São Paulo, domingo, 31 de agosto de 2008

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A segunda pele

SVENDSEN VÊ A MODA COMO UM DOS FENÔMENOS MAIS INFLUENTES DO OCIDENTE, MAS ATACA A FALTA DE ORIGINALIDADE E DE CRÍTICOS INDEPENDENTES


A moda, se for vista como arte, é uma arte bastante insignificante; é, com freqüência, uma repetição de gestos vazios

Sergio Alberti - 23.jun.08/Folha Imagem
Platéia aplaude modelos da grife alemã Sisi Wasabi, em Berlim

ALCINO LEITE NETO
EDITOR DE MODA

Livros sobre a moda existem às pencas, mas há poucos que merecem um lugar na estante, como "Fashion - A Philosophy" (Moda - Uma Filosofia, Reaktion Books, 188 págs., 12,95, R$ 39), de Lars Svendsen. Há muito tempo a moda não é objeto de uma reflexão aprofundada, pertinente, atual e provocadora como a que é feita neste livro.
Professor na Universidade de Bergen (Noruega), Svendsen é um dos jovens pensadores europeus que merecem ser seguidos com atenção. Tem 37 anos e já publicou quase uma dezena de obras, cujos temas tratam da arte, da biologia, do mal e, agora, do trabalho -"Work", seu novo livro, será lançado na Europa e nos EUA em setembro.
No Brasil, seu único livro publicado é "Filosofia do Tédio" (Jorge Zahar Editor).
"Moda" foi lançado na Noruega em 2004. As traduções começaram a aparecer há pouco mais de um ano -em países europeus e nos EUA.
A abordagem de Svendsen é ambiciosa. Em oito capítulos, reflete sobre todos os lados do prisma da moda, tratando de suas relações com a linguagem, o corpo, a arte e o consumo. Arremata com uma reflexão sobre a "moda como ideal de vida", tal como o capitalismo avançado nos coloca.
Todos os principais filósofos e sociólogos que refletiram sobre moda passam pelo crivo e pelo debate de Svendsen -de Kant a Adorno, de Simmel a Benjamin, de Adam Smith a Gabriel Tarde, de Elias a Bourdieu. Por isso, o livro é também um precioso apanhado da (periférica) reflexão sobre moda na filosofia e na sociologia.
Svendsen possui ainda um impressionante conhecimento da história da moda e pesquisou bastante a produção do seu discurso contemporâneo. Isso lhe permite passar com desenvoltura a comentários sobre os estilistas Martin Margiela ou Rei Kawakubo (da grife Comme des Garçons).
Ele sabe o risco que corre ao escrever este livro, do ponto de vista intelectual. Sabe que fazer filosofia da moda é ser acusado de falta de substância ou seriedade. Mas, atento à atualidade, enfrenta o desafio, imbuído da certeza de que é preciso refletir sobre este que é "um dos fenômenos fundamentais do mundo contemporâneo". "A moda converteu-se em quase uma "segunda natureza" nossa", diz em entrevista à Folha.
Svendsen analisa sem piedade as pretensões artísticas da moda ("Se a moda devesse ser considerada arte, seria uma arte pouco significativa", aponta), a imprensa especializada e a criação atual dos estilistas. Também discute a incapacidade da moda em estabelecer um diálogo "com a evolução política da sociedade".
Mas seu livro não foi feito para demolir a moda e seus mitos, e sim para investigar por que o discurso sobre ela se tornou tão dominante e "totalitário", infiltrando-se na cultura em geral. Ele pretende sondar como a produção de identidade(s), hoje, está sujeita a esses paradigmas de consumo e transitoriedade que são próprios da moda.
"Não existe área alguma de nossa vida social, seja a arte, a política ou mesmo a filosofia, que não seja em grande medida regida pela lógica da moda", afirma Svendsen a seguir.

 

FOLHA - O sr. diz em seu livro que ser um "filósofo de moda" é correr o risco de ser acusado de falta de substância ou de seriedade. Por que decidiu se debruçar sobre esse assunto?
LARS SVENDSEN
- Eu havia escrito um pouco sobre moda em meu livro sobre o tédio, e ali observei que se fazia necessário um estudo filosófico mais cuidadoso da moda.
A razão pela qual a moda tem importância tão grande hoje é que ela afeta a atitude da maioria das pessoas em relação a elas próprias e aos outros. Como observo no livro, desde a Renascença ela tem sido um dos fenômenos mais influentes na civilização ocidental.
Vem conquistando cada vez mais áreas do homem moderno e se converteu quase em uma "segunda natureza" nossa.
Assim, a compreensão da moda deve contribuir para a compreensão de nós mesmos e de como pensamos e agimos.

FOLHA - O sr. diz também que nosso pensamento continua marcadamente platônico. Refletir sobre a moda é estar movido essencialmente por um antiplatonismo?
SVENDSEN
- Eu mesmo sempre desconfiei das metáforas filosóficas tradicionais de "profundidade" e "superfície", em que profundidade equivale a "verdade" e superfície é, de alguma maneira, enganoso ou falso.
Não importa qual seja o tópico filosófico que nos propomos a investigar, acho que sempre devemos tentar fazer justiça aos fenômenos em si, da maneira como se manifestam. Isso significa que também devemos levar a "superfície" a sério.
Em relação a isso, concordo com Oscar Wilde: "São apenas as pessoas superficiais que não julgam pelas aparências. O verdadeiro mistério do mundo é o visível, não o invisível".

FOLHA - Poderíamos dizer que o mercado da moda, com a sua rapidez de produção e de consumo, com a sua busca irrefreável de originalidade e substituição, tornou-se uma espécie de paradigma de marketing e negócios para o capitalismo atual?
SVENDSEN
- Moda e capitalismo são perfeitamente adequados um ao outro. O capitalismo só pode funcionar enquanto o consumidor continuar a comprar produtos novos, e o consumidor que está na moda depende de um fluxo constante de produtos novos.
O princípio da moda é criar uma velocidade constantemente crescente, para fazer um objeto tornar-se supérfluo o mais rapidamente possível, para então passar para outro.
A consciência do poder da moda é a consciência de que os produtos não vão durar; e, se vamos escolher um produto que inevitavelmente ficará ultrapassado, vamos tender a escolher a última moda, e não uma moda anterior. Os produtos não duram, nem se pretende que o façam.
Essa é uma parte importante da atração exercida pelo produto pós-moderno: daqui a pouco poderá ser substituído!

FOLHA - Para o sr., a criação em moda responde sobretudo a solicitações internas, sendo a própria moda incapaz de um diálogo com "a evolução política da sociedade". Por que a moda é tão impenetrável aos acontecimentos sociopolíticos?
SVENDSEN
- Há várias razões para que isso aconteça. Uma questão evidente na moda, e em muitas outras disciplinas estéticas, é que a maior parte da moda é baseada em modas anteriores, assim como a maior parte da arte é feita a partir de artes anteriores.
Se você quiser explicar uma determinada moda, é mais provável que encontre uma resposta plausível analisando modas passadas, em vez de tentar enxergar a moda como reflexo da realidade política ou social.
Além disso, a moda possui uma capacidade incrível de apagar o significado simbólico de tudo o que incorpora.
Foi por isso que Che Guevara pôde tornar-se um item altamente vendável em um sistema de moda capitalista. Nas camisetas com sua imagem, não resta praticamente nada da política revolucionária de Che (nem de suas mãos ensangüentadas, já que ele torturou e executou prisioneiros políticos).
Quando se vende moda, vende-se um valor simbólico; ao mesmo tempo, a moda tende a apagar esse valor simbólico muito rapidamente, de maneira que precisa constantemente buscar novos valores simbólicos que possa "canibalizar".
E o underground é um dos maiores fornecedores de tais valores simbólicos.

FOLHA - O sr. também diz que a moda é "praticamente incapaz de comunicar qualquer coisa de significativo". Comparando-a com a arte, afirma que a moda "parece encastelada num círculo onde, na prática, não faz mais que se repetir e perder pouco a pouco o significado". Isso quer dizer que ela ocupa um lugar inferior na esfera da cultura?
SVENDSEN
- Desde a separação entre a arte e o trabalho artesanal, no século 18, os alfaiates ficaram do lado do artesanato. As roupas foram colocadas na esfera extra-artística e ali permaneceram até hoje.
Desde que a alta costura foi introduzida, por volta de 1860, a moda aspira a ser reconhecida como arte plena. Essa tendência vem se fortalecendo nos últimos 30 anos.
Embora a arte às vezes encontre inspiração na moda, é mais comum que a moda tente tornar-se arte. O problema é que, embora haja instâncias de moda que estão inteiramente no nível da arte, a maior parte do que se passa na moda é artisticamente desinteressante.
De modo geral, a moda, se for vista como arte, é uma arte bastante insignificante. Com freqüência, não passa muito de uma repetição de gestos vazios que já foram consumidos no campo da arte.

FOLHA - O que o sr. quer dizer quando afirma que "hoje a moda se encontra no ponto mais baixo de sua curva criativa"?
SVENDSEN
- Que muito pouca coisa da moda criada hoje possui interesse estético. Quando vemos uma coleção nova de um estilista, a reação típica é dizer que ela é "bacana", mas que já a vimos só Deus sabe quantas vezes antes.
Anteriormente, a moda seguia uma norma modernista, segundo a qual uma moda nova deveria tomar o lugar de todas as anteriores e torná-las supérfluas. A lógica tradicional da moda é a lógica da substituição.
Nos últimos dez a 15 anos, porém, ela vem sendo definida por uma lógica da suplementação, em que todas as tendências são recicláveis e em que uma nova moda não tem por meta tomar o lugar de todas as que a antecederam, mas se contenta em suplementá-las.
A própria qualidade de ser "novo", que era essencial à moda no passado, deu lugar a uma eterna recorrência do mesmo.

FOLHA - Em contraposição a Boris Groys, que descreve a moda como antiutópica e antitotalitária, o sr. afirma que "a moda é o fenômeno mais totalitário do mundo, porque assujeitou praticamente todos os campos à sua lógica e assim se tornou onipresente". Que tipo de totalitarismo é esse?
SVENDSEN
- Ela é totalitária na medida em que praticamente não existe área nenhuma de nossa vida social, seja a arte, a política ou mesmo a filosofia, que não esteja em grande parte regida pela lógica da moda.
É um mecanismo social que tem uma capacidade espantosa de transformar todo fenômeno social com que tem contato.

FOLHA - Por que as modelos se transformaram em grandes estrelas midiáticas de nossa época? Que função elas exercem na "ideologia da realização estética" do sujeito, como o sr. escreve?
SVENDSEN
- As modelos são a mais alta encarnação de uma cultura em que nossas identidades essenciais devem estar situadas em nossos corpos, não em nossas almas. A formação da auto-identidade na era pós-moderna é, num sentido crucial, um projeto do corpo.
O corpo tornou-se um objeto de moda especialmente privilegiado. Aparece como algo plástico, que se modifica constantemente para adequar-se às novas normas que surgem. E as modelos são as representantes maiores dessas normas.
Mas mesmo elas não chegam a adequar-se às normas. Já na década de 1950 não era incomum que modelos se submetessem a cirurgias plásticas para se aproximarem das normas, por exemplo removendo seus molares posteriores para conseguir ter faces cavadas ou tendo costelas removidas para alcançar o formato de corpo desejado.
A distância entre os corpos das modelos e os corpos "normais" continua a aumentar. Assim, a norma se torna pura ficção, mas nem por isso perde sua função normativa.

FOLHA - O sr. escreve que uma razão importante pela qual a moda não obteve um reconhecimento parecido àquele atribuído às outras artes é que ela não tem uma tradição de crítica séria. Por que a moda nunca desenvolveu uma crítica séria, na sua opinião? Como o sr. imagina que deva ser essa crítica?
SVENDSEN
- Acho que ela deveria ser bastante semelhante à crítica de arte, com críticos independentes que são livres para dizer o que realmente pensam da qualidade dos objetos que submetem a seu escrutínio. Esses críticos devem, de preferência, ter uma formação em história da moda.
A maior parte do que se escreve sobre moda em revistas hoje em dia é simplesmente uma extensão da publicidade. Os redatores de moda têm medo de criticar os estilistas, já que isso poderia resultar em menos anúncios em suas revistas. Uma tradição de crítica séria de moda não poderá ser criada de um dia para outro -levará tempo.
Mas isso será necessário para que algum dia a moda possa ser realmente levada a sério como disciplina estética.

FOLHA - O sr. critica a idéia do sociólogo francês Gilles Lipovetsky -de que a moda torna o mundo mais democrático, pois substitui as disputas de fundo por um gosto da superfície- e afirma que a democracia tem necessidade dos atritos sociais e do dissenso. A moda, com seu gosto pela elitização, não é essencialmente antidemocrática? Redes como a Zara efetivamente democratizam o design de moda?
SVENDSEN
- Essas redes de fato democratizam a moda, pois a tornaram acessível a uma parte maior da população. Mas não vejo isso necessariamente como grande vitória democrática.
O número de peças de roupa que podemos encontrar no guarda-roupa do cidadão mediano não chega a ser um bom indicativo do funcionamento adequado, ou não, das instituições democráticas de seu país.

FOLHA - Em um comentário duro, o sr. diz que, se a lógica da moda se torna norma na construção da identidade, ela pode se tornar um fator desagregador. E conclui que caminhamos para a completa "dissolução da identidade". Como a moda participa disso?
SVENDSEN
- Todos nós, de alguma maneira, expressamos quem somos por meio de nossa aparência visual, e essa expressão vai necessariamente dialogar com a moda. E os ciclos de moda cada vez mais acelerados indicam um conceito mais complexo do eu, porque o eu se torna mais transitório.
O consumidor pós-moderno não consegue firmar uma identidade pessoal viável por meio de seu consumo porque o fato de esse consumo focalizar o transitório enfraquece a formação da identidade. Se nossa identidade é diretamente vinculada às coisas que nos cercam -ou seja, ao valor simbólico das coisas-, essa identidade será tão transitória quanto são aqueles valores simbólicos.

FOLHA - O sr. vê alguma relação entre moda e tédio?
SVENDSEN
- Essa relação existe. A moda cria uma mentalidade inquieta e agitada, na qual nos entediamos muito facilmente e constantemente ansiamos por algo novo e "interessante".
Como observei em meu livro sobre o tédio, o olhar estético precisa ser estimulado por uma intensidade aumentada ou, de preferência, por algo novo.
Vale observar, entretanto, que o olhar estético tem a tendência a recair no tédio -um tédio que define todo o conteúdo da vida de maneira negativa, porque é aquilo que precisa ser evitado a qualquer preço. O consumo de moda funciona como uma espécie de entretenimento, e é uma maneira cada vez mais comum de combater o tédio. Passamos a ser cronicamente estimulados por um fluxo constante de fenômenos e produtos "novos", mas também nos entediamos mais rapidamente, em igual medida.


Tradução de Clara Allain .

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