São Paulo, segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

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ENTREVISTA DA 2ª RICHARD FLORIDA

Crise marca surgimento de um novo capitalismo

Retomada econômica não ocorrerá calcada na "ordem antiga"; novo sistema será movido a "conhecimento" com foco em recursos humanos

ANDREA MURTA
DE WASHINGTON

O mundo atual não é "plano", como insiste a imagem de uma era digital que supostamente aboliu as fronteiras geográficas da economia.
Para o urbanista Richard Florida, o cenário moderno é mais irregular: cheio de "pontas", que concentram a atividade econômica e criativa, e "vales", cuja desigualdade traz ameaças à ordem política global como não se via há mais de um século.
Sem reconhecer essa realidade -e seus perigos-, o planeta vem seguindo um caminho para sair da crise que, para ele, é totalmente errado.
"Há um conceito introjetado de que é preciso ressuscitar a ordem antiga e uma resistência em admitir que essa crise representa seu colapso e o nascimento de um novo capitalismo criativo, movido a conhecimento, que vai exigir novas formas de crescimento e novas instituições sociais e econômicas", diz.
E, se souber avançar nessa nova era, o Brasil pode sair na frente. A seguir, a entrevista que Florida concedeu à Folha, por telefone, de Miami.

 


Folha - O que o mundo devia estar fazendo de diferente para sair da crise?
Richard Florida
- Nos países desenvolvidos, há muito comprometimento com a velha ordem industrial. Insistem no mercado imobiliário e na suburbanização como motores do crescimento econômico. Certamente nos EUA temos uma crise de pensamento econômico.
Mas acho que algumas economias emergentes -China, Índia e Brasil- estão começando a desenvolver um novo estilo, uma nova energia intelectual, e estão mais interessados em pensar de uma forma nova.
A China me parece estar tentando fazer algo similar ao que os EUA fizeram nas décadas de 1850, 1860, 1870 -ela começa a se ver como novo poder mundial e desenvolve a infraestrutura necessária para apoiar isso.

Como o sr. vê a liderança americana no pós-crise?
Não há liderança. O economista Mancur Olson (1932-1998) dizia que quando nações declinam se prendem a antigos padrões políticos e institucionais que começam a impedir o crescimento. Ele chamava isso de esclerose institucional.
O que está acontecendo nos EUA é o perfeito exemplo de esclerose institucional.
E não é apenas a divisão partidária terrível que impede qualquer avanço; a crise real é a falta de visão da esquerda. É a esquerda nos EUA -e eu sou um grande apoiador do presidente Barack Obama- que está olhando para trás.
Ela fica dizendo "se ao menos pudermos reavivar o mercado imobiliário, as manufaturas, os bancos...", em vez de dizer "aqui está um novo capitalismo, movido a conhecimento e a ideias, vamos expandi-lo e fazer as classes médias e trabalhadoras prosperarem".
Obama é hoje um reflexo da crise de uma esquerda nascida na era industrial e que não consegue encontrar sentido na nova ordem.

No Reino Unido, o premiê David Cameron propõe entregar setores inteiros gerenciados publicamente, como educação, para cooperativas civis. Isso é coerente com sua ideia de menos intervenção "de cima para baixo"?
A era da produção de massa e centralização, tanto em termos das autoridades econômicas como de modelos de governo central, chegou ao seu limite.
O nível adequado para inovação, produtividade e política econômica não é o governo central, mas o nível local. O nível nacional pode ter tarefas para o equilíbrio e a redistribuição.
Se Cameron e o governo britânico colocarem isso em prática de forma robusta, fará sentido.

O sr. fala sobre mover para além dos modelos de consumo atuais. Como sugere isso para países como o Brasil, que só agora estão chegando aos níveis de consumo dos desenvolvidos?
As pessoas só falam em reavivar o consumo. Claro que é preciso um certo grau de conforto e de mobilidade. Mas a grande oportunidade para Brasil, China e outros é romper com esse modelo.
A sociedade de consumo era o perfeito estímulo econômico e geográfico para a era industrial. Agora, apenas uma fração pequena da população trabalha na produção. Mais de nós trabalhamos com o conhecimento e em serviços, e crescer de uma forma nova vai exigir romper com o modelo [consumista] e investir em talento humano.
O outro problema que o Brasil enfrenta -os EUA também, aliás- é que esse novo modelo não existe em um mundo "plano", mas sim terrivelmente cheio de "pontas". Temos níveis de desigualdade geográfica e econômica como não tínhamos há mais de um século.

Essas "pontas", que o sr. define como megacidades que atraem atividade econômica, o que têm de diferencial?
Esses lugares vêm se desenvolvendo há muito tempo. Considero que temos 40 megarregiões, uma das quais está no Brasil (Rio-São Paulo, que chamamos de "RioPaulo"). Elas abrigam 80% da população mundial, produzem dois terços da atividade econômica e nove de dez inovações globais. São agregadores gigantes de pessoas, indústrias, atividade econômica e atividade criativa.
O problema é que sabemos que atividade econômica realmente inovadora não se espalha. E isso está criando um mundo mais dividido.

Podemos artificialmente criar as "pontas"?
Não creio, e acho que seria um erro tentar. Mas se não fizermos algo globalmente para abordar isso, vamos ter problemas políticos.
A melhor estratégia é melhorar a vida de quem está fora dos centros. É quem trabalha em serviços que está ficando para trás. Precisamos melhorar esses empregos.

O sr. está falando de trabalhos e empregos, mas também argumenta que, quando talentos escolhem onde viver, levam em conta cultura, tolerância etc.
Sim, claro. Estamos vendo uma migração em massa de gente talentosa e criativa para as megarregiões. E outras partes do mundo estão ficando para trás. Esses lugares têm tudo. São mais abertos, mais tolerantes, têm mais empregos, mais networking (rede de contatos). Não temos mais uma divisão Norte-Sul no mundo, mas sim entre as "pontas" e o resto.

E o que acontece com os lugares mais socialmente conservadores?
Estão ficando com mais e mais raiva. Você vê isso nos EUA. Querem voltar ao passado, não querem imigrantes, não querem gays.
Essa é a natureza da mudança que o mundo está vivendo: não é apenas econômica, mas geográfica. Estamos vendo conflitos de classe em divisões geográficas que nunca vimos antes.

Quando as "pontas" começam a ficar grandes demais a ponto de expulsar os talentos?
É um grande paradoxo. Está cada vez mais difícil viver nas megarregiões. A locomoção é difícil, o tráfego é congestionado. Há experimentos em grande escala para melhorar a vida nas megarregiões. Duas que eu diria que são as mais adiantadas são Nova York e Londres. Estão mostrando qual será o nível de competição por talentos.
É preciso aumentar a densidade dos subúrbios e fazer grandes investimentos em transporte, em ferrovias rápidas etc. O que impulsionou o desenvolvimento no passado foi o investimento em infraestrutura. E nisso a China está saindo na frente.

Como funciona a adaptação dentro dessa imigração de massa que o sr. menciona -como um estrangeiro vive entre as praias e os tiroteios no Rio?
Essas questões que você levanta sugerem que esse [segurança] é o desafio do Rio, de São Paulo e de todo o Brasil [para atrair talentos]. Nova York era uma cidade assim até pouco tempo atrás, com níveis altíssimos de violência e crime.
O Brasil é capaz de fazer isso [atrair gente criativa]. Brasil, Índia e China são os três países competindo pela próxima dominância global.
A China leva toda a atenção, mas os dois países que têm o "gene social" inovador e criador são Índia e Brasil.
A grande vantagem do Brasil é essa grande sociedade multicultural e multirracial. A energia criativa do Brasil ainda não foi totalmente utilizada.

Por que o sr. destaca a presença e a tolerância à comunidade homossexual como vitais para o sucesso econômico das megarregiões?
Sempre encarei o index gay como a última fronteira da abertura e da tolerância e da inclusão. Ainda é a grande questão de nosso tempo. Questões femininas e raciais também são importantes, mas a tolerância com os homossexuais é o último passo.


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