Foco
Com 'jacaré' que simboliza os EUA, balé homenageia Chávez
No meio da apresentação, as luzes do palco se apagam, e as da sala se acendem. As pessoas na plateia se viram umas para as outras, sem entender.
De repente, os olhares são atraídos para o alto, onde três atores vestidos de militar e agarrados em cordas começam a descer do teto.
A plateia explode em gritos e aplausos ao reconhecer a cena: o "heroico levante" --também conhecido como golpe de Estado-- liderado pelo até então anônimo comandante Hugo Chávez em 1992.
A insurreição, que fracassou, mas levou Chávez à fama, é um dos momentos marcantes do balé "De ambulante a libertador: uma homenagem ao gigante", obra de propaganda bancada pelo governo.
A peça foi apresentada na sexta e no sábado passados em Caracas e fará turnê no interior no segundo semestre.
O balé estreou em março do ano passado e teve duas apresentações em novembro.
Com duração de uma hora, a obra de dança contemporânea narra, em três atos, a trajetória de Chávez num tom digno da ideologia norte-coreana.
Toda a mitologia do comandante é retratada: a infância humilde na savana; a educação política; a chegada ao poder; os ataques por parte da oposição e dos EUA, incluindo a tentativa de golpe, em 2002; e a última aparição pública, quando Chávez, já esgotado pelo câncer, encerrou a campanha de 2012 cantando na chuva para uma multidão em transe.
"A ideia nasceu na fila do velório do comandante [em 2013]. Quis transformar a dor em ação criativa", diz a diretora Maria Claudia Rossell.
Ela afirma que o governo não interferiu na peça, apesar da clara tentativa de manter viva a chama da revolução chavista, diminuída desde a morte do líder.
A produção, financiada principalmente por bancos estatais, impressiona.
Quarenta jovens bailarinos se movimentam com fluidez pelo palco, ora juntando corpos para formar um jacaré gigante que simboliza os Estados Unidos, ora mimetizando imagens reais, projetadas num telão de fundo, mostrando o massacre de civis no "Caracazo", em 1989.
A música mescla notas do hino nacional, cantos chavistas e trechos de batuque e jazz com arranjos modernos. No lugar das falas, o que mais se ouve são trechos de discursos de personagens históricos, como o ditador Marcos Pérez Jiménez (1953-1958), mas principalmente de Chávez.
O acender das luzes, ao fim da apresentação, revela rostos ao mesmo tempo chorosos e sorridentes. "Chávez vive", grita alguém. "A luta segue", respondem dezenas.
A sala não está cheia, apesar da entrada gratuita.
Quem comparece são os chavistas mais fervorosos. Os mesmos que formam os 20% de venezuelanos que ainda apoiam o governo e atribuem os graves problemas do país (economia em ruínas, desabastecimento, violência) a uma suposta conspiração golpista, não ao sucessor de Chávez, Nicolás Maduro.
"Maduro está fazendo o que pode. Temos de apoiá-lo para que a revolução continue", diz o professor universitário Prudencio Chacon, 64.
"O cristianismo continuou sem Cristo. O chavismo continua sem Chávez."