São Paulo, domingo, 20 de junho de 2010

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Crise faz Irlanda rever bem-estar social

Com desemprego em alta, jovens preferem ter filhos e receber subsídios do governo a buscar oportunidades

Socióloga critica falta de contrapartidas de quem recebe o dinheiro e de estímulo ao empreendedorismo

LUCIANA COELHO
ENVIADA ESPECIAL A DUBLIN

Das portas das casas novas de três quartos, jardim na frente, construídas pelo governo irlandês em um bairro de classe média baixa no norte de Dublin, os pequenos saem aos montes. Os pais observam a brincadeira. É quarta-feira, 15h. Não é feriado.
"Minha irmã está no shopping com as amigas e o bebê", diz a espevitada Amanda, 8. "Olha, ele é meu sobrinho também. E tenho uma sobrinha", completa, apontando Craig, 4.
Por ali, é normal ter cinco, seis filhos. E começar cedo. "Você tem filhos?", indaga a menina. "Não?", se assusta diante do "não" da repórter.
A irmã de Amanda tem 20 anos e não é uma exceção. Em Ballymun, está mais perto de ser regra. São jovens frustrados com a dificuldade de arrumar trabalho, que, relegados a subempregos, preferem recolher os benefícios pagos pelo governo.
A história é contada por todos ali e admitida pelo Ministério do Bem-Estar: elas engravidam cedo e vivem com o pai da criança, mas dizem a agentes sociais que são mães solteiras. Logo vem outro bebê. E outro. E talvez outro.
A poucas centenas de metros, as cadeiras do centro comunitário de recolocação profissional de Ballymun estão vazias. Pat Griffin, que toca o lugar e ensina os frequentadores a reformar currículos, mandar apresentações e procurar vagas, resmunga: "Há coisa de dez anos, isso lotava".
Não que a Irlanda não padeça com o desemprego -a 13,2%, sua taxa supera a média na União Europeia, embora não chegue a ser uma Espanha. Mas é em um misto de resignação e erros no sistema social que as cadeiras vazias de Pat e o passeio da irmã de Amanda pelo shopping encontram resposta.
Falhas de comunicação e supervisão fermentadas por décadas a partir das proposições generosas da Constituição de 1937 tornam mais atraente viver de benefícios de até 2.000 (R$ 4.600) e tentar multiplicá-los -tendo mais filhos (o país tem a maior taxa de fertilidade da UE, duas crianças por mulher) ou fraudando o sistema.
Rachel, 21, busca emprego. Tem uma filha. Acanhada, diz que perdeu o direito ao subsídio integral -quase 200 por semana, mais 150 no fim do mês, mais ajuda para o aluguel- porque o ex-namorado foi viver em Londres e declarou que paga pensão à filha. "É mentira."
Descreve amigas com dois, três filhos. "Está difícil e elas desistem. Você não sabe como é difícil", diz.

ALVO ERRADO
Para a socióloga brasileira-irlandesa Fabiana Lino Uí Bheagáin, falta na forma como o sistema é orientado o estímulo ao empreendedorismo. O dinheiro é quase sempre repassado ao cidadão sem maiores exigências.
Só agora é que limitações de prazo têm sido colocadas e que contrapartidas, como frequentar um treinamento, começam a ser cobradas.
"Enquanto não houver uma mudança de mentalidade de cima para baixo, vai ser difícil tirar as pessoas desse ciclo", diz a socióloga. "Se o governo não for responsável, tudo vai implodir."
Passado o pior da crise, o país -que já foi chamado de Tigre Celta- é hoje o maior exemplo da encruzilhada da Europa, ao menos na ótica de economistas e instituições como a OCDE, o grupo que reúne 34 países ricos.
Com urgência inédita, precisa restringir o que é a essência dos Estados europeus no pós-Guerra -o hoje sobrecarregado sistema de bem-estar social- sem desamparar a massa de desempregados nem esfriar a economia, que em 2009 encolheu 7,1%.

"LOOPING"
Ian McCann, 35, três filhos entre 17 e 9 anos, nascido e criado em Ballymun e morando em uma das casas recém-construídas pelo governo, está há três anos procurando emprego. Está há seis sem usar drogas, problema citado como comum na área.
"As pessoas não têm o que fazer aqui, dá nisso", acha.
A mulher -ou namorada, como ele gosta de enfatizar, mãe de seus filhos- trabalha em um hotel nas redondezas.
Ganha 8,25 por hora e teve a jornada semanal reduzida para 24 horas. Trabalhando, recebe quase o mesmo que ganharia ficando em casa, embora possa receber parte dos subsídios. "Ela não quer trabalhar mais lá, subiram a carga e cortaram horas."
Mesmo recebendo, ele critica o sistema. "Esse dinheiro é malgasto. Se você está desempregado e recebe, fica preguiçoso. As pessoas entram em um "looping". Uma mãe solteira ganha quase 200 por semana. Assim é difícil sair do sistema."

Folha.com

Veja a reportagem completa em
folha.com.br/me753589


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