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Entrevista José Mujica

Mercosul estancou e por isso não atrai mais interessados

Presidente uruguaio diz que bloco não tem a 'fluidez de uma relação natural' e funciona movido a telefonemas para gestão de crises

ISABEL FLECK
DE SÃO PAULO

O presidente uruguaio, José "Pepe" Mujica, não tem meias palavras. Para ele, o Mercosul "estancou", parou de crescer porque outros países não reconhecem como um bom negócio entrar no bloco. "Se ninguém bate à porta para entrar, é o melhor sinal de que estamos estancados", disse à Folha, em entrevista em São Paulo, no último dia 17.

Para ele, é importante que o Uruguai acompanhe o crescimento da "grande potência emergente" que é o Brasil, sendo "complementar" ao país. Mas também aproveitando o alto poder aquisitivo de uma estrita parcela dos consumidores brasileiros.

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Folha - Em entrevista recente, o sr. disse que o Uruguai tinha que "pegar carona" com o Brasil. Como isso se daria?

José Mujica - O Brasil é uma grande potência emergente e nós temos que procurar, em todo o possível, sermos complementares e úteis nesse crescimento do Brasil. Temos que acomodar nossa infraestrutura, comunicação, energia e indústrias para que sejam complementares. Temos que nos apoiar na diversificação mundial, nos distintos cenários que o Brasil tem. "Pegar carona" não é andar de graça, mas, sim, ser útil.

O comércio entre os dois países foi de US$ 4 bilhões em 2011. Mas apenas as exportações brasileiras cresceram desde 2010. Como o Uruguai pretende aumentar as suas exportações?

Tem que ter um trabalho deliberado, porque não se fará de forma espontânea. Se deixamos a economia levar-se sozinha, só vamos oferecer matéria-prima para o Brasil.

O Uruguai produz laticínios muito bons, por exemplo. O Brasil está melhorando a sua produção. Então o Uruguai tem que produzir laticínios de qualidade ainda melhor para o mercado caro do Brasil.

Como o sr. avalia o desempenho do Mercosul, como bloco?

O Mercosul, em questão de intercâmbio, está muito bem. Apesar das dificuldades, cresceu, mas não tem garantia institucional. Funciona meio que movido a telefonemas, à gestão das chancelarias quando se tem uma dificuldade aqui ou lá.

Deste ponto de vista, não tem a fluidez de uma relação natural. Não cresce porque, para crescer, tinha que ser muito tangível a visão lá fora de que é um bom negócio entrar no Mercosul. Se ninguém bate à porta para entrar [no bloco], esse é o melhor sinal de que estamos estancados.

O Uruguai está julgando crimes da ditadura e acabou com a anistia para os crimes contra a humanidade. Esse pode ser um exemplo para o Brasil?

Eu não me aventuro tanto, porque o Brasil é um continente, e não é igual [ao Uruguai]. Nós não tivemos outra alternativa a não ser rever esse processo, que foi muito duro para a história do Uruguai.

Mas não ache que é simples ou fácil. Enquanto um quer julgar qual é o princípio e o fim, outro quer superar o que passou. Todavia, é uma medida muita forte. Há certas memórias que perduram no tempo. E o pior é correr o risco de formar uma nova geração com as paixões e as inclinações da velha geração.

O sr. defende que repressores da ditadura com mais de 70 anos sejam libertados. Esta posição não é contraditória com a decisão de julgar e punir os crimes do período?

Essa é uma posição filosófica, não sobre a ditadura. Não sou partidário de ter gente de 80, 90 anos presa. Acho que, humanamente, não é correto. Quando ficamos mais velhos, estamos cada vez mais perto da morte, e, durante esse fenômeno natural, é melhor que se esteja ao lado da família. Prefiro a prisão domiciliar, se assim quiserem. Mas esta é a minha visão, não a da sociedade uruguaia. É como o aborto, é um problema de consciência.

E qual a sua posição sobre a legalização do aborto, já aprovada pela Câmara?

Sou partidário de legalizá-lo. Acho que temos de apoiar a mulher nesse momento, e, com esse apoio, em muitos casos se salva uma vida, porque a mulher retrocede. Mas, se deixamos que seja um ato clandestino, elas continuam fazendo aborto e ninguém as apoia.

O sr. veio ao Brasil apenas para visitar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de quem nunca escondeu a admiração. O sr. segue seu exemplo para governar?

O governo Lula sempre foi um modelo, ajudou a tirar muita gente da miséria. Porém, entre a esquerda e a direita, não pode haver muita conciliação, em um sentido duradouro.

É como uma permanente disputa, mas essa disputa não deve se transformar em uma confrontação que fossiliza a sociedade. Essa é a principal experiência que nos deixou o governo Lula.

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