade. Constatamos em todas as
sociedades ocidentais uma acelaração e um aumento da luta pelos direitos e a conquista de novos direitos
pelos cidadãos.
Folha - Ele foi reconhecido por esse
tipo de previsão?
Boudon - Tocqueville foi reconhecido enquanto vivo, mas caiu no esquecimento, especialmente depois
da Terceira República, nos anos
1870, e da Segunda Guerra Mundial.
Ele teve muito menos influência que
outros pensadores como Auguste
Comte, Michelet, Proudhon, Fourier
ou Saint-Simon.
Folha - Podemos dizer que ele foi redescoberto nos anos recentes?
Boudon - Ele foi redescoberto pela
primeira vez por Raymond Aron
[sociólogo francês, 1905-1983]. Em
"As Etapas do Pensamento Sociológico" (1967, Martins Fontes), ele dedica um capítulo à obra de Tocqueville, colocando-o pela primeira vez
como parte da galeria dos mais importantes sociólogos. Mas, mesmo
entre os estudiosos franceses, hoje,
Tocqueville não tem espaço no ensino como mereceria e fica muito
atrás de Max Weber e Durkheim,
por exemplo.
Devemos lembrar, entretanto, que
nos países anglo-saxões, especialmente nos EUA, Tocqueville sempre
foi considerado um grande clássico,
e a primeira parte de "A Democracia
na América" é considerada pelos
norte-americanos o livro que compreende melhor os princípios que
regem a vida política do país.
Folha - Essa valorização de Tocqueville nos EUA tem alguma relação com
sua democracia, enquanto ele dizia
que os países europeus não eram tão
igualitários?
Boudon - Sim. Ele sempre ficou impresionado com a idéia de que as
instituições norte-americanas eram
livres do peso do passado ligado à
aristocracia. Ele teve a impressão de
que os EUA tinham uma sociedade
muito mais aberta e menos estratificada que as européias. Para ele, por
razões históricas, a igualdade é mais
realizada nos EUA que na França.
Folha - Como podemos usar as
idéias de Tocqueville para analisar a
democracia nos EUA nos dias de hoje?
Boudon - Ele insistiu muito sobre a
importância de corpos intermediários, associações civis, a resolução de
problemas locais. A democracia, para ele é isso: a imprensa, a liberdade
de imprensa, a multiplicidade de orgãos de imprensa, a diversidade de
opinião e a enorme multiplicidade
de organizações civis.
Folha - Pode-se dizer que a Europa é
hoje tão democrática quanto os EUA?
Boudon - Não, acho que não. Fico
impressionado com a velocidade
com que passamos, nos EUA, de
uma situação de apartheid, especialmente nos Estados do sul, a uma realidade em que podemos ver que
existe uma importante classe média
negra no país. Para deixar bem claro,
uma das personagens mais importantes do governo norte-americano
na atualidade [secretária de Estado
Condoleezza Rice] é uma mulher e
negra. Não vemos muito isso nos
países Europeus.
Folha - O que o sr. pensa do governo
Bush em relação à democracia?
Boudon - Muitos norte-americanos, europeus e eu mesmo consideramos que, sob o efeito traumático
do 11 de Setembro, os EUA tomaram
um certo número de medidas de exceção, como as prisões em Guantánamo e o Patriot Act, que manifestam um claro recuo na tradição democrática do país. Podemos pensar
que tudo isso será provisório. De
forma geral, os EUA são, em muitos
pontos, muito mais democráticos
que os países da Europa (como podemos ver na integração das minorias), mas por outros nem tanto. Veja-se a pena de morte que ainda é
aplicada em alguns Estados.
A democracia se tornou quase
uma religião nos EUA. Uma religião,
acredito, partilhada por todos. Ela
toma formas mais militantes em alguns casos que em outros, mas ninguém questiona a democracia. Na
Europa existe toda uma literatura
pessimista, crítica da democracia,
pelo fato de a democracia ser supostamente um sistema de dominação
fechado. Nos EUA as bases do sistema são sólidas, não há pessimismo
nem esse tipo de atitude negativa.
Folha - Tocqueville é visto como um
pensador da direita. Qual era o posicionamento político dele?
Boudon - Ele foi um homem de esquerda. Foi parlamentar e sempre
tomou a postura política de esquerda, o que chamam de liberal na Inglaterra, um progressista.
Folha - Como a igualdade defendida
por Tocqueville se diferencia da igualdade econômica defendida por Marx?
Boudon - É muito diferente. Marx
se prendeu muito na economia, enquanto Tocqueville, jurista de formação, pensava a igualdade como
uma igualdade de todos perante a
lei, sua idéia mais básica era antropológica. Tocqueville pensa na
igualdade de uma forma muito mais
profunda e geral. É o desejo que cada
ser humano, independentemente de
seu trabalho, suas características,
suas aptidões, talento ou mérito, ser
considerado igual em dignidade a
todos os outros. É o desejo mais profundo do homem, o verdadeiro motor da história.
Folha - O que ele falava sobre a importância da igualdade econômica?
Boudon - Sua idéia era de bom-senso, de que antes de repartir era importante criar a riqueza. Ele discordava do pensamento socialista. Era
totalmente contrário ao tratamento
social da pobreza.
Folha - Por que o sr. acha que a
igualdade defendida por Tocqueville
era mais justa que de Marx?
Boudon - Porque ele é mais realista
antropologicamente. Marx insiste
muito no fato de que o homem tem
necessidade de bens materiais. Tocqueville explica que o homem não
tem necessidade apenas de bens econômicos, ele tem muito mais necessidade de consideração, com o que
eu concordo.
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