São Paulo, segunda-feira, 31 de maio de 2010

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MARIA INÊS DOLCI

Lixo industrial na sua casa


Chegamos à triste situação de descartar, após 1 ano ou 2, equipamentos que antes duravam 10 ou mais anos


A OBSOLESCÊNCIA programada dos produtos já ultrapassou todos os limites. Você compra uma geladeira, um fogão, uma máquina de lavar hoje e daqui a três ou quatro meses consulta a lista de assistência técnica. Chato, não?
Vem a assistência técnica autorizada, conserta, ou melhor, dá um jeito por um mês ou dois. E o produto quase novo, já reparado, está novamente estragado. Irritante, não?
Pois é, falamos, discutimos, escrevemos, lemos e vemos programas e filmes sobre a proteção ao ambiente. Um tema relevante, empolgante, mas que se contrapõe à curta duração dos produtos.
Porque, bem, cá entre nós e que ninguém nos ouça, com produtos fabricados para estragar e assistência técnica que faz gambiarras, sai mais em conta comprar um novo.
Chegamos, então, à triste situação de descartar, após um ano ou dois, equipamentos que antes duravam dez ou mais anos. Todos feitos com muito plástico, que deforma, enguiça, quebra e não dura.
O meu desabafo, tenho certeza, vai ao encontro do que você sente, leitor. Haja vista a quantidade de recalls, muitas vezes de automóveis que custaram R$ 50 mil, R$ 60 mil. E que têm "um pequeno probleminha que pode ocasionar graves acidentes, mortos e feridos".
A natureza, já tão ameaçada por nosso descaso e desrespeito milenares, sofre com montanhas de baterias, carcaças de celulares, de máquinas de lavar e fontes de microcomputadores. Lixo, muito lixo, que decorre da cupidez de quem fabrica porcaria para vender novamente em prazo recorde.
Por que os governos não reclamam, não fiscalizam nem punem? Talvez porque todos os equipamentos, os aparelhos, as traquitanas tenham cargas absurdas e extorsivas de impostos, que bancam benesses para os desfavorecidos e vida mansa para quem não precisa.
Já reclamei várias vezes dos carregadores de celular. Cada um de um jeito, incompatíveis, únicos. Portanto, candidatos a entupir os aterros sanitários, nome bacana para lixões a céu aberto, empestando o ar e o lençol freático das cidades.
Mais bacana, ainda, é que as mesmas empresas que fabricam esses produtinhos semidescartáveis bancam belas campanhas de propaganda para mostrar como protegem o ambiente. A assistência técnica, definitivamente, é uma área que escapou incólume nos 20 anos do Código de Defesa do Consumidor. Quem fiscaliza o cumprimento de normas de profissionais e empresas? Aliás, que normas?
Se você não for parente ou amigo de quem conserta seus equipamentos, boa sorte! O risco é todo seu, meu amigo.
Todo ano, emissoras de televisão fazem uma reportagem para mostrar as fraudes na mecânica de automóveis. Simulam um defeito no motor, puxando um cabo, e levam o veículo a várias oficinas. De cada dez profissionais, um explica que não há problema, só um cabo solto. Mas nove inventam consertos caríssimos, lesando o consumidor. As simulações se repetem, e nada muda.
Reconheço que é bem mais difícil verificar a qualidade de serviços do que de produtos. Mas, hoje, isso não é feito nem com um nem com outro. Comprar gato por lebre, mais do que exceção, acaba se tornando regra, pela falta de proteção ao ato do consumo. O barato sai caro, e o caro mais ainda.
Não faltam selos em geladeiras e fogões. São aprovados por tais e tais normas. Funcionam bem? Talvez, se você tiver sorte, por alguns anos. Não muitos, viu?
Não deveria ser assim. Mas é. Agora, com a ascensão social das classes C e D, com o ingresso dessas famílias no mercado consumidor, teremos mais alguns milhões de brasileiros lesados por fabricantes e falsos prestadores de serviços.
O lixo industrial se acumulará ainda mais em nossas caóticas metrópoles, enquanto mediamos os mais graves problemas mundo afora, como embaixadores da paz mundial.
Nossa economia cresce novamente em ritmo acelerado. Palmas para nós. Mas nossos consumidores são tratados com desprezo e desrespeito. Vaias para nós.

MARIA INÊS DOLCI, 54, advogada formada pela USP com especialização em business, é especialista em direito do consumidor e coordenadora institucional da Proteste Associação de Consumidores. Passa a escrever neste espaço, quinzenalmente, às segundas.
Internet: mariainesdolci.folha.blog.uol.com.br


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