Índice geral Mundo
Mundo
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

Soldado do eterno líder

Há 5 décadas no Brasil, Lim Kwan Taik lutou pelas forças de Kim Il-sung, primeiro ditador da Coreia do Norte e pai de Kim Jong-il, morto no dia 17

Carlos Cecconello/Folhapress
Lim Kwan Taik, 80, durante entrevista à Folha, em São Bernardo do Campo (SP)
Lim Kwan Taik, 80, durante entrevista à Folha, em São Bernardo do Campo (SP)

DIOGO BERCITO
DE SÃO PAULO

Lim Kwan Taik, 80, tem um sonho recorrente. Na visão, está de volta ao final dos anos 40, na Coreia do Norte, ao lado da namorada comunista.

São coisas que ficaram para trás, das quais ele se lembra quando fecha os olhos.

Ao abri-los, Lim está em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, para onde ele imigrou há mais de cinco décadas após ter liderado um batalhão de 3.000 homens contra a Coreia do Sul.

Ele renunciou à ideologia comunista e ao país. Nunca mais viu a namorada.

Nascido na Coreia do Sul, Lim mudou-se para o norte comunista em 1946, a convite do governo, para estudar.

Ele era caro a Pyongyang devido ao martírio de seu pai, um revolucionário contra a ocupação japonesa morto em 1942. Na época, a península coreana estava unificada -razão pela qual Lim recebe, até hoje, uma pensão por parte do governo sul-coreano.

Lim estudou ciência política e economia na Universidade Kim Il-sung. "Era uma porcaria", diz, durante entrevista à Folha. Ele recebe a reportagem em uma padaria próxima à casa que construiu em São Bernardo do Campo.

Tamanha tornou-se sua aversão ao regime norte-coreano que Lim fundou e preside no Brasil a ACC POW Korea. As três primeiras letras da sigla significam "associação anticomunista".

"Foi bom a Coreia do Norte e aquele ditador [Kim Il-sung, chamado de "eterno líder"] não ganharem a guerra", afirma. "A Coreia seria então um país miserável."

É uma discussão atual diante da morte, na semana passada, do ditador Kim Jong-il -e das dúvidas quanto ao futuro dessa nação.

Lim se refere à Guerra da Coreia (leia nesta página), iniciada em 1950, da qual ele foi obrigado a tomar parte como soldado comunista.

Assim como diz ter sido compelido, dois anos antes, a treinar na academia de guerra de Moscou, a mando do governo norte-coreano.

"Eu não queria a guerra. Eu tinha nascido na Coreia do Sul", afirma. "Tive de guerrear com meu irmão, que era oficial no Exército rival."

INVASÃO

Lim narra que, assim que foi declarada a guerra, em 1950, ele teve de participar da invasão norte-coreana. Tinha 19 anos, na época.

As lembranças que ele guarda dessas semanas são brutais. "A guerra é violenta. Vi pessoas mortas dos dois lados", diz. "Não sei como eu sobrevivi. Meu capacete era todo pipocado de balas", ri.

Lim fala de exércitos se enfrentando entre montanhas, em uma paisagem já sem árvores, devastada pelos disparos repetitivos dos canhões de ambas as facções rivais.

"No final, não há mais balas. Não tem mais nada. Aí vai no corpo a corpo", narra.

Lim estava apaixonado quando foi a Moscou para treinamento. A namorada dele, coreana e comunista, participou do mesmo exercício.

"Nós falávamos 'vamos nos casar'", recorda-se. "Depois que a guerra estourou, não tivemos mais contato."

"De vez em quando, sonho que eu estou lá, com ela."

Após deixar a namorada e armar-se a contragosto contra o país vizinho, Lim teve ainda outra surpresa ingrata.

Com a entrada dos norte-americanos na guerra, a balança do conflito pendeu contra o seu Exército.

"Eu comecei a fugir. Naquela época, não se faziam prisioneiros", diz. "Cercaram meu batalhão. Levantei as mãos e larguei as armas."

Lim foi capturado pelos EUA em 1950 e mantido cativo por dois anos. Daí vêm as três letras da sigla do meio no nome da associação que ele preside no Brasil, ACC POW Korea -"prisoners of war", ou "prisioneiros de guerra".

Uma vez liberto, lhe apresentaram três escolhas.

A primeira: voltar à Coreia do Norte. "Sou anticomunista. Estudei Marx e Lênin, mas eu não queria mais aquilo."

Então, o sul. Mas "como viver lá? Pense bem. Como poderiam me tratar bem?".

Sobrou-lhe a alternativa de escolher um país neutro em que fosse viver. Então embarcou, ao lado de outros ex-combatentes, para a Índia.

BRADO

Lim mostra os documentos de entrada em Nova Déli. Ele exibe, também, as fotografias do período -durante o qual estudou engenharia, ao contrário dos colegas, que "ficaram jogando futebol".

Em uma das imagens que Lim leva à entrevista, o embaixador brasileiro na Índia visita os norte-coreanos, fala de um país tropical e chega a lhes ensinar o hino nacional que narra as margens plácidas.

"Me falavam que era uma nação pobre, com índios. Mas era uma democracia", diz.

Em 1956, Lim se mudou para o Brasil. Na dúvida, escreveu-se no documento de entrada: nacionalidade indefinida.

Após desembarcar no Rio, Lim estabeleceu-se em Curitiba. "Mas não gostei", diz. Em seguida, mudou-se para São Paulo. Queria trabalhar na indústria automobilística.

Por isso São Bernardo e a casa que ele construiu.

Ali ele casou-se, em 1961, com uma japonesa. Teve um filho, que lhe deu três netos.

Lim trabalhou por 28 anos na Ford e aposentou-se em 1986. "Mas a pensão era muito pouca para pagar os estudos dos meus filhos", afirma.

Em busca de maior remuneração, Lim mudou-se para o Japão -o "inimigo" que, por ter combatido, seu pai foi condecorado na terra natal.

Lim trabalhou em solo nipônico, na indústria japonesa. Voltou ao Brasil em 2010.

A despeito do documento vago de imigração, ele já havia ganho uma nacionalidade: a brasileira, por meio de naturalização. "Sou brasileiro mesmo", orgulha-se.

Tamanha a felicidade, diz, que ele celebra anualmente a data em que chegou aqui. E não pensa em voltar à Coreia do Norte.

"Não quero visitar aquele país. São meus inimigos. Esse governo tem de acabar."

É o anticomunismo do nome da associação que preside, sentimento nascido do tempo em que viveu no país.

"Nunca gostei desse sistema, que imita o do Stálin", diz. "Queria uma Coreia só, e não partida em duas. Por que os americanos não foram até o fim [na contraofensiva]?"

CASA

Lim não quer deixar a reportagem entrar em sua casa. "Está muito bagunçada!", ele reclama. De volta da padaria, abre só uma fresta da porta quando entra para buscar a medalha de condecoração de seu pai -que prende no paletó, para a fotografia.

É orgulho de um pai que o abandonou ainda criança. A mãe fez o mesmo, pelo que ele foi criado pelo "vovô".

Ele mexe as mãos, apontando o ao redor. Diz que não havia nenhuma construção por ali, quando fez sua casa.

Naquela época, vieram com ele cerca de 50 norte-coreanos, mais tarde associados à sua ACC POW Korea.

Ele confere nomes em uma lista, nos caracteres altivos do alfabeto coreano. Hoje, 16 dos imigrantes estão vivos.

Última foto em sua pasta: um almoço anual de comemoração da vinda ao Brasil. "São a minha família", diz.

FOLHA.com
Veja vídeo da entrevista
www.folha.com/no1025720

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.