São Paulo, quinta-feira, 22 de setembro de 2011

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MARION STRECKER

Liberdade e civilidade no deserto


O "Burning Man" é um lugar para participar e agir, mais do que para assistir; não é lugar para folgados


Passei as últimas semanas mergulhada num assunto bem específico: o evento anual chamado "Burning Man", onde o dinheiro é proibido de circular. É uma mistura de acampamento com festa à fantasia, mas também é uma experiência sociológica. Dura uma semana e acontece num deserto empoeirado em Nevada, Estado vizinho à Califórnia.
A coisa começou numa praia de nudismo em San Francisco há 25 anos, a Baker Beach. Depois teve de ser transferida, por falta de licença. O "Burning Man" atrai hippies e tecnológicos, jovens e velhos, ricos e pobres, para um acampamento gigante de 50 mil pessoas, cheio de regras.
Vai muita gente do Vale do Silício, berço da nova economia mundial. Alguns mentem sobre ir, por medo de represálias e para fugir da eventual fama de usar drogas lisérgicas. Outros são figurões, que chegam de helicóptero, no anonimato. Aqui em San Francisco, todas as pessoas que conheci abriam um sorriso maroto ao ouvir a expressão "Burning Man". A maioria não tinha ido, mas conhecia de ouvir falar. E me enchiam de perguntas.
Os que foram e os que continuam indo formam uma espécie de tribo ou clube, ou de clubes e de tribos, e de algum modo se relacionam pela vida afora, pessoalmente, pela internet, em eventos intermediários que eles organizam para queimar algumas coisas e matar a saudade. Ou em ONGs, como a Black Rock Art Foundation (www.blackrockarts.org) e o Burners Without Borders (www.burnerswithoutborders.org), para citar dois exemplos.
Não é fácil explicar o "Burning Man". Estou tentando há mais de uma semana no UOL, todos os dias. Fácil é criticar, chamando os "burners" de infantilóides, como escreveu outro dia Holly Finn num artigo no "Wall Street Journal", sem jamais ter posto os pés ali. O "Burning Man" é um lugar para participar e agir, mais do que para assistir -por isso não se parece com um festival. Não é um lugar para preguiçosos ou folgados. Tudo gira em torno do que as pessoas são capazes de planejar e fazer ali, dentro das condições dadas, libertárias, mas limitadas. Para mim, é uma grande experiência sociológica, com consequências, diria, positivas. Dá um trabalhão acampar naquelas condições. É uma aula de ecologia, na marra, por mais que as pessoas gastem centenas de dólares para comprar as coisas de que precisarão ali. Ou acham que precisarão.
Como disse o médico Jacob Lalezari, dono de uma clínica em San Francisco que testa novos medicamentos para doenças contagiosas, como Aids, hepatite B e C e gripe, "os intolerantes se autoexcluem do 'Burning Man'". Porque lá é preciso exercitar a tolerância. A começar pelo lugar -o deserto mais empoeirado em que já estive na vida.
As regras (escritas ou aprendidas na prática), a meu ver, são bastante civilizadas: aceite um grande abraço de um desconhecido ao chegar à cidade, não deixe nenhum lixo no deserto, nem mesmo verta água limpa no solo. Leve tudo o que você trouxe de volta. Seja cooperativo, ajude todos os que precisarem de ajuda, seja gentil e generoso com todos, ou seja, com qualquer um. Romântico? Pois é. Esse lugar é assim.
Dinheiro é proibido ali. Tudo lá é dado ou, no máximo, trocado. Sorrisos e gente fantasiada estão em toda parte. Tutus (saiotes de bailarina) são a "pièce de résistance", usadas por crianças, homens e velhos, inclusive.
Muitos dos carros ou robôs alegóricos fazem alusão ao mar, que o deserto de Black Rock um dia foi. Barcos, navios, tubarões, arraias. Também dragões, cerejeiras em flor, Cavalo de Troia, o Templo da Transição (importantíssimo para muitos) e até circuito de mulheres de bicicleta e topless, para ficar nas atividades abertas e à luz do dia.
Obras de arte, festas e DJs por toda parte 24 horas por dia. Mas também notei palestras com gente séria falando sobre assuntos sérios. E muita, muita gente trabalhando. Porque gosta de trabalhar. Porque lá é necessário trabalhar bastante. Porque o "Burning Man" é um excelente local para conhecer novas pessoas, trocar ideias e -por que não?- iniciar conversas que podem acabar em grandes negócios.

MARION STRECKER é jornalista, cofundadora do UOL e sua correspondente em San Francisco, Califórnia.

marionstrecker@gmail.com

@marionstrecker

AMANHÃ EM MERCADO:
Luiz Carlos Mendonça de Barros



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