Em cartas inéditas, prisioneiro de Guantánamo relata seus temores
Textos de preso há 13 anos sem julgamento, aos quais a Folha teve acesso, tratam de família
Samir Mukbel aguarda transferência para um país que aceite lhe dar abrigo; advogada vê no Brasil possível destino
"Conversei por telefone com a minha família dez dias atrás. Foi uma ligação triste. Há guerra na minha cidade."
Da última vez que falou com seus advogados por telefone, na semana passada, Samir Mukbel, 37, mostrou-se muito preocupado com sua família. O vilarejo iemenita onde vivem seus pais, já idosos, é alvo de bombardeios.
Mukbel é um dos 43 cidadãos do Iêmen que continuam detidos na prisão da base militar de Guantánamo, em Cuba, apesar de já terem sido "liberados" (ao todo, são 116 prisioneiros). Ele foi considerado de "baixo risco" por várias autoridades dos EUA, obteve autorização para ser libertado, mas não pode ser solto por não ter para onde ir.
A Folha teve acesso a cartas enviadas pelo iemenita a seus advogados --é a primeira vez que um veículo brasileiro obtém comunicação direta de um detento da prisão. Em alguns textos, ele pergunta da família. Em outras, questiona seu status legal.
"Por que o governo dos EUA não consegue achar países para acolher as pessoas que já têm autorização para serem soltas, e a maioria delas é do Iêmen? Será por que o Iêmen é um país pobre e ninguém liga para os iemenitas? Faz sentido nós ficarmos no campo 6 e campo 5 apesar de termos autorização para sermos libertados?", escreveu Mukbel a seus advogados da ONG Reprieve.
Os prisioneiros iemenitas não são mandados de volta ao Iêmen por causa da guerra civil, e é difícil convencer outros países a recebê-los.
Para a advogada Cori Crider, da Reprieve --organização que ajuda países a acolherem ex-detentos-- o Brasil, como o Uruguai, poderia receber essas pessoas.
"Ficaríamos honrados em fazer uma parceria com o governo brasileiro se eles estiverem considerando acolher prisioneiros. O Brasil é uma sociedade com muita diversidade, tolerante, tem uma comunidade muçulmana", diz.
SEM ACUSAÇÃO
Mukbel chegou em Guantánamo no dia em que a prisão foi "inaugurada" --11 de janeiro de 2002. Ficou alojado no "Camp X Ray", eternizado pelas cenas de prisioneiros encapuzados de uniforme laranja, dentro de gaiolas, ameaçados por cachorros.
O campo virou símbolo dos abusos contra prisioneiros.
Segundo o governo americano, Mukbel era guarda-costas do terrorista Osama bin Laden, líder da Al Qaeda, responsável pelos atentados que mataram quase 3.000 pessoas em solo americano em 11 de setembro de 2001.
Ele nega, e formalmente nunca foi acusado de nada.
Em janeiro de 2010, uma força tarefa do governo americano autorizou Mukbel a voltar a seu país caso as condições melhorassem ou ser transferido a um terceiro país.
O detento só consegue falar com sua família a cada três meses. Seus parentes moram em uma área instável do Iêmen, alvo de bombardeios, e é difícil chegarem ao escritório do Crescente Vermelho para fazerem as ligações.
Fora esse, seu único contato com o mundo exterior são cartas e ligações a advogados, quando autorizados.
Mukbel começou a trabalhar aos 12 anos em uma fábrica de plásticos no Iêmen. Aos 23, trabalhava na mesma fábrica, ganhando US$ 50 (cerca de R$ 160) mensais. Resolveu tentar a vida no Afeganistão onde, dizia um amigo, havia muito trabalho.
Lá, não achou emprego. Logo depois, os EUA invadiram o país. Mukbel tentou fugir para o Paquistão, foi capturado e entregue aos americanos por agentes locais.
Em Guantánamo, após mais de dez anos sem acusação formal, entrou em greve de fome. Em 2013, publicou um artigo no "The New York Times", por meio de sua advogada, sobre a alimentação forçada dos detentos.
Seu sonho é casar, ter filhos e trabalhar no campo.
A Folha reproduz as cartas de Mukbel e narra outras histórias no especial multimídia "Cartas de Guantánamo".
NA INTERNET
Cartas de Guantánamo
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