São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2010

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MARCELO NERI

Memórias, sonhos e eleições


O jovem brasileiro não tem na memória o pesadelo inflacionário, e também não o vê como ameaça


OS BRASILEIROS não se conformam com as votações na internet que colocam Maradona à frente de Pelé como o melhor jogador de futebol de todos os tempos. Pleitos são decididos pela experiência prática de cada um: a geração mais nova não viu o agora setentão rei Pelé jogar, mas vibrou ao vivo e em cores com os gols do craque argentino.
A mesma lógica vale para as influências eleitorais hoje da memorável estabilização econômica de Fernando Henrique Cardoso. O Brasil foi o país com maior inflação no mundo entre 1970 e 1995.
Foi tanta inflação que hoje, mesmo após 16 anos de estabilidade, é o segundo em inflação acumulada desde 1970, perdendo apenas para a República do Congo e goleando a Argentina, nossa rival, neste campo.
O fato é que o jovem brasileiro de hoje não tem na memória o pesadelo inflacionário pregresso e também não o vê como ameaça futura.
Similarmente, o crescimento de renda recente foi vivido por muitos, mas não por todos. De 2001 a 2009, a renda per capita dos 10% mais ricos aumentou 1,5% ao ano, contra 6,8% dos 10% mais pobres.
O número de pobres caiu 20,5 milhões desde o fim da recessão de 2003. A popularidade da candidata da situação é incompreendida pela elite econômica que não experimentou os saborosos frutos da expansão brasileira dos últimos anos.
Vale lembrar a continuidade do crescimento inclusivo no Brasil durante a crise. Nos 12 últimos meses, houve aceleração dessa tendência, mesmo comparada ao período de ouro, embora ganhando impulso nas eleições. Eleições são quando se pereniza o transitório.
A desigualdade segue agora queda ainda mais forte que no período conhecido como da queda da desigualdade (www.fgv.br/cps/ncm). Mais do que o "É a economia, estúpido!" da eleição dos EUA de 1992, talvez o mais adequado para representar o caso brasileiro de 2010 seja: "É o social, companheiro!".
Olhando mais para cima na distribuição de renda, 29 milhões de pessoas -mais de meia população francesa- foram incorporadas à nova classe média (classe C) entre 2003 e 2009, pessoas que antes eram consideradas pobres.
Os agora 95 milhões em ação na nova classe média correspondem a 50,5% da população brasileira -ela inclui não só o eleitor mediano que decide eleições, mas poderia sozinha decidir um pleito eleitoral. Corações, mentes e acima de tudo os sonhos desse grupo emergente de um país emergente são a fronteira a ser conquistada pelos presidenciáveis. Eleição diz respeito ao futuro, a sonhos que pareçam possíveis.
A popularidade de Lula é tal que ele não é considerado um novo Getúlio, mas Getúlio é visto como o velho Lula. Getúlio era o pai dos pobres; já Lula não é o pai dos pobres, nem mesmo pai desta nova classe média -ele é a nova classe média.
Ele, melhor do que ninguém, encarna a possibilidade de ascensão social de cada brasileiro. Ao povo brasileiro a oportunidade de educação de qualidade não foi dada. Quando a elite brasileira vê Lula falar, critica o seu português; já o povo pensa: "Ele fala que nem eu". Se ele pode: "Sim, nós também podemos!". Lula desperta os mais pobres para o sonho brasileiro, que é similar ao americano, e de outros povos, que é subir na vida. Em época eleitoral, sonhos valem mais do que memórias.
A popularidade de Lula não foi suficiente para eleger a sua candidata no primeiro turno da eleição. O povo brasileiro hoje não quer um pai. O brasileiro também não quer um presidente que fale de memórias passadas, e menos ainda que "o sonho acabou". Ele quer um, ou uma, líder que o ajude no seu "pode mais", na grande transformação de seus sonhos em realidade.
Independentemente dos resultados desta eleição que se descortina, teremos nos futuros livros de história, ao revisitarem a primeira virada de milênio do Novo Mundo, generosas citações a Fernando Henrique Cardoso e Lula. Novas moedas serão cunhadas com suas respectivas efígies e serão usadas por intervalos de tempo mais longos do que a memória das pessoas.


MARCELO NERI, 47, é economista-chefe do Centro de Políticas Sociais e professor da EPGE, na Fundação Getulio Vargas.
Internet: www.fgv.br/cps
mcneri@fgv.br

AMANHÃ EM MERCADO:
Gustavo Cerbasi


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