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A visita do mal

Assassinatos na cidadezinha de Villisca, que chocaram os EUA, completam cem anos sem que as autoridades tenham resolvido um dos crimes mais famosos da crônica policial americana

As crianças das famílias Moore e Stillinger cantaram e brincaram a valer. Felizes, voltaram para a casa dos Moore Entre 21h45 e 22h, na última vez em que foram vistos com vida

Muita gente continuou a acreditar que o assassino era o reverendo Kelly. Oficialmente o assassino nunca foi achado. Os US$ 3.500 da recompensa foram usados nas lápides

"Mas quando chegamos lá eu não quis ir em frente. E entrar na casa. Fiquei com medo, e não sei por que, pois nunca me ocorreu, bem, uma coisa assim nunca tinha ocorrido a ninguém".
('A Sangue Frio', Truman Capote)

ANÉLIO BARRETO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Cem anos atrás, em 1912, a pequena cidade de Villisca, no Iowa, área central dos EUA, florescia. Suas ruas tinham inúmeras lojas em franco progresso, vários restaurantes e um teatro. Muitos trens, "a única forma de acesso à cidade", chegavam diariamente.

Villisca, segundo seus habitantes, quer dizer "lugar bonito" ou "linda vista". No início da noite de 9 de junho, um domingo, Josiah Moore, 43, e sua mulher, Sarah, 39, com os filhos Herman, 11, Katherine, 10, Boyd, 7, e Paul, 5, além das convidadas Ina, 8, e Lena Stillinger, 12, rumaram à igreja presbiteriana para cerimônia do Dia da Criança.

Às 18h, Josiah havia ligado para os Stillinger. Blanche, a filha mais velha, atendeu. Ele pediu para falar com a mãe dela. "Ela saiu, senhor Moore", disse a garota.

"Veja, nós vamos à igreja esta noite, levando suas irmãs, e elas estão com medo de voltar para casa depois de escurecer. Será que haveria problema se elas passassem a noite aqui?"

"Não, não creio que haja problema."

Os garotos Moore e Stillinger cantaram, dançaram e brincaram a valer. Felizes, voltaram todos para a casa dos Moore entre 21h45 e 22h.

Foi a última vez em que foram vistos com vida.

Em Villisca, a casa dos Moore, construída no lote 310 em 1868 pelo sr. George Loomis, foi comprada por Josiah (Joe)em 1903.

Depois da morte da família, o sr. J. H. Geesman a comprou em 1915. Desde então teve vários proprietários, correu o risco de ser demolida até que, em 1994, foi oferecida ao sr. Darwin Linn, diretor e proprietário de um museu, o Olson-Linn Museum.

Fechado o negócio, o sr. Linn levou alguns meses até criar coragem para contar à sua mulher, Martha. Quando ela se recuperou do choque, o casal decidiu obter fundos para uma restauração que a deixasse como era naquela noite de 1912. Hoje, a casa dos Moore é um pequeno museu.

Mas naquela manhã de segunda, há cem anos, a vizinha, Mary Peckham, saiu para pendurar roupas no varal e estranhou quando não viu movimento na casa ao lado.

O sr. Moore costumava sair cedo para o trabalho, Sarah levantava-se ao amanhecer para preparar o café da manhã e, com quatro crianças, havia sempre muito barulho.

Não era o que estava acontecendo. Mary foi lá e bateu na porta. Como não houve resposta, tentou abri-la, mas estava trancada.

Ela foi ao chiqueiro e soltou as galinhas. Era uma maneira de ajudar Sarah. Voltou então para suas roupas.

Pouco depois, ainda incomodada com aquele silêncio, ligou para Ross Moore, irmão de Josiah. Ele veio, bateu na porta, gritou e, sem resposta, usou sua cópia da chave.

Foi para o quarto de hóspedes e encontrou, em meio a muito sangue, os corpos de Ina e Lena Stillinger. Ele saiu e imediatamente ligou para John Henry "Hank" Horton, o policial de plantão.

Horton entrou na casa e viu que as duas garotas Stillinger haviam sido agredidas até a morte com um machado. A arma do crime, que era de Josiah, foi encontrada ali ao lado, com muito sangue, encostada em uma parede. As meninas só puderam ser identificadas porque seus nomes estavam em suas bíblias.

Lena tinha arranhão num dos braços, sinal de que tentara resistir. Sua camisola estava levantada e ela não tinha calcinha. É provável que tenha sofrido abuso sexual.

Um detalhe: o espelho do quarto estava coberto. Trata-se de uma superstição comum na época, a de que, quando alguém morria, todos os espelhos tinham que ser cobertos, sob pena de a alma do morto ficar aprisionada.

O policial Horton sabia que já não havia esperança de que a família Moore estivesse viva. Subiu ao primeiro andar e entrou no quarto do casal.

Dois corpos jaziam na cama, cobertos com um lençol, as paredes vermelhas de sangue. Eram Joe e Sarah Moore. Joe foi o mais agredido: sua cabeça estava tão desfigurada que os olhos saltaram das órbitas. Ao lado da cama havia um castiçal de querosene, mas estava apagado.

Horton foi ao quarto vizinho, o que fez com que ele, velho e experiente policial, caísse de joelhos. Quatro crianças pequenas, cobertas com lençóis ensopados de sangue, e sangue em todas as paredes.

Horton chamou então o legista, Dr. J. Clark Cooper, e divulgou, por telefone e telégrafo, os primeiros dados dos crimes. O dr. Cooper estimou que as vítimas estavam mortas havia cinco ou seis horas.

O "New York Times" do dia seguinte noticiou o caso de Villisca e seu enviado especial dizia que a única pista eram impressões digitais com sangue em várias partes da casa. Isso parece pouco provável e pode ter sido dito ali, na agitação da descoberta.

Porque, assim que a notícia se espalhou, amigos da família, vizinhos e curiosos se juntaram na frente da casa e os poucos policiais presentes não conseguiram contê-los. Entraram, percorreram todos os quartos, toda a casa, tocaram em tudo, alguns se apropriaram de objetos para guardar como lembrança e, enfim, destruíram qualquer pista.

E vieram as perguntas óbvias: por quê? por quem?

FRANK JONES

Surgiu o primeiro suspeito, um destacado cidadão de Villisca, o senador Frank F. Jones. Não que tivesse agido diretamente, e sim contratado alguém para a execução. O sr. Jones nasceu no Estado de Nova York em 1855 e sua família mudou-se para o Iowa estabelecendo-se em The Forks, que depois teve o nome mudado para Villisca.

Em 1898 construiu a maior casa da cidade e pouco mais tarde sentiu apelos da política. Sete anos depois foi eleito senador. Ele e o sr. Moore trabalharam juntos durante nove anos na loja The Jones Store. Um belo dia Moore decidiu sair e, o que foi pior: levou com ele a lucrativa franchise John Deere, uma cadeia especializada em implementos agrícolas.

Jones, o homem mais poderoso da cidade na época, considerou isso uma traição, mas não consta que a polícia tenha tido coragem sequer de interrogá-lo. Enquanto isso, no condado de Montgomery, ao qual Villisca pertence, cidadãos das comunidades vizinhas juntaram-se e ofereceram a recompensa de US$ 3.500 pela prisão e condenação do assassino.

Depois que a recompensa foi anunciada, vários detetives se dedicaram à caçada. A Burns Detective Agency, de Kansas City, colocou em campo seu principal Sherlock: James Newton Wilkerson.

Que logo apontou o dedo para o sr. Jones e anunciou o nome do homem que teria sido contratado por ele: William Mansfield, que era de Blue Island, Illinois, e, segundo Wilkerson, usava também os nomes George Worley e Jack Turnbaugh.

Ainda segundo Wilkerson, Mansfield seria viciado em cocaína e teria se tornado um serial killer, expressão que ainda não era usada na época. Mansfield teria matado a mulher dele, filho, padrasto e a mãe em 1914, dois anos após a morte dos Moore.

Detalhe: as vítimas estavam dormindo, foram mortas com machado, havia um castiçal de querosene ao lado das camas, os espelhos estavam cobertos. E o assassino usou luvas, o que, para o detetive, era mais uma prova, pois Mansfield sabia que suas digitais estavam gravadas no presídio militar de Fort Leavenworth, Kansas, onde passara uma temporada.

Com isso Wilkerson conseguiu mandar prendê-lo. Mas Mansfield tinha um álibi: uma folha de pagamento que o colocava em Illinois quando os Moore e as crianças foram mortos. Foi dispensado.

KELLY

O reverendo George Kelly e sua mulher assentaram-se em Macedonia, Iowa, depois de anos pregando por cidades do meio-oeste. Mas ele continuou sua carreira de pregador itinerante e estava na celebração do Dia da Criança, em Villisca, na noite de 9 de junho de 1912.

Deixou a cidade nas primeiras horas do dia 10, o que automaticamente o tornou suspeito. Kelly tinha orelhas salientes, nariz pontudo, testa alta e lábios grossos que, mesmo quando estava sorrindo, pareciam caídos nos lados. Falava tão rápido, quando inflamado, que poucos entendiam o que dizia.

Os indícios contra ele: no trem, de volta a Macedonia, conversou sobre os crimes com outros passageiros, mas os crimes, mesmo, ainda não haviam sido divulgados.

E Kelly praticamente confessou, dizendo -o que foi ouvido por várias pessoas- que matou porque teve uma visão que disse a ele "mate, e mate completamente", uma frase que alegou vir da Bíblia. Apurou-se também que enviou uma camisa manchada de sangue para uma lavanderia em Council Bluffs, Iowa, mas a camisa não foi achada.

Obcecado pelos crimes, escreveu várias cartas para autoridades comentando as mortes, com detalhes que, segundo a polícia, só o assassino poderia conhecer. Preso, foi levado à corte. Lá, fez um depoimento incoerente sobre a confissão, o que muitos consideraram zombaria. O primeiro julgamento teve falhas e foi anulado. No segundo, foi inocentado.

Pedófilo, George Kelly foi preso em 1914 por mandar cartas obscenas a uma garota. Foi para um hospital de doentes mentais em Washington.

O MAIOR SUSPEITO

O mais forte suspeito dos oito assassinatos em Villisca foi um sujeito chamado Henry Moore (nenhuma relação com a família). Foi julgado e condenado a prisão perpétua em dezembro de 1912 pela morte da mãe e da avó.

Foi em Columbia, Missouri, e as duas mortes aconteceram exatamente da mesma maneira que as outras, em junho. Moore foi cumprir pena na prisão de Fort Leavenworth, que tinha como diretor o pai de um agente federal, M. W. McClaughry. O sr. McClaughry, ao saber o motivo da prisão de Moore, imediatamente avisou o filho. Os federais haviam entrado no caso a pedido da polícia de Iowa.

Em suas investigações, o agente fez um relatório impressionante. Além dos Moore/Stillinger, ele descobriu uma onda de crimes cometidos com machados que durou 18 meses.

Em setembro de 1911, em Colorado Springs, Colorado, foram mortos H. C. Wayne, sua mulher e filho, e a sra. A. J. Burnham e seus dois filhos. Um mês depois, em Monmouth, Illinois, foi a família Dewson, e após pouco mais de uma semana os cinco membros da família de um showman em Ellsworth, Kansas.

Em 5 de junho de 1912, dias antes de Villisca, o sr. Rollin Hudson e sua mulher foram mortos em Paola, Kansas. Investigando os casos, e após entrevistar Henry Moore na prisão, McClaughry anunciou como solucionados 23 assassinatos no meio-oeste.

Inexplicavelmente, a polícia do Iowa não deu atenção a ele. Muitos continuaram a acreditar que o assassino era o reverendo George Kelly. O assassino de Villisca nunca foi encontrado. Os US$ 3.500 da recompensa foram usados em lápides para os mortos.

Quer se acredite ou não, a verdade é que, como diria Tess Gerritsen, autora de romances policiais de muito sucesso nos EUA, "o mal fez uma visita à casa dos Moore".

Fontes: "The New York Times" e o site American Hautings, entre outros

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