São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

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O DEUS DAS PEQUENAS COISAS

ASPIRAÇÃO SECULAR E LEGÍTIMA DA SOCIEDADE NORTE-AMERICANA EM MELHORAR AS CONDIÇÕES DE VIDA DAS GERAÇÕES FUTURAS SE DEGRADOU EM CONSUMISMO EXCESSIVO E NO FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO

por Russell Banks

Como cidadão dos Estados Unidos, um bom número de coisas me choca ultimamente -como consternadoras, lamentáveis e assustadoras. A mais assustadora é a maneira como a parte de delírio evoluiu neste país no último quarto de século: de marginal ela se tornou central. Hoje uma visão delirante domina quase todas as nossas percepções da realidade social, sobretudo em política e em economia. Paralelamente, e talvez em conseqüência direta disso, o sonho americano -sonho secular perfeitamente honroso, mesmo que às vezes fosse pouco realista, de um progresso econômico constante graças ao qual cada geração se beneficiaria dos sacrifícios da anterior e se apoiaria em suas realizações financeiras e educativas para alcançar uma meritocracia menos imperfeita-, esse bom e velho sonho, portanto, viu-se deslocado e substituído pelo pesadelo de uma incitação ao consumo excessivo, tão desmesurado quanto cego e descontrolado. Trata-se de um pesadelo ao mesmo tempo assassino e suicida. Assassino em relação àqueles que desejariam nos despertar e suicida para os que mergulharam no sonho. Tornamo-nos uma nação de sonhadores homicidas. A visão de mundo secular e temporal que era a nossa deu lugar a uma visão religiosa atemporal. Como isso aconteceu? O risco de que a religião dominasse a consciência nacional sempre existiu, mas era mais ou menos mantido em xeque pela confiança igualmente poderosa que depositávamos na razão e por nossa teimosia em separar a igreja do Estado. Ora, durante as últimas duas décadas a balança pendeu claramente para o lado religioso, e o muro constitucional que separava as duas visões desmoronou. Nosso ministro da Justiça, John Ashcroft, principal personagem jurídico do país, foi capaz de dizer: "Dentre as nações, a dos Estados Unidos é a única que compreendeu que a fonte de seu caráter particular não é de ordem cívica e temporal, mas de ordem divina e eterna. E, como reconhecemos que nossa fonte é eterna, os Estados Unidos se tornaram uma nação à parte. Nosso único rei é Jesus".

Mitologias apocalípticas
Quanto a nosso presidente -alcoólico em via de cura e nascido duas vezes-, ele afirma que não deve prestar contas senão a um pai acima de seu pai terrestre e nos anuncia que seu filósofo preferido chama-se Jesus Cristo. O sucesso, entre americanos de todas as confissões, de "A Paixão de Cristo" -esse filme sanguinolento para os cristãos e feito por Mel Gibson, esse hino sadomasoquista à transcendência por meio da dor física- também faz parte do pesadelo: é ao mesmo tempo um de seus sintomas e uma de suas causas. O que há talvez de mais conservador hoje, na era de Bush 2º, é constatar a que ponto os fundamentalistas cristãos pesam nas eleições, seja nas locais ou na presidencial. Sua influência é mais forte que a de qualquer outro grupo identificável em termos demográficos. A vida política dos Estados Unidos chega a ser moldada por mitologias do fim dos tempos, por bizarras fantasias escatológicas extraídas de trechos das escrituras cristãs, em particular do Apocalipse. De muito longe, as melhores vendagens de livros em nosso país nos últimos cinco anos são as dos 12 volumes da famosa série "Left Behind" [no Brasil, "Deixados para Trás", ed. United Press], de Tim Lahaye. Esses livros, vendidos aos milhões, são relatos que põem em cena uma visão teológica fantástica formulada no século 19 por dois pastores protestantes fundamentalistas. Para milhões de indivíduos, essas narrativas são literalmente verdadeiras, tanto em sua dimensão histórica quanto profética. Eles acreditam na existência de certas condições históricas que, uma vez preenchidas, provocarão a segunda vinda do Cristo à Terra -um evento que se prepara há 2.000 anos. Vamos resumir esse relato bastante complexo e pesado (afinal, ocupa 12 volumes). Primeiro, é preciso que o Estado de Israel seja restabelecido nas "terras bíblicas". O terceiro templo deve ser construído no local da mesquita de Omar e da mesquita Al Aqsa. Essa construção fará as legiões do anticristo se atirarem contra Israel, e a última batalha dessa guerra acontecerá no vale de Armagedon.

Subida aos céus
Os judeus que se recusarem a se converter ao cristianismo serão queimados, e é nesse momento que o messias voltará à Terra. Durante esse combate apocalíptico ocorrerá o que chamam de "rapto". É graças a esse "rapto" que os cristãos renascidos ("born again Christians") verão seus corpos subirem ao céu, estejam eles vivos ou mortos. Os cemitérios se esvaziarão e os céus se encherão de cristãos duas vezes nascidos em plena ascensão. Os renascidos que estiverem viajando de avião ou dirigindo seus carros serão levados do veículo, que, sem motorista, seguirá em qualquer direção até colidir. Sentados à direita de Deus, os cristãos salvos terão o privilégio de contemplar a Terra do alto e ver seus adversários religiosos e políticos sofrerem cruelmente furúnculos e outras aflições, assim como gafanhotos e sapos virão atacá-los durante alguns anos de atribulações que se seguirão.
Cerca de 15% do eleitorado americano está convencido da verdade histórica e profética desse relato ou de outros na mesma veia.
Em um sistema de dois partidos, isso é suficiente para decidir o rumo das eleições. Esses eleitores são bem organizados e financiados e votarão no candidato republicano. Karl Rove e os agentes do presidente cuidaram disso, remodelando de maneira adequada o programa e as prioridades do partido.
Certos ou errados, os fundamentalistas cristãos acreditam que George W. Bush é um dos seus assim como pensaram de Ronald Reagan. Para eles, o que agita o Oriente Médio não é um conflito político: é a fase intermediária de um confronto teológico, e o Deus cristão está ganhando. Por conseqüência, de acordo com o plano divino, eles apóiam a política de Sharon na Cisjordânia e assumem a defesa das colônias judaicas.
Desde que foi programada -isto é, desde 12 de setembro de 2001-, a invasão do Iraque pelos Estados Unidos lhes pareceu uma etapa crucial no que deve levar ao "rapto" e à segunda vinda de Cristo. Não está de fato escrito no capítulo nove do apocalipse que devemos libertar "os quatro anjos que estão acorrentados sobre o grande rio Eufrates" para que eles "levem à morte um terço dos homens"?
Uma guerra contra o islã, seja qual for o lugar em que se desenrole, é forçosamente uma guerra santa -uma "jihad" cristã conduzida das alturas celestiais-, com um coro de deputados homens e mulheres (republicanos, mas também diversos democratas) que cantam nosso Deus sob a forma de uma poderosa fortaleza, enquanto nossos soldados cristãos, em passo marcial, afundam cada vez mais nas areias movediças. Entretanto, para tornar o país mais seguro, tratamos em todo o território aqueles que duvidam da veracidade desse relato não como oponentes em um debate, mas como heréticos: eles são caçados, reduzidos ao silêncio e condenados ao desprezo. Além disso, como hoje vivemos os últimos dias do mundo, não há motivo para sacrificar-se pelas futuras gerações, nenhum sentido em acreditar nesse antiquado sonho americano que repousava sobre uma hipótese bem secular, segundo a qual poderíamos legar um mundo melhor a nossos filhos e netos se cuidássemos suficientemente da economia pessoal como da economia pública e se tratássemos o outro da maneira como desejamos ser tratados. No pesadelo americano, não há um futuro ainda não criado e modificável pelo qual trabalhar, não há futuro a preparar para nossos descendentes.

O mapa do consumo
Assim, quando em 11 de setembro de 2001 os asseclas de Bin Laden cometeram seus atentados contra o World Trade Center e o Pentágono, nossos dirigentes não nos deram um mapa do caminho: eles nos pediram para consumir. Eles não reorganizaram a economia nacional para torná-la independente do petróleo do Oriente Médio: lançaram um novo veículo utilitário 4x4 de lazer e planejaram uma invasão no Iraque.
Quando um grupo de primatas superiores -chimpanzés ou gorilas- começa a sentir falta de alimento, os machos adultos são acometidos de loucura devoradora, de voracidade apocalíptica. Eles engolem todas as bananas e todas as frutas que restam no território do grupo. E, quando não há mais bananas e frutas, eles invadem o território de seus vizinhos e se tornam seus senhores por meio da violência.
Nós, seres humanos, somos uma variedade de primatas superiores, e nosso grau de evolução não nos impede de ter um acesso de loucura devoradora. Pelo contrário. A única diferença entre os chimpanzés e nós é que inventamos uma teologia para justificá-la.


Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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