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Clóvis Rossi

Narrativa alternativa para a crise

Houve uma vez um tempo em que os "países-cigarras", que gastam muito, eram formiguinhas

Toda a culpa pela crise europeia é dos gregos preguiçosos, dos italianos adeptos da "dolce vita" e dos espanhóis que preferem a "siesta" ao trabalho.

Essa é a narrativa hegemônica no noticiário e nas análises dos especialistas, quase todos guiados pelas pautas que ditam os tais mercados.

Menos mal que um economista chamado Michael Pettis resolveu fuçar em dados sobre os países que gastam muito -que seriam as cigarras dessa mal contada fábula- e os países, a Alemanha, por exemplo, que trabalham muito -como a formiguinha- e ainda por cima se veem obrigados agora a socorrer os parceiros malandros.

Pettis é pesquisador associado-sênior do Programa Ásia do centro Carnegie para a Paz Internacional, com QG em Washington. Ele separou dados de duas décadas, a que antecedeu o lançamento físico do euro e a seguinte. Escreve, sobre a Alemanha:

"Na década antes de 2000, a Alemanha aparece entre os países líderes em superavits comerciais apenas uma vez, em 1990. Mas, na década após 2000, a Alemanha é o país com o segundo maior superavit comercial todos os anos, com exceção de 2001 e 2011, em que aparece em terceiro."

Traduzindo do economês para o "fabulês": a formiga Alemanha só virou formiga depois do euro.

Vejamos agora o que Pettis chama de "a supostamente preguiçosa Itália": apareceu sempre entre os dez países com maior superavit de 1993 a 1999, para, apenas a partir de 2000, se transformar em um dos grandes deficitários.

Como explicar então a crise europeia? Pettis oferece ao leitor duas narrativas, a convencional, que abre esta coluna, evidentemente com ironia (minha, não dele), mas também "uma teoria alternativa: a de que os desequilíbrios foram causados por políticas internas -talvez a criação do euro e o mecanismo de política monetária [juros] que atendia as necessidades da Alemanha, em detrimento da periferia". Tais desequilíbrios, prossegue a análise, "criaram crescimento do emprego nos países que reduziram o consumo, e forçaram os países que não o fizeram a escolher entre endividamento e desemprego".

Termina: "Como estes países não tinham controle sobre a política monetária, a escolha foi feita por eles em grande medida pelo Banco Central Europeu, com seus juros excessivamente baixos, e o nível de endividamento explodiu."

Não estou dizendo que a Alemanha é a culpada da crise, mas as tabelas apresentadas por Pettis mostram que ela se beneficiou -e muito- do euro, às custas dos países que importavam produtos alemães ou de outros grandes exportadores.

É sintomático que José Manuel Durão Barroso, o presidente da Comissão Europeia, tenha sido forçado a publicar anteontem artigo no "El País" em que lembra que, em 2010, "a Alemanha exportou mais bens e serviços aos Países Baixos que à China, à França que aos EUA, à Polônia que à Rússia, à Espanha que ao Brasil, à Hungria que à Índia".

Posto de outra forma: as "cigarras" não sugavam o sangue da Alemanha, mas lhe davam lucro. Agora que chegou o inverno, chutá-las pode ser um tiro no próprio pé - além de imoral, conceito que não existe nesse jogo.

crossi@uol.com.br

AMANHÃ EM MUNDO

Rubens Ricupero

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