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Entrevista - Sara Burke

Sem representação política, é impossível resolver protestos

Demandas por justiça econômica e democracia real caminham juntas, diz autora de estudo sobre manifestações em 87 países

MARCELO LEITE DE SÃO PAULO

Governos dos mais variados países estão fracassando no atendimento das necessidades de suas populações e no combate às desigualdades. "A captura generalizada de processos governamentais por elites é tão dominante que elas não se veem compelidas a distribuir a riqueza", diagnostica Sara Burke, analista política da Fundação Friedrich Ebert, ligada ao Partido Social-Democrata alemão (SPD), em Nova York.

Burke é coautora, com Isabel Ortiz, Mohamed Berrada e Hernán Cortés, do relatório "Protestos Mundiais 2006-2013" (http://policydialogue.org/files/publications/World_Protests_2006-2013-Final.pdf), da FES e da Universidade Columbia, que mapeou 843 eventos de contestação em 87 países. A maior parte (488, ou 58%) se batia por justiça econômica e contra medidas de austeridade.

Seu auge se deu a partir de 2010, após a crise financeira de 2008-2009. Contudo, a solução para essas demandas, diz ela, não depende tanto da retomada do crescimento quanto de avanços na representação política, de uma "democracia real" que dê voz e ouvidos, de fato, à maioria.

Leia os principais trechos da entrevista, feita por e-mail.

Folha - O relatório indica protestos por justiça global como o grupo de demandas que mais crescia em 2013. Seria equivocado presumir que eles arrefeceram desde então?
Sara Burke - Estamos todos muito atentos a Ucrânia, Venezuela, Tailândia, Egito e alhures, onde nacionalismos de vários tipos claramente desempenham papel enorme. Isso poderia nos levar a perguntar se os protestos organizados globalmente estão arrefecendo, mas nada posso dizer de definitivo sobre isso.
Lembre que um episódio de protesto é em geral muito mais que um comício ou uma marcha isolados. Com mais frequência, é um processo corrente e quase invisível de organização, construção de redes, produção de visões estratégicas e decisões que então se expressam em um dramático evento de protesto.

Os protestos na Ucrânia e na Venezuela não parecem nascer de queixas e demandas por justiça econômica ou contra austeridade, mas antes da segunda razão mais comum em seu levantamento, o fracasso da representação política. No Brasil, os protestos começaram com a tarifa dos ônibus e se tornaram mais e mais políticos, contra a corrupção. Há aí uma tendência?
É importante entender a relação entre o fracasso de governos em providenciar o que as pessoas precisam da economia --empregos com salários que permitam sobreviver, serviços públicos essenciais, impostos justos e alimentos, combustíveis e moradias a preços módicos-- e a necessidade de serem de fato ouvidas sobre como e para quem as decisões econômicas são tomadas.
Sem representação política que possa ser responsabilizada --ou seja, participação democrática e limites ao poder das elites--, é impossível resolver o grande acervo de demandas econômicas que leva as pessoas a protestar.

Isso vale para a Ucrânia?
Uma das razões pelas quais [Viktor] Yanukovich não assinou acordos com a Europa em novembro é que ele não se dispunha a implementar o que seriam medidas dolorosas e outras reformas exigidas pelo FMI em troca de empréstimos. Ele não queria impor a austeridade --não porque fosse um cara legal, mas porque isso enfureceria a população. Ele se voltou então para a oferta de ajuda da Rússia e isso também enfureceu as pessoas. Por quê?
Veja, não é uma alternativa do tipo "problema econômico ou crise política": é todo o sistema político e econômico que não responde às necessidades das pessoas. No estudo encontramos isso em todos os tipos de regimes políticos, dos autoritários, como o da Ucrânia, às democracias representativas, velhas e novas.

Pelo menos na Ucrânia, o que começou como protesto degenerou em conflito próximo de uma guerra civil, como na Síria. O Egito viu sua primavera retroceder ao inverno do antigo regime. É como se faltasse impulso, ou organização, aos movimentos de base para derrubar de vez o regime. Há exemplos para contradizer essa conclusão pessimista?
Um dos grandes desafios para os movimentos de protesto é como obter sucesso nos seus objetivos mais ambiciosos, como criar uma estratégia para chegar a uma transformação duradoura e sustentável. Isso fica mais complicado --na Ucrânia e na Venezuela, como na Síria"" com o fato de as potências externas usarem o confronto local para praticarem suas guerras por procuração.
Qual foi o real significado das declarações de Victoria Nuland [subsecretária de Estado dos EUA] que foram vazadas? Dizer "foda-se a União Europeia"? Será que o significado não foi que sua conversa com o embaixador americano na Ucrânia revelava o quanto o governo dos EUA tentava direcionar os protestos para seus objetivos, para aquilo que alguns alegam ser um golpe contra um presidente eleito, e não para uma solução democrática?

Pode-se argumentar que as medidas de austeridade foram, de algum modo, assimiladas desde 2011 e perderam apelo para protestos. Não houve os desastres esperados em Portugal, na Grécia ou na Espanha. A Europa está mal, mas não mais em crise aguda, os EUA retomaram o rumo do crescimento e a China parece estar tomando a trilha do crescimento mais lento sem distúrbios sociais. Estamos a caminho de uma normalização dos protestos pelo globo?
Os protestos antiausteridade na Europa foram maciços, mas muitos deles liderados por atores políticos tradicionais --como grandes confederações sindicais na Espanha, na Grécia e na Itália, que têm tantos vínculos com partidos desacreditados que elas mesmas se tornam inconfiáveis. Além disso, não houve virtualmente nenhum ganho com esses protestos; portanto eu diria que elas ""e não necessariamente a própria austeridade"" perderam apelo.
E, embora seja consenso entre os "oráculos" da finança que a Europa e em especial os EUA retomam o crescimento, quem se beneficia dessa recuperação? Nos EUA, dados recentes mostram que o 1% superior de renda capturou 95% dos ganhos dos primeiros anos de recuperação da crise econômica recente!
É consenso entre esses oráculos da finança que estamos numa nova era de volatilidade econômica global e precisamos nos acostumar. O 1% se preparou para ela sufocando a regulação e criando precedentes para socializar os resultados das crises enquanto privatizam os ganhos.

"Democracia real", como categoria isolada, é a demanda mais prevalente nos protestos (26% dos casos). Isso implica reconhecer que procedimentos democráticos formais, como eleições livres e Judiciário independente, não bastam para acarretar justiça social?
Por razões inteiramente coerentes com os achados sobre as principais queixas das pessoas, os maiores alvos dos protestos são "o governo" (usualmente os governos nacionais) e "o sistema" (o sistema político-econômico no qual o governo opera). Mas veja o que vem depois: corporações, FMI, elites, União Europeia, finanças, Banco Central Europeu, corporações armadas e livre-comércio!
Essa lista (ver tabela nesta página) revela um nexo perturbador entre governos que fracassam em representar populações e elites privadas corporativas e financeiras que contornam processos políticos para exercer influência, assim como instituições financeiras internacionais promotoras de políticas que espicaçam as populações e as forças militares e policiais que as reprimem quando se agitam --todos vistos, sob a óptica de manifestantes, como cúmplices da manutenção de um sistema econômico que produz e reproduz desigualdade e privação.

Muitos protestos que nascem da insatisfação com a falta de progresso na redução de desigualdades originam movimentos com pouco foco, cujas demandas abrangem coisas demais, numa época de limitações fiscais, e que tendem a conseguir pouco ou nada e depois arrefecem. Seria uma boa explicação para o fato de 63% de todos os protestos terminarem em fracassos?
O Brasil fez progressos históricos contra a desigualdade, mas não foi o suficiente para satisfazer a necessidade de serviços públicos e custo de vida adequados nem suas aspirações por mobilidade real. Como afirmamos no estudo, as políticas necessárias para enfrentar as insatisfações são tão numerosas e inter-relacionadas que ultrapassam a capacidade dos arranjos políticos existentes.
A questão não é vivermos sob limitações fiscais, mas numa era em que a captura generalizada de processos governamentais por elites é tão dominante que elas não se veem compelidas a distribuir a riqueza. Falta disposição para taxar aqueles que mais facilmente podem pagar e usar essa receita para financiar necessidades sociais.


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