Natal infeliz
Governo venezuelano promove feiras com produtos subsidiados para festas de final de ano, mas medidas não impedirão ceias empobrecidas
O engenheiro Augusto Quinteros, 33, chegou às 5h da manhã da última quarta-feira na loja de eletrodomésticos Daka, a leste de Caracas, para aproveitar ofertas ordenadas a toque de caixa pelo governo socialista.
Mas Quinteros se deparou com uma fila de centenas de pessoas, algumas das quais, com semblante esgotado, já haviam passado duas noites seguidas na calçada cada vez mais cheia de lixo.
"Isso é humilhante. Me sinto como um judeu na Segunda Guerra Mundial", disse Quinteros, exibindo um número rabiscado no antebraço por um funcionário da loja para marcar lugar na fila.
O caos nos arredores da Daka é um símbolo das dificuldades que assolam os venezuelanos neste fim de ano, apesar de estar em vigor um plano "Natal Feliz", lançado há um mês pelo presidente Nicolás Maduro.
Segundo analistas, o plano tem dois objetivos: revigorar a popularidade de Maduro, que despencou para 30% a menos de um ano da eleição legislativa; e atenuar efeitos da inflação superior a 63% e da escassez de produtos básicos, como remédios e alguns alimentos.
Maduro disse que o "Natal Feliz" permitirá à população consumir normalmente apesar da suposta guerra econômica travada pela oposição.
O "Natal Feliz" inclui feiras com produtos subsidiados, mobilização de fiscais para controlar preços e operações que obrigam lojas a vender produtos a condições determinados pelo governo.
O primeiro "Dakaço", como ficou conhecida a operação que críticos chamam de saque programado nas lojas Dako, ocorreu em novembro de 2013 e foi determinante na vitória dos governistas nas eleições locais, semanas depois.
Numa de suas manifestações mais curiosas, o "Natal Feliz" levou o governo socialista a regular o preço de algumas bonecas Barbie, ocasionando um salto na procura por este brinquedo ícone do capitalismo americano.
Os modelos de Barbie a "preço justo" (muitas vezes um eufemismo para vendas com prejuízo) saem por 250 bolívares (US$ 2 na cotação paralela), metade do valor mínimo cobrado até então.
O esforço pré-natalino incluiu ainda dois aumentos salariais --o primeiro, de 45%, para militares; o segundo, que elevou em 15% o salário mínimo, agora em 4.889 bolívares, US$ 40 na cotação paralela.
FRUGALIDADE
Para muitos venezuelanos, porém, as medidas não impedirão que este Natal seja o mais frugal em pelo menos uma década.
"Já não posso comprar presentes, nem sequer uma lembrancinha para os meus netos, e isso me entristece", diz a vendedora de cachorro quente Elena Perez, 46.
"Meu presente para a família será a ceia de Natal".
Perez deverá apertar o cinto, já que o preço da cesta natalina, que inclui produtos locais como pão de presunto e doce de leite, aumentou 124% em relação ao ano passado, quase o dobro acima da inflação, segundo o instituto de pesquisas privado Cedas.
Entre os itens da mesa de Natal, a maior preocupação envolve a hallaca, iguaria à base de massa de milho e carnes enrolada em folha de bananeira, que é um pilar da identidade venezuelana.
Não só existe grave escassez de farinha de milho como também o preço médio da hallaca está estimado em 63 bolívares, um aumento de 84% em relação a 2013.
"Criei um porco especialmente para as hallacas deste ano, é uma maneira de economizar um dinheirinho", diz o cozinheiro Arnoldo Lopez, 47.
Quinteros, o jovem engenheiro na fila do Daka, se considera uma prova viva da degradação das condições de vida da classe média no país. "Lá em casa o Natal sempre teve uísque, vinho tinto, vinho branco e Panettone italiano. Hoje só com 50 mil bolívares [US$ 365 na cotação paralela] para uma ceia dessas".
A alguns metros do rapaz, a dona de casa Yalu Osorio, 25, carrega no colo o bebê que não para de se mexer. "Este Natal é deplorável, nem sequer montei iluminação", diz. "Voltei da Espanha há dois anos porque queria estar no meu país, mas no dia em que cheguei mataram três pessoas na minha rua. E [na terça-feira] sequestraram gente no meu prédio."
Nem todos na fila condenam o governo pela situação.
A dona de casa Vickmary Fernandez, 25, se diz cansada pelos três dias de espera, mas preza a possibilidade de comprar eletrodomésticos por metade do preço convencional. "Eu votava em Hugo Chávez [1999-2013] e hoje voto em Maduro. A culpa por essas filas não é deles, mas dos empresários mal-intencionados".
POPULISMO
Analistas dizem que as medidas de Maduro não somente serão insuficientes como ameaçam agravar os problemas do país.
"Tudo isso é puro populismo", diz o economista Pedro Palma, da consultoria Econoanalítica. Segundo ele, o governo já gasta 20% a mais do que arrecada por causa dos programas sociais e subsídios. Para compensar a escassez de dólares causada pela degringolada dos preços petroleiros, opta por emitir cada vez mais bolívares, acirrando a inflação, afirma Palma.
O cientista político Carlos Romero, da Universidade Central da Venezuela, concorda em que o governo segue política de "panos quentes", mas rejeita previsões alarmistas. "O cenário é grave, mas o dinheiro ainda circula e reservas internacionais continuam. O governo ainda pode chegar forte na eleição [legislativa] de 2015."