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Matei para não morrer

20 anos depois do genocídio de Ruanda, assassino confesso lembra crime e diz ter sido forçado a cometê-lo

FABÍOLA ORTIZ COLABORAÇÃO PARA A FOLHA EM RUANDA

Há duas décadas, Didas Kayinamura vivia num subúrbio da capital de Ruanda, Kigali. Integrava a Interahamwe, grupo paramilitar da etnia hutu que comandou o genocídio contra a minoria tutsi (10% da população) no pequeno país da África central. Cerca de 800 mil morreram.

Há duas semanas, os 20 anos de uma das maiores matanças do século passado foram lembrados por milhares de pessoas como Didas.

Na época, ele matou um tutsi. Diz que era isso, ou seria mais uma vítima.

"Vi muitas pessoas serem mortas nas ruas com tiros na cabeça e machetes. Fui ameaçado pela Interahamwe quando passei por um grupo de tutsis que estava sendo espancado e me mandaram matar. Eu não tinha nenhuma arma e roguei para que me deixassem ir para casa. Me deram um machado grande e, se eu não matasse um tutsi, seria eu a morrer. Fui para casa e fiquei uma semana sem falar", lembra.

O genocídio durou cerca de cem dias e envolveu milhares de pessoas que mataram por convicção ou, como alega Didas, intimidação.

Aterrorizado pelos antigos aliados, ele resolveu mudar de lado. Aliou-se ao grupo rebelde liderado por Paul Kagame (hoje presidente do país) que tomou Kigali no dia 4 de julho de 1994, pondo fim ao genocídio.

A história de Didas não termina aí. Em 1996, quando trabalhava numa fábrica de refrigerantes, foi enviado à prisão e condenado a seis anos junto com outros genocidas.

Em 2003, liberado, ainda cumpriu três meses de trabalhos comunitários após ter passado por uma "gacaca", uma das cortes tradicionais montadas em vilas para ajudar o precário sistema judicial do país, afogado em milhares de processos referentes aos massacres.

NA PRISÃO

Após cumprir a pena, hoje ele coordena a associação Ukuri Kuganze ("a verdade deve prevalecer", no idioma local, kinyarwanda), que reúne mais de mil membros e promove o diálogo entre sobreviventes, ex-presidiários e parentes de genocidas.

Perguntado se acha injusto ter sido sentenciado à prisão pela morte de uma única pessoa, ele nega. "Se aceitei matar alguém, também me tornei um criminoso, por isso tive que ir para a prisão. Era necessário", contou.

O período não foi fácil. Didas era espancado por colegas de cela hutus por ter feito parte do grupo rebelde, liderado por tutsis.

E, por ter sido parte de um grupo genocida, também sofria represálias pelo chefe da penitenciária, que era tutsi. "O diálogo entre tutsis e hutus não era fácil logo após o genocídio", relembra.

Após 20 anos, muitos ficam surpresos ao saber como Ruanda foi capaz de fazer as pazes e reunir num mesmo lugar pessoas com histórias rivais e conflitantes, diz Richard Kananga, diretor da Comissão Nacional de Unidade e Reconciliação (Nurc).

"Tentamos apoiar sobreviventes do genocídio, mulheres que têm seus maridos presos, ex-genocidas que acabaram de cumprir a sua pena na prisão e hoje tentam se reintegrar na sociedade, e ex-membros da milícia Interahamwe", disse Kananga.

Criada em 1999, a Nurc tem a finalidade de promover a reconciliação em todo o país. "Havia muita desconfiança e as pessoas suspeitavam muito umas das outras", salientou. Hoje a comissão coordena o trabalho de cerca de 70 organizações que promovem diálogos e atuam na mediação de conflitos.

"Mesmo assim, a desconfiança ainda paira e o trauma é enorme. Este é um processo contínuo, não é possível saber quanto tempo deverá durar ou se, em mais 20 anos, conseguiremos curar", diz.

Em recente pesquisa feita pela Nurc, quase 40% da população admitiu temer ainda uma nova onda de genocídio. A violência, contudo, segundo ele, só retornará se o governo não se empenhar em promover a reconciliação.


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