São Paulo, domingo, 31 de julho de 2005

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TERRA DA LIBERDADE

Autor de livro recém-lançado na França sobre a atualidade do pensamento de Tocqueville, o sociólogo Raymond Boudon diz que a democracia ainda é um sistema mais forte nos Estados Unidos que na Europa

DANIEL BUARQUE
DA REDAÇÃO

A democracia na América se tornou uma religião compartilhada por todos os cidadãos do país. Um dos principais defensores do pensamento de Tocqueville atualmente, o professor da Sorbonne Raymond Boudon (1934) diz que os EUA continuam sendo uma nação mais democrática que os países da Europa, atualmente -como na época da viagem do filósofo francês que completaria 200 anos anteontem-, por mais que tenha havido um aparente retrocesso depois do 11 de Setembro.
Ele diz que os EUA têm instituições civis mais desenvolvidas, uma maior igualdade de direitos, grande circulação de idéias e forte crença no funcionamento do sistema democrático, questionado na Europa.
Em entrevista à Folha, da Normandia, onde viveu Tocqueville, o autor do recém-lançado na França "Tocqueville Aujourd'hui" (Tocqueville Hoje, Odile Jacob, 300 págs., 23 - R$ 68) diz que o autor de "A Democracia na América" sempre foi subvalorizado na França, enquanto nos EUA sua obra central é considerada "o livro que compreende melhor os princípios que regem a vida política do país". Ele aponta a previsão de tendências atuais na obra de Tocqueville e defende que, em vez de ser um pensador da direita, sua obra é progressista e favorece uma igualdade antropológica -mais justa que a de Marx- entre as pessoas.
 

Folha - Qual é a atualidade do pensamento de Tocqueville?
Raymond Boudon -
Ele identificou, acredito, vários tipos de fortes tendências que continuam sendo observadas na sociedade contemporânea, como as conseqüências do desenvolvimento da demanda por igualdade. Constatamos em todas as sociedades ocidentais uma acelaração e um aumento da luta pelos direitos e a conquista de novos direitos pelos cidadãos.

Folha - Ele foi reconhecido por esse tipo de previsão?
Boudon -
Tocqueville foi reconhecido enquanto vivo, mas caiu no esquecimento, especialmente depois da Terceira República, nos anos 1870, e da Segunda Guerra Mundial. Ele teve muito menos influência que outros pensadores como Auguste Comte, Michelet, Proudhon, Fourier ou Saint-Simon.

Folha - Podemos dizer que ele foi redescoberto nos anos recentes?
Boudon -
Ele foi redescoberto pela primeira vez por Raymond Aron [sociólogo francês, 1905-1983]. Em "As Etapas do Pensamento Sociológico" (1967, Martins Fontes), ele dedica um capítulo à obra de Tocqueville, colocando-o pela primeira vez como parte da galeria dos mais importantes sociólogos. Mas, mesmo entre os estudiosos franceses, hoje, Tocqueville não tem espaço no ensino como mereceria e fica muito atrás de Max Weber e Durkheim, por exemplo.
Devemos lembrar, entretanto, que nos países anglo-saxões, especialmente nos EUA, Tocqueville sempre foi considerado um grande clássico, e a primeira parte de "A Democracia na América" é considerada pelos norte-americanos o livro que compreende melhor os princípios que regem a vida política do país.

Folha - Essa valorização de Tocqueville nos EUA tem alguma relação com sua democracia, enquanto ele dizia que os países europeus não eram tão igualitários?
Boudon -
Sim. Ele sempre ficou impresionado com a idéia de que as instituições norte-americanas eram livres do peso do passado ligado à aristocracia. Ele teve a impressão de que os EUA tinham uma sociedade muito mais aberta e menos estratificada que as européias. Para ele, por razões históricas, a igualdade é mais realizada nos EUA que na França.

Folha - Como podemos usar as idéias de Tocqueville para analisar a democracia nos EUA nos dias de hoje?
Boudon -
Ele insistiu muito sobre a importância de corpos intermediários, associações civis, a resolução de problemas locais. A democracia, para ele é isso: a imprensa, a liberdade de imprensa, a multiplicidade de orgãos de imprensa, a diversidade de opinião e a enorme multiplicidade de organizações civis.

Folha - Pode-se dizer que a Europa é hoje tão democrática quanto os EUA?
Boudon -
Não, acho que não. Fico impressionado com a velocidade com que passamos, nos EUA, de uma situação de apartheid, especialmente nos Estados do sul, a uma realidade em que podemos ver que existe uma importante classe média negra no país. Para deixar bem claro, uma das personagens mais importantes do governo norte-americano na atualidade [secretária de Estado Condoleezza Rice] é uma mulher e negra. Não vemos muito isso nos países Europeus.

Folha - O que o sr. pensa do governo Bush em relação à democracia?
Boudon -
Muitos norte-americanos, europeus e eu mesmo consideramos que, sob o efeito traumático do 11 de Setembro, os EUA tomaram um certo número de medidas de exceção, como as prisões em Guantánamo e o Patriot Act, que manifestam um claro recuo na tradição democrática do país. Podemos pensar que tudo isso será provisório. De forma geral, os EUA são, em muitos pontos, muito mais democráticos que os países da Europa (como podemos ver na integração das minorias), mas por outros nem tanto. Veja-se a pena de morte que ainda é aplicada em alguns Estados.
A democracia se tornou quase uma religião nos EUA. Uma religião, acredito, partilhada por todos. Ela toma formas mais militantes em alguns casos que em outros, mas ninguém questiona a democracia. Na Europa existe toda uma literatura pessimista, crítica da democracia, pelo fato de a democracia ser supostamente um sistema de dominação fechado. Nos EUA as bases do sistema são sólidas, não há pessimismo nem esse tipo de atitude negativa.

Folha - Tocqueville é visto como um pensador da direita. Qual era o posicionamento político dele?
Boudon -
Ele foi um homem de esquerda. Foi parlamentar e sempre tomou a postura política de esquerda, o que chamam de liberal na Inglaterra, um progressista.

Folha - Como a igualdade defendida por Tocqueville se diferencia da igualdade econômica defendida por Marx?
Boudon -
É muito diferente. Marx se prendeu muito na economia, enquanto Tocqueville, jurista de formação, pensava a igualdade como uma igualdade de todos perante a lei, sua idéia mais básica era antropológica. Tocqueville pensa na igualdade de uma forma muito mais profunda e geral. É o desejo que cada ser humano, independentemente de seu trabalho, suas características, suas aptidões, talento ou mérito, ser considerado igual em dignidade a todos os outros. É o desejo mais profundo do homem, o verdadeiro motor da história.

Folha - O que ele falava sobre a importância da igualdade econômica?
Boudon -
Sua idéia era de bom-senso, de que antes de repartir era importante criar a riqueza. Ele discordava do pensamento socialista. Era totalmente contrário ao tratamento social da pobreza.

Folha - Por que o sr. acha que a igualdade defendida por Tocqueville era mais justa que de Marx?
Boudon -
Porque ele é mais realista antropologicamente. Marx insiste muito no fato de que o homem tem necessidade de bens materiais. Tocqueville explica que o homem não tem necessidade apenas de bens econômicos, ele tem muito mais necessidade de consideração, com o que eu concordo.


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