São Paulo, sábado, 04 de setembro de 2010

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JEAN PISANI-FERRY

Depressão e a memória econômica


Em momentos de crise, os melhores guias são a teoria e as lições das experiências passadas; o resto é inútil

A DISPUTA que emergiu nos Estados Unidos e na Europa entre os proponentes de novas medidas governamentais de estímulo e os defensores de uma retomada do equilíbrio fiscal se assemelha muito a um debate sobre história econômica.
Os dois lados revisitaram a Grande Depressão dos anos 30 -bem como a história centenária das crises de dívida soberanas- em uma controvérsia que pouco se assemelha às controvérsias usuais sobre política econômica.
Os partidários do estímulo adicional muitas vezes se referem aos danos causados pelas medidas de equilíbrio fiscal adotadas pelos Estados Unidos em 1937, quatro anos depois da posse de Franklin Roosevelt como presidente e do início do "New Deal".
Segundo cálculos do economista Paul van den Noord, o resultado líquido do Orçamento de 1937 foi a contração fiscal equivalente a três pontos percentuais do PIB (Produto Interno Bruto), o que é um total nada trivial. O crescimento despencou de 13% em 1936 para 6% em 1937, e o PIB encolheu em 4,5% em 1938, enquanto o desemprego subia de 14% para cerca de 20%.
Embora a política fiscal não tenha sido a única causa daquela recessão de duplo mergulho, as medidas inoportunas de retomada do equilíbrio fiscal certamente contribuíram para o acontecido.
Ou seja, será que estamos em 1936, e será que o aperto orçamentário contemplado por muitos países provocará uma recessão de duplo mergulho parecida? Existem limites claros nessa comparação.
Para começar, muito menos tempo transcorreu desde a crise financeira, a recessão não foi tão profunda e a recuperação veio mais rápido. Além disso, desdobramentos importantes surgidos entre a crise de 1929 e as medidas de aperto orçamentário de 1937 -notadamente a virada protecionista na política comercial norte-americana, em 1930, e o tumulto monetário dos anos seguintes- não têm equivalentes atuais.
Mesmo assim, o acontecido em 1937 parece ilustrar os perigos de tentar consolidar as finanças públicas em um período no qual o setor privado ainda está fraco demais para que a recuperação econômica se sustente sem ajuda.
Em momentos normais, a história é trabalho dos historiadores, e os debates de política econômica se baseiam em modelos e estimativas econométricos. Mas as atitudes mudaram quando irrompeu a crise econômica de 2007/8.
De fato, os dirigentes de bancos centrais e ministros pareciam obcecados pelas lembranças dos anos 30, e, conscientemente, agiram de maneira oposta à de seus predecessores 80 anos antes.
E agiram certo. Em momentos extraordinários, a história de fato serve como guia superior aos modelos estimados com base em dados de períodos normais, porque captura variações que as técnicas baseadas em séries-padrão ignoram.
Se alguém deseja saber como lidar com uma crise bancária, com o risco de uma depressão ou com a ameaça de uma moratória, é natural examinar períodos nos quais esse tipo de perigo existia, e não depender de modelos que ignorem esses perigos ou os tratem como nuvens distantes.
Em momentos de crise, os melhores guias são a teoria, que captura a essência de um problema, e as lições das experiências passadas. Tudo o mais é virtualmente inútil.
O perigo quanto a confiar na história, porém, é que não dispomos de metodologia que permita decidir que comparações são mais relevantes. Analogias frouxas podem facilmente ser tomadas como provas, e vasta gama de experiências pode ser empregada para sustentar uma determinada posição.
As autoridades econômicas (cujo conhecimento sobre história econômica costuma ser limitado) correm, portanto, o risco de se verem afogadas por referências históricas contraditórias.
A história pode ser uma bússola essencial nos casos em que as experiências do passado oferecem percursos incontroversos.
Mas um apelo indisciplinado às experiências históricas pode se tornar uma forma mistificadora de expressar opiniões. Governar por analogia pode facilmente resultar em um governo confuso.


JEAN PISANI-FERRY é diretor do instituto de pesquisa europeu Bruegel. Este artigo foi distribuído pelo Project Syndicate.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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