São Paulo, Domingo, 31 de Outubro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LITERATURA

A erótica modernista



O poeta Guillaume Apollinaire, redescobridor de Sade, fez da perversão um projeto da vanguarda


ELIANE ROBERT MORAES
especial para a Folha

Na manhã de 21 de agosto de 1911, os jornais franceses surpreenderam o país com uma manchete de forte impacto: "A Gioconda desapareceu do Louvre". A notícia de que uma obra de arte do porte da "Mona Lisa" havia sido roubada tornou-se a ordem do dia na França e rapidamente repercutiu no exterior, gerando toda sorte de reações. Empenhada em solucionar o caso, a polícia local iniciou as investigações, partindo da hipótese de que o roubo estava associado ao desaparecimento recente de três estatuetas do Louvre. No dia 7 de setembro, um inspetor e um agente à paisana dirigiram-se a um pequeno apartamento da rua Gros, em Paris, com o objetivo de prender um suspeito. Seu nome: Guillaume Apollinaire.
Na verdade, seu nome de registro era mesmo Wilhelm Apollinaris Albertus de Kostrowitzky. Nascido a 26 de agosto de 1880, em Roma, ele era filho ilegítimo de uma polonesa, a quem os padrões da época atribuíam reputação duvidosa, e de um italiano de origem desconhecida. Apesar da vida instável, desde cedo o jovem destacou-se nos estudos, com particular interesse pelas artes e pela literatura. No início do século 20, depois de ter vivido em várias cidades européias, fixara residência em Paris, passando a frequentar os meios artísticos e a colaborar em diversas publicações jornalísticas e literárias. Na ocasião de sua captura, o suspeito pelo roubo da "Mona Lisa" já era reconhecido como um dos poetas mais importantes da vanguarda parisiense.
Guillaume Apollinaire -nome que adotaria a partir dos 17 anos- era considerado o porta-voz de uma geração de rebeldes. Amigo de Jarry, Picasso e Braque, foi um dos notáveis inspiradores do "esprit nouveau" que abalou a cultura cosmopolita da França na virada do século: sua obra literária e crítica anunciava os princípios de uma nova estética, que tinha como fundamento a ruptura com os modelos do passado. Não deixa de ser significativo que a culpa pelo desaparecimento da "Gioconda" -obra emblemática da tradição humanista européia- tenha sido imputada justamente a um artista tão identificado com a aventura modernista.
Depois de uma semana na prisão, o poeta foi libertado, dadas as evidências de que o suspeito era na verdade um antigo secretário seu, o belga Géry Pieret, que se confessou autor do roubo das estatuetas do Louvre. Mesmo assim, Apollinaire foi atacado pela intelectualidade bem-pensante da época, que se aproveitou da ocasião para denunciar os atos de "barbarismo" dos "métèques" -"malditos estrangeiros"-contra a cultura nacional. Aos olhos dos defensores das tradições clássicas, como Anatole France e Maurice Barrès, as provas de sua inocência no caso da Gioconda não o tornavam menos culpado: pelo contrário, os árbitros do bom-gosto francês o acusavam de atentar contra os valores da "civilização", estendendo tal recriminação a outros estrangeiros radicados em Paris, tais como Picasso, Stravinski e Gertrude Stein.
O momento era particularmente delicado. O embate entre os intelectuais conservadores e a vanguarda parisiense do pré-guerra revelava apenas uma face da profunda crise de valores que abalava quase toda a Europa, com radical impacto não só no plano da estética, mas também sobre a política e a moral. Não importa de que lado estivessem, os homens da época testemunhavam uma complexa transformação da mentalidade européia, marcada por um sentimento de instabilidade. As leis gerais, que diziam respeito à totalidade da vida, já não faziam mais sentido, e as tentativas de recompor as relações com vistas a uma nova ordem pareciam inúteis diante da dispersão que o mundo moderno apresentava.
Os artistas da vanguarda, contudo, cultivavam um certo otimismo diante da crise: orientados por uma simbólica da destruição, depositavam grandes esperanças na energia vital da violência, o que geraria inclusive um forte entusiasmo em relação à guerra. A exemplo de Apollinaire -o "poeta-artilheiro" que exaltava o "caos bélico"-, diversos autores da época passaram a se considerar "soldados da vanguarda", armados para aniquilar o "museu morto da civilização". Com esses ideais em mente, eles elevavam a destruição a "ato de criação": dela resultaria a experiência ousada da consciência e das formas de expressão que anunciavam o novo, utopia maior do modernismo.

Um cosmopolita
Apollinaire era um alvo perfeito para os conservadores: sua poesia dispensava a pontuação e a tipografia regular, além de se voltar com frequência para uma temática cosmopolita, atenta às experiências sensíveis que resultavam das novidades técnicas como o avião, o telefone, o rádio e a fotografia. Ainda que o viés experimentalista de sua obra não excluísse certas heranças do passado, ao lançar mão de elementos da tradição medieval ou mesmo de temas da cultura clássica, ele os agregava a uma mitologia pessoal comprometida com a sensibilidade moderna.
Descobrir o presente significava saudar os ritmos frenéticos da paisagem urbana, na qual tudo parecia passageiro, em estado de completa suspensão. "Um lenço que cai" -diria Apollinaire em 1917, ao publicar o manifesto "L'Esprit Nouveau"- "pode significar uma alavanca com a qual o poeta erguerá todo o universo...". Assim, os fatos mais corriqueiros da vida cotidiana passavam a ser também os mais reveladores: para que a arte se tornasse cúmplice de seu tempo, como propunha o programa, a matéria sensível deveria ser buscada no detalhe e sobretudo no momentâneo. O manifesto sintetizava os princípios de um grupo que respondia à trama instável do caos moderno por meio de formas fraturadas, estruturas parodísticas, justaposições inesperadas e registros de fluxos de consciência, definindo a ironia particular que caracterizou a arte do período.
Dez anos antes de publicar o manifesto, o autor dos "Calligrammes" já havia se declarado um defensor radical das novas formas de expressão artística. Quando, em 1907, Picasso lhe apresentou "Les Demoiselles d'Avignon", ele não escondeu seu entusiasmo: a perspectiva múltipla da tela desafiava as leis de composição do passado, subvertendo o sistema vigente de percepção da arte. Aos olhos do poeta -cujo poema "Zone" é considerado um equivalente verbal do quadro- o pintor espanhol inaugurava um inusitado campo de possibilidades para a exploração das formas, até então confinadas nos limites das descrições realistas e das representações figurativas.
"Les Demoiselles" anunciava, como então observou Apollinaire, um verdadeiro "crepúsculo da realidade". Não causa surpresa que seu aparecimento tenha suscitado os protestos da mesma intelectualidade conservadora que atacou o poeta em 1911: o quadro traduzia os anseios de uma geração de artistas que buscava expandir os limites da criação para além da mera representação, numa tentativa febril de ultrapassar as fronteiras do realismo. Obra emblemática do modernismo, a tela de Picasso era um atentado aos valores de uma tradição que encontrava sua expressão mais elevada nos traços da "Mona Lisa".
A subversão de Apollinaire não se resumia, contudo, à sua adesão irrestrita aos princípios estéticos da vanguarda. Havia ainda uma particularidade sua que escandalizava os adeptos do bom gosto: ele cultivava um fascínio especial por um tipo de literatura que os defensores da tradição francesa tentavam, a todo custo, apagar da memória nacional. Era o romance libertino.
Não é de estranhar, portanto, que tenha sido ele o responsável pela introdução dos "livros malditos" de Sade no cenário literário francês do início do século. Proibido e relegado ao ostracismo durante todo o século 19, o marquês era um escritor praticamente desconhecido quando Apollinaire se dispôs a publicar uma antologia de seus textos em 1909. Como apresentação à edição, ele escreveu um longo ensaio biográfico, no qual definia Sade como "o espírito mais livre que já existiu no mundo". Com essas palavras, o poeta dava um passo decisivo para que o autor de "Justine" viesse a ser venerado pela geração que se reuniria em torno do surrealismo e faria do "divino marquês" uma de suas referências mais importantes.
A antologia de Sade foi o primeiro volume da coleção "Les Maîtres de l'Amour", que, dirigida por Apollinaire, se dedicava à publicação de clássicos do erotismo literário como Aretino ou Baffo. Era como um erudito, mas sempre em busca do novo, que o poeta vasculhava os porões da Biblioteca Nacional à procura dos livros proibidos, num empreendimento notável que se prolongou até sua morte em 1918. Atraído pela liberdade de expressão dos autores do passado reputados como obscenos, ele incorporou em sua obra diversos traços de uma literatura que, expulsa dos cânones, lhe revelava o avesso da tradição.

Orgia e assassinato
Ao escrever "As 11 Mil Varas", Apollinaire lançou mão de vários elementos dessa outra tradição literária que a moralidade do século 19 preferiu encerrar nos porões da memória coletiva. Se certas passagens da novela nos fazem lembrar a libertinagem cruel dos personagens de Sade -como a terrível orgia num vagão de trem que termina em duplo assassinato-, outras evocam a lubricidade debochada de Aretino, a exemplo da cena bizarra em que um sacerdote ordenha uma rechonchuda ama-de-leite para satisfazer os excessos de seu lascivo paladar. O resultado dessa combinação é o humor negro, quase macabro, que desafia o leitor a distinguir o riso do pânico, tal como acontece no notável episódio da angelical enfermeira da Cruz Vermelha, "cuja inocência sofria de intermitências assassinas", que se deleita ao manipular os corpos dilacerados de combatentes de guerra.
Assim, se o humor é um componente fundamental do livro -a começar pelo título que joga com a proximidade entre as palavras "verges" (varas) e "vierges" (virgens), numa alusão às 11 mil virgens que acompanharam o martírio de santa Úrsula -sua contrapartida é a perversidade. Fundada sobre uma sucessão vertiginosa de cenas violentamente eróticas, a novela mobiliza os múltiplos "topoi" do sadismo literário, como a necrofilia, a escatologia, a bestialidade, a pedofilia, o sacrilégio, o incesto e as mais variadas formas do assassinato.
O repertório de fantasias sado-masoquistas de "As 11 Mil Varas" torna-se ainda mais intenso porque a narrativa se desenvolve quase toda numa atmosfera de guerra, na qual a crueldade sexual se confunde com as atrocidades dos campos de batalha, em cenas que alternam uma infinidade de corpos extasiados, convulsivos, mutilados, despedaçados ou mesmo em estado de decomposição. O resultado dessa confluência absoluta entre o desejo e a violência é um imaginário marcado pela desfiguração dos corpos.
Ora, para uma vanguarda comprometida com a destruição das formas, essas alterações da anatomia humana também denunciavam -a exemplo do que ocorria com "Les Demoiselles d'Avignon"- a ilusão antropomórfica das imagens realistas. Assim, além de resgatar elementos da literatura licenciosa do passado, o imaginário sexual de "As 11 Mil Varas" reiterava a simbólica de destruição que orientava os procedimentos estéticos dos modernistas. Tal foi, no campo da erótica, a novidade inaugurada por Apollinaire: ao colocar em cena corpos desfigurados pelo prazer ou pela dor, ele não só reafirmava o projeto vanguardista de decomposição das formas, como criava os parâmetros de um novo erotismo literário que, nas décadas seguintes, seriam retomados por diversos escritores franceses como Robert Desnos e Georges Bataille.
Lançado em 1907 -assim como a outra obra pornográfica do autor, "Les Exploits d'un Jeune Don Juan"-, o livro foi publicado anonimamente. Na verdade, ele só veio a ganhar uma edição oficial com o nome do escritor em 1970, quando seus herdeiros admitiram publicamente a autoria; apesar disso, as duas novelas foram excluídas das obras completas do autor durante décadas, numa decisão só revogada nos últimos anos, quando passaram a constar da renomada Bibliothèque de la Pléiade.
Se a obra erótica de Apollinaire, assim como a de Sade ou a de Aretino, figura hoje entre os chamados clássicos, isso talvez se deva menos à ação neutralizadora do tempo do que ao próprio empenho do poeta no sentido de ampliar o repertório da literatura. Melhor dizendo: embora o autor tenha sido um dos principais artífices de uma vanguarda que se definia pela ruptura com o passado, o alvo privilegiado de sua rebeldia não era um passado genérico, mas sim a autoridade de uma crítica que legitimava ou excluía tais ou quais formas de seu cânon todo-poderoso, limitando a liberdade de expressão artística.
Passado quase um século, a "Mona Lisa" convive tranquilamente com as "Demoiselles d'Avignon" nas paredes dos museus, e a obra bem-comportada de Anatole France repousa nas mesmas prateleiras que os livros obscenos do autor de "As 11 Mil Varas". Incorporada à tradição, a aventura modernista foi irremediavelmente pacificada e, com isso, seu poder de subversão talvez tenha se perdido para sempre. Mesmo assim, no silêncio da leitura, a voz poética de Apollinaire continua nos convidando a interrogar os pontos mais obscuros da paisagem contemporânea, para arriscar um encontro com a surpresa: "Perder, mas perder realmente para deixar lugar ao achado".
00
00


Eliane Robert Moraes é professora de estética e literatura na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e autora, entre outros, de "Sade - A Felicidade Libertina" (Imago).

Nota:
O texto acima é o prefácio do livro "As 11 Mil Varas", de Guillaume Apollinaire, que está sendo lançado neste mês pela Editora Ágalma. O livro faz parte da coleção "Os Libertinos", dirigida por Eliane Robert Moraes.


Texto Anterior: Cultura: Cafuné e gineceu lésbico
Próximo Texto: Livros: A vida em cacos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.