São Paulo, domingo, 31 de agosto de 2008

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O chique das coisas banais

PARA O FRANCÊS DANIEL ROCHE, INDÚSTRIA DA APARÊNCIA ENTRA EM CHOQUE COM DIVERSIDADE SOCIOCULTURAL


No século 17, seguiam-se sobretudo as referências da moda espanhola, e não as da francesa

DENISE BERNUZZI DE SANT'ANNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Professor do Collège de France e autor de livros fundamentais sobre moda e indumentária, Daniel Roche não se limita ao estudo das roupas e de seu crescente comércio na época moderna.
Suas publicações tratam de temas que vão da cultura eqüestre na Europa ao cotidiano popular do século 18, passando pela história da higiene e da intimidade burguesa.
Mesmo em seu vasto trabalho "A Cultura das Aparências -Uma História da Indumentária, Séculos 17-18 (ed. Senac)", há uma história cultural e social da França cujo alcance ultrapassa a suposta superficialidade expressa pela insistente flutuação das modas.
Para Roche, a história das coisas banais está relacionada à economia e à política das nações. A produção e o consumo das roupas expressam não apenas os sonhos de uma época mas, sobretudo, seus limites e impasses.

 

FOLHA - Quais os principais desafios encontrados em sua pesquisa sobre a história da indumentária?

DANIEL ROCHE
- Uma primeira constatação se impõe para quem estuda a indumentária entre os séculos 16 e 18: os gastos dos franceses com roupas foram os que mais se destacaram no orçamento geral das famílias! Poucos estudos haviam questionado essa situação, cujas causas são múltiplas. Há trabalhos sobre indústria têxtil, sobre economia do consumo, há ainda o estudo que aprecio bastante, do pesquisador suíço Philippe Perrot, sobre a cultura vestimentar e suas relações com o corpo feminino. Mas o principal desafio foi a organização da pesquisa. Trabalhei o tema em seminários, recebi contribuições de estudantes, o que supôs um diálogo contínuo com os documentos.

FOLHA - A cultura material é um campo de investigação que tem relevância em suas pesquisas. Mas em "A Cultura das Aparências" o sr. se volta mais para as representações dessa cultura do que propriamente para o estudo dos objetos. A moda não seria um dos terrenos privilegiados para refletir sobre a constituição da cultura material?
ROCHE
- Sim, a presença da cultura material é inegável. Aliás desde a década de 1960 há estudos sobre a importância desse domínio na antropologia e na arqueologia. De fato, não utilizei os objetos -roupas, calçados- como figuras centrais de análise, pois me concentrei em suas representações. Mas investigar a cultura material é uma maneira, por exemplo, de perceber como é possível um vestido do século 17 não ser a mesma coisa que um vestido do século 20, apesar de ambas as peças se chamarem "vestido".
Assim, pode-se, a partir da cultura material, encontrar problemas importantes com os quais a antropologia e a etnologia vêm há muito trabalhando.

FOLHA - Isso talvez se deva ao fato de que o sistema de moda varia historicamente.
ROCHE
- Claro, e a partir daí é possível vislumbrar dois pólos de tensão: primeiro, o pólo da necessidade. Trata-se de culturas e sociedades sobre as quais há um grande peso das coisas imediatas, uma coação constante para usar e reutilizar o que já é conhecido.
Por exemplo, o consumo de roupas no século 16 é ditado por diversas necessidades, entre as quais a de se proteger de inúmeros ataques. Aqui não se trata de uma economia baseada no "parecer".
Assim, o segundo pólo se situa à margem daquela economia das necessidades fundamentais: há mudanças significativas nas maneiras de vestir que escapam da noção de consumo durável ou útil. De qualquer modo, a cultura das aparências é urbana, ela ocorre num meio em que as coisas circulam cada vez mais, são produzidas e consumidas de modo veloz.

FOLHA - Mas há também o consumo das elites.
ROCHE
- Pois bem, o segundo pólo é justamente o do consumo aristocrático, imposto à elite desde os séculos 14 e 15. Nele encontra-se o papel da corte, as leis suntuárias, as normas e códigos vestimentares. Aqui se destaca o consumo de quem cobiça a distinção social.
Percebe-se então o valor social e político das roupas. Nesse caso, a cultura das aparências designa quem tem poder. Mas há nesse universo um paradoxo interessante: conforme lembrou [o filósofo Blaise] Pascal, as pessoas são aquilo que aparentam ser e, no entanto, "a roupa não faz o monge". É sempre possível esconder alguns traços da personalidade ou modificá-los por meio da vestimenta.

FOLHA - Do século 16 ao 18, tende a crescer a liberdade nos atos de vestir e escolher as roupas. Mas essa liberdade não viria acompanhada de uma exigência maior em relação aos cuidados com o corpo?
ROCHE
- Sim, pois as roupas no século 17 ainda eram muito pouco adaptadas à flexibilidade corporal, cujo valor será realçado mais tarde. Há também referências exteriores à França: por exemplo, na corte, e mesmo nas repúblicas comerciais, seguiam-se sobretudo as referências da moda espanhola, e não as da moda francesa.
E, quando a moda francesa começou a se tornar a referência principal, ela deu lugar à importância do mundo privado e à valorização da intimidade. Por conseqüência, os tecidos leves, a renovação das roupas a cada estação do ano e os usos mais complexos de cada peça vestimentar ganharam um lugar de destaque.
Mas é preciso lembrar que a maioria das pessoas não podia aderir a esse universo. E é importante estudar essa maioria porque era ela, e não a elite, que fornecia conteúdo ao perfil econômico de uma sociedade, mesmo quando se sabe o quanto a moda de elite circulava e servia como referência.
Assim, não era apenas -ou em primeiro lugar- na capital francesa que as coisas ocorriam. Em Londres, existiam várias referências à importância do privado, assim como na cidade de Avignon, por exemplo. Rousseau chegou a dizer que, em sua época, tornava-se impossível diferenciar uma duquesa de uma empregada pela aparência. Mas evidentemente as formas de diferenciação não permaneceram as mesmas, e outros códigos ou indícios permitiram realizar tal distinção.
Ao mesmo tempo, é no meio urbano que se percebe a emergência da valorização de um corpo individual e de roupas que possuem mais relação com a conquista de si mesmo.

FOLHA - Essa conquista de si mesmo não dependeria da produção de uma esfera privada, concentrada em certa densidade da cultura das aparências que é característica da vida metropolitana?
ROCHE
- De fato, a cidade é um laboratório de produção e consumo de roupas. Ela é o lugar por excelência da mobilidade e das trocas, e é nela que emerge a conquista da intimidade.
Mas é preciso tomar cuidado com possíveis exageros, pois um terço da população francesa vivia num "quarto-e-sala". Muitos franceses não dispunham de espaço suficiente, não podiam portanto desenvolver o gosto pela intimidade e a valorização do mundo privado. E também existiam diferentes influências. Por exemplo, o século 18 foi influenciado pelo sensualismo.
David Hume escreveu sobre o luxo, um valor integrado na formação da individualidade.

FOLHA - Hoje a moda é bastante evidente na mídia e na economia mundial. O sr. acredita que, justamente por isso, a idéia de abarcá-la poderia parecer ociosa e absurda?
ROCHE
- Em nossos dias é preciso acreditar que estamos na moda! Com o cinema, a imprensa e, sobretudo, com a televisão, desde meados do século 20 ocorre algo interessante: há uma globalização das modas e condutas, mas elas são ao mesmo tempo inimitáveis e extraordinárias.
Os homens da sociedade islâmica, por exemplo, consomem a moda parisiense, mas o uso das roupas femininas que eles compram para as suas mulheres é reservado a determinados espaços. Há uma relação importante entre moda e espaço.

FOLHA - A moda seria uma formidável indústria de sensibilidades?
ROCHE
- Sim, de sentimentos e atitudes.
Além disso, se até meados do século passado Paris ocupava o centro das atenções em matéria de moda, hoje há também centros como Milão, Nova York e, sobretudo, pontos de criação de moda bem mais rápidos do que esses grandes pólos e que se situam entre eles.
São pontos invisíveis no grande sistema global das modas, mas fundamentais para as economias locais e, sobretudo, para a fabricação de maneiras de sentir e de ver o mundo.

FOLHA - Daí o entrelaçamento entre a moda e a produção de dois movimentos concomitantes: singularização e inclusão.
ROCHE
- Sim, especialmente quando se pensa nos pontos de circulação que podem trabalhar no meio da imensa separação entre ricos e pobres existente hoje em dia. O jeans, por exemplo, vindo de um meio popular, se impôs por toda parte; mas é justamente quando isso ocorre que passam a existir jeans e jeans! Isso porque as formas de distinção e de inclusão social não param de ser reinventadas, nunca deixam de se deslocar no tempo e no espaço.


DENISE BERNUZZI DE SANT'ANNA é professora livre-docente da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e do mestrado em moda, arte e cultura do Senac.


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