São Paulo, terça-feira, 18 de janeiro de 2011

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VINICIUS TORRES FREIRE

Alerta de mortes estúpidas



Governo quer sistema de aviso de desastres naturais, mas precisa melhorar a prevenção dos sociais

O MASSACRE do Rio ao que parece vai induzir a criação de um "sistema nacional de prevenção e alerta" contra desastres naturais. Segundo o governo federal, deve levar uns quatro anos para ficar pronto. É um negócio mesmo complicado. Depende de satélites, supercomputadores, radares e outros equipamentos meteorológicos. Depende de mapear áreas de risco. Depende de haver gente treinada. Cientistas e outros.
Se a coisa passar da licitação mais ou menos corrupta de equipamentos, se os equipamentos forem postos em uso etc., o sistema apenas funcionará se houver um plano e meios logísticos de retirar as pessoas do alvo da fúria da natureza. Quer dizer, pessoal treinado para agir em pequenas prefeituras, meios de transporte, estradas, lugares de acolhida, comida e água para as pessoas deslocadas.
Uhm: estradas e transportes públicos? Temos plano para isso também?
Sim, é um avanço da civilização criar um sistema de evitar mortes estúpidas. Mas a descrição breve das condições de funcionamento do programa dá o que pensar, não apenas sobre o alerta de chuvas assassinas mas sobre os sistemas de prevenção de violências várias no Brasil.
Considere-se uma notícia de ontem desta Folha, um relato recorrente sobre mais suspeitas de desvios brutais de dinheiro da Funasa. Essa Fundação Nacional da Saúde é um órgão de "prevenção e alerta" contra desastres sanitários, como mortes devidas à saneamento primitivo, malária, dengue, mal de Chagas e outros assassinos primitivos.
Bem, para dar um exemplo curto e pop, no ano passado morreram mais de 500 pessoas de dengue. As mortes anuais devidas a picadas de bichos e saneamento medieval passam da casa dos dezenas de milhares. Não causam muita sensação. Mas o "sistema de prevenção de desastres" sanitários até existe, embora a prevenção verdadeira seria civilizar o país de fato, tirando as pessoas da vida em favelas (e similares) ultrajantes. Favela é parte da natureza brasileira, a gente aceita na boa. É mais natural que chuvas de verão.
Verdade que há progressos. Fazemos vacinação direito -logo, temos capacidade de sermos menos bárbaros. Mas, por falar em mortes em massa, passada década e pouco do novo código de trânsito, ainda é raro ver gente perder a carteira de motorista por excesso de selvageria no volante. Morrem umas três dezenas de milhares de pessoas no trânsito, por ano.
E o "sistema de prevenção" de mortes por tiro? A gente se acostumou a ver selvagens carregando fuzis e pistolões em bairros populares de Rio, São Paulo, Recife etc. Morte a bala é uma das piores endemias brasileiras. Onde está o sistema de prevenção dessa catástrofe que é o contrabando de armas? Alguém já ouviu falar da prisão de um grande contrabandista de armas?
Lembrar esses outros horrores não é, por favor, pouco-caso com as vítimas do massacre do Rio. Porém, o tamanho concentrado do desastre nas serras fluminenses suscita indignações igualmente concentradas no tempo, que duram enquanto não sobrevém o tédio da falta de "recordes de mortos" e de "novas histórias humanas". Mas o nosso modo de produção de mortes estúpidas está por toda a parte, o ano inteiro, matando ainda mais gente, de modo tão ou mais cruel.

vinit@uol.com.br


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