São Paulo, domingo, 31 de agosto de 2008

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Ponto de fuga

Mestras e mestres


O Festival Richard Wagner de Bayreuth, desde que foi criado em 1876, está nas mãos da família Wagner -que, numerosa, sempre se entre-devorou

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

O Festival Richard Wagner de Bayreuth, desde que foi criado, em 1876, está nas mãos da família Wagner. Winifred, a nora do compositor, íntima de Hitler ao ponto de fornecer-lhe o papel de que ele precisava na prisão para escrever "Mein Kampf", e cuja filharada chamava esse bom Adolf de "tio Wolf" (lobo), foi sua diretora durante os anos do nazismo.
Safou-se bem das depurações no pós-guerra. Syberberg captou, em 1976, cinco horas de depoimentos impressionantes feitos por ela, que foram publicados em DVD (encontrado em www.syberberg.de, legendas em inglês). Winifred não renega nada. Declara que se sentiria feliz se Hitler entrasse de novo pela porta de sua casa.
Depois de seu julgamento, abdicou em favor dos dois filhos: Wieland, que foi o genial renovador das montagens wagnerianas, e Wolfgang, ótimo administrador e formidável diplomata, que tratou de ocultar o negro passado. Arte e política não se misturam, era seu lema.
Medíocre encenador, Wolfgang teve o mérito de abrir-se a concepções de vanguarda. Durante 57 anos, desde 1951, agarrou-se ao poder "como o gnomo Alberich ao seu ouro", escreveu o crítico do "New York Times", aludindo a um personagem de Wagner. Agora, chegando aos 89, depois da morte de sua segunda mulher, retira-se. O embate pela sucessão se inicia.

Liça
A família Wagner, numerosa, sempre se entredevorou. No conselho da fundação, em princípio soberano, Wolfgang apóia sua caçula, Katharina, de 30 anos, que toma poses de top model para as fotografias.
Wolfgang rompeu com o filho mais velho, Gottfried, que assumiu a consciência culpada do clã. Também afastou a descendência do irmão Wieland, mas sua sobrinha Nike resiste e candidatou-se. Katharina se aliou a sua meia-irmã, Eva, hoje com mais de 60 anos.
É plausível que seja essa a chapa vencedora em setembro, quando o certame se decidirá.

Musa
Katharina Wagner fez sua primeira montagem no palco augusto de Bayreuth com nova versão de "Os Mestres-Cantores de Nuremberg". Partiu de uma idéia sedutora que inverte o sentido da ópera.
"Os Mestres-Cantores", uma comédia sobre a criação artística, opõe a invenção solta da juventude às convenções que abafam a inspiração na maturidade. Nos dois extremos estão Walther, o jovem, e Beckmesser, o conservador. Guiado pelo sábio Hans Sachs, Walther disciplina suas energias sem perdê-las, enquanto Beckmesser, que rouba desastradamente algumas anotações do jovem, cria uma canção ridícula, vaiada num concurso final.
Katharina Wagner faz com que Walther, ao adaptar-se às normas, acomode-se, e seu sucesso signifique compromisso. Beckmesser, ao contrário, se metamorfoseia em criador revolucionário, cuja recusa pelo público é a garantia de sua originalidade.

Pena
Se a idéia é boa, o espetáculo é bem menos. Todos parecem meio perdidos no palco; as soluções são grotescas; as alusões, ou indecifráveis ou simplórias. O apogeu é uma sarabanda desmistificadora e feminista.
Grandes personagens da cultura alemã, como Wagner e Bach, são apresentados com máscaras enormes. Eles criam chifres, que se transformam depois em pênis. O maestro Sebastian Weigle rege com imprecisão indiferente. Os cantores foram escolhidos por Katharina Wagner antes por suas qualidades teatrais do que vocais, o que por vezes leva a música à beira do desastre. Katharina Wagner enfrentou as vaias do público com um sorriso imperturbável.


jorgecoli@uol.com.br


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