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Bota furada

Na Itália, longa prática de negociações (e negociatas) fez com que, aos poucos, a atividade política se degenerasse

CONTARDO CALLIGARIS

COLUNISTA DA FOLHA

Do fim da Segunda Guerra até 1968, foram-se mais de 20 anos (os primeiros 20 de minha vida). Foi uma história dupla, aos meus olhos.

Uma era a história da Itália séria, à qual eu me orgulhava de pertencer.

Nessa história havia grandes apostas políticas, que eram claras, organizadas pelo passado recente (fascistas contra antifascistas), por ideais opostos (capitalistas e liberais de um lado, socialistas e comunistas, do outro), e pelo conflito social (proletários de um lado, donos dos meios de produção, do outro).

A outra história, paralela, era a Itália cômica, em que, em nome de uma farra desejada por todos (embora possível só para alguns), conviviam miséria extrema (econômica e cultural) e cobiça dos "emergentes", que enriqueciam no "milagre" italiano.

Na farra (real ou sonhada), tanto os miseráveis quanto os emergentes eram facilmente grotescos -ao menos, mas não só, nas telas do cinema.

Nessa Itália cômica, não me reconhecia. Eu a contemplava, ela me envergonhava e dava vontade de ir embora.

A revolta de estudantes e proletários, em 1968-70, foi o ápice desses 20 anos. E foi também o canto do cisne da política "clara", por uma razão simples: a partir dos anos 70, o milagre começou a dar seus frutos, e a classe operária, sem chegar ao paraíso (como dizia o título de um filme famoso), integrou a classe média. Ou seja, o proletariado parou de sonhar com uma mudança que não fosse "apenas" a melhora de seu consumo e de seu conforto.

Em política, sobrou a necessidade de inventar coexistências e compromissos.

Nada de errado; mas uma longa prática de negociações (se não de negociatas), sem grandes princípios e sem as oposições que davam sentido às décadas anteriores, fez que, aos poucos, a política se degenerasse e se perdesse (a ponto que a palavra "política" passou a inspirar uma desconfiança imediata).

No fundo, ganhava espaço a ideia de que, num mundo inevitavelmente "centrista", é melhor mesmo que cada um cuide de seus interesses, exigindo do Estado tudo o que for possível (claro, sem preocupação alguma com um suposto bem comum).

MAMMA MIA!

Parêntese. Nos 70 e 80, os nostálgicos de uma história "séria" se perderam num delírio revolucionário e sangrento, desligado das aspirações efetivas de quem que fosse: a luta armada e o terror dos anos de chumbo.

Berlusconi foi o homem perfeito para os anos 90: afinal, se o interesse de cada um era a única coisa que importava, o melhor premiê poderia e deveria ser alguém que sabia cuidar de seu próprio interesse, correto?

Num livro recente (e divertido), Beppe Severgnini explica Berlusconi ao público dos EUA ("Mamma mia! Berlusconi's Italy Explained for Posterity and Friends Abroad", a Itália de Berlusconi explicada à posteridade e aos amigos no exterior).

Numa coisa concordo com Severgnini: Berlusconi juntou, habilmente, o particularismo dos anos 90 com a Itália cômica dos anos 50 e 60, da qual eu me envergonhava -graças a ele, de novo, o grotesco da farra pareceu ser o grande gênero literário da vida pública italiana.

(Por sorte, ao longo dos últimos anos, a Itália séria teve representantes e baluartes, mas poucos. Por exemplo, o presidente, Napolitano).

O que acontece hoje? A época da política "clara" não voltou, nem voltará, e, por mais que me inspire um pouco de nostalgia, acho ótimo.

A escolha de Mario Monti para substituir Berlusconi manifesta outra coisa:

1) o premiê é escolhido por ser um técnico honesto e ilustre, e não um homem capaz de se enriquecer;

2) o fato de que Monti seja um técnico apartidário não significa o fim definitivo da política, ao contrário;

3) se desconfiamos da política como conflito "claro" de classes ou negociata partidária, talvez possamos ainda acreditar na política como expressão de uma vontade cívica de servir o bem comum;

4) isso implica, naturalmente, que os cidadãos estejam dispostos a sacrifício -não apenas pedir ao Estado assistências e favores.

É cedo para dizer se Monti será ou não capaz de um novo começo. Mas, ao ler a imprensa italiana, constata-se que os italianos parecem estar cansados de viver numa comédia.

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